05/07/2010
Nilton Viana
da Redação
Já passou da hora de ter responsabilidade e coragem para construir uma frente de unidade popular no Brasil. Essa é a convicção do jornalista Sávio Bones. Para ele, o quadro de várias candidaturas só reforça a necessidade de uma frente que aglutine a esquerda, partidária ou não.
Em entrevista, Bones diz que os partidos de massas – que não podem ser confundidos com partidos com base de massas – não encarnam mais uma alternativa das mudanças estruturais na sociedade. Para ele, o recente ciclo da esquerda brasileira encerrou-se. O jornalista acredita que “o próximo período exige passos concretos para equacionar alguns dos pontos que nos têm aprisionado”. Um deles, segundo ele, é enfrentar e resolver, teórica e praticamente, o problema político e a necessidade estratégica da unidade popular no Brasil. “Está claro que o caminho da esquerda brasileira é negar a divisão, perseguir uma aliança popular ampla e aceitar o desafio de arquitetar o novo. É construir uma frente plural, um instrumento de mobilização, unificação e organização da população”.
Brasil de Fato – Em 2008, o capitalismo, com a crise financeira iniciada nos EUA, abalou todo o mundo e deu sinais de que o sistema entraria em colapso total. Atualmente, a Grécia é a bola da vez, gerando impactos em toda a Europa. Que avaliação você faz da crise?
Sávio Bones – O capitalismo vive uma crise estrutural que se já se arrasta desde a década de 1970. O neoliberalismo foi uma tentativa de superá-la e inaugurar um novo período de prosperidade. As dificuldades dos tempos atuais mostram que esse período foi de curta estabilidade e vem chegando ao fim. Tanto em 2008, como recentemente, o que verificamos foram manifestações conjunturais da crise, ou seja, são agudizações, picos de um fenômeno muito maior e de longa duração. A primeira teve como epicentro os EUA e a segunda é a crise na União Europeia e não de um ou outro país.
Creio que é preciso evitar duas posições: uma, bem ao gosto conservador, trata as manifestações da crise como fenômenos desconexos, que devem ser equacionados em cada momento; outra, apocalíptica, enxerga em cada espasmo o anúncio do colapso total do capitalismo, que ruiria por si só.
Como vimos recentemente, o imperialismo, os grandes conglomerados monopolistas-financeiros, os Estados e outros centros estruturadores do capital construíram mecanismos e medidas de controle e redução de danos, que diminuem no curto prazo os efeitos, embora sejam inúteis como respostas duradouras.
Creio que não há o que comemorar nas manifestações da crise, afinal, quem mais padece são as classes trabalhadoras. A nós cabe buscar caminhos de combate à crise que abram possibilidades para as grandes e decisivas transformações sociais, indispensáveis para o atendimento das necessidades e anseios dos grandes contingentes populares.
O capitalismo utiliza cada vez mais a repressão, a violência e a barbárie. Esses mecanismos são essenciais para a sustentação do atual modelo?
São, como sempre foram. A repressão às lutas populares, sob o Estado burguês e sua democracia, sempre existiu aberta ou velada, institucionalmente ou não. A história da América é repleta de exemplos de alternância de momentos de maior liberdade e outros de terrorismo de Estado. No Brasil de hoje presenciamos uma alteração nos padrões repressivos, que passam a contar com amparo legal e legitimidade no interior da sociedade, fruto de uma correlação de forças ainda desfavorável.
Marx continua atual como referencial analítico para o atual estágio do capitalismo?
Marx formulou uma síntese filosófica de validade permanente e uma doutrina social insuperável enquanto durar a sociedade capitalista. São dele também os elementos basilares do processo de superação da ordem do capital e de construção de um novo mundo, possível e necessário, baseado na “livre associação de homens livres”. O pensamento de Marx, hoje e mais do que nunca, é a base intelectual para quem busca superar a pré-história da Humanidade.
O atual estágio de desenvolvimento capitalista tem colocado novas formas de produção, um novo mundo do trabalho, alteração das relações sociais etc. A esquerda, na sua avaliação, tem se colocado à altura desse “novo mundo”?
Há um endeusamento das mudanças promovidas pelas novas tecnologias e formas de organização do trabalho. É bom destacar que nenhuma delas foi capaz de mudar as condições estruturais do capitalismo e superar o ponto sobre o qual se ergue a sociedade capitalista: a exploração do trabalho pela extração de mais-valia, baseada na produção socializada nos marcos da apropriação privada dos meios de produção.
As várias transformações não eliminaram a centralidade do trabalho ou o proletariado como quer a cultura chamada de pós-moderna. O que houve foi, por exemplo, uma alteração no perfil do proletariado e do conjunto das classes trabalhadoras. Assistimos hoje a uma proletarização crescente de vários segmentos – como, por exemplo, dos camponeses e dos trabalhadores em serviços. Presenciamos uma necessidade de qualificação profissional cada vez maior, um estoque brutal de trabalho sobrante, uma precarização das relações trabalhistas. Nesse “museu de grandes novidades” é preciso reafirmar a centralidade do trabalho e retomar a crítica ao capitalismo a partir da realidade concreta das pessoas, reencontrar a imaginação perdida na formulação de táticas e mediações, adotar atitudes próprias para o momento e, sobretudo, enterrar a fragmentação e a divisão. Tudo isso com um objetivo: voltar a encantar multidões e promover a autoconfiança e a unidade das camadas populares para que elas possam descortinar por elas mesmas um caminho novo.
Os instrumentos políticos da esquerda, principalmente os partidos políticos, ao seu ver, têm sido capazes de fazer frente à atual realidade brasileira?
Apesar de fragmentadas, até agora, as organizações do campo popular, incluindo aquelas de caráter partidário, movimentos, centrais, fóruns, assembleias, resistiram e têm sobrevivido aos tempos de defensiva.
Já o potencial transformador dos partidos que surgiram ou se reconstruíram no ocaso da ditadura militar esgotou-se. Os partidos de massas – que não podem ser confundidos com partidos com base de massas – não encarnam mais uma alternativa das mudanças estruturais na sociedade. Os partidos que mantêm o horizonte revolucionário não têm conseguido aglutinar forças capazes de reordenar as várias vertentes da esquerda e impulsionar uma aliança política ampla e uma nova alternativa de massas.
Creio que o recente ciclo da esquerda brasileira encerrou-se. O próximo período exige passos concretos para equacionar alguns dos pontos que nos têm aprisionado. Um deles é enfrentar e resolver, teórica e praticamente, o problema político e a necessidade estratégica da unidade popular no Brasil. Já passou da hora de ter responsabilidade e coragem para construir uma frente de unidade popular no Brasil.
Esse ano teremos eleições no Brasil. Como você vê o cenário eleitoral brasileiro?
Basicamente, são três campos em disputa: a oposição de direita, arraigada à ortodoxia neoliberal, apresentou a candidatura de José Serra e tem no PSDB-DEM seu eixo articulador. O situacionismo social-liberal tem Dilma Rousseff como candidata, está reforçado pelo PMDB e conquistou apoio de setores populares organizados, inclusive de esquerda. Esses dois lados adversários estão polarizando a disputa. Entre os dois está a candidata do PV, Marina Silva, que não constitui um campo próprio. O oposicionismo de esquerda é o terceiro campo e tem reduzida inserção social e pouca densidade eleitoral. A construção das candidaturas deixou clara a divisão no seu interior. Plinio Arruda Sampaio aparece como o candidato que reúne as melhores possibilidades para combater a oposição de direita, apresentar propostas avançadas de interesse dos trabalhadores e defender posições que acumulem para a unificação das forças populares. Não por acaso, já recebeu o apoio da Refundação Comunista e da Corrente Comunista Luiz Carlos Prestes. O quadro de candidaturas só reforça a necessidade de uma frente que aglutine a esquerda, partidária ou não. Esta divisão só interessa aos nossos inimigos e aos nossos adversários.
Em entrevista ao Brasil de Fato, o jornalista José Arbex Jr. Defendeu a criação de um novo partido, instrumento político, impulsionado pelo movimentos sociais. Como você vê essa proposta?
Arbex manifestou uma interrogação de vários segmentos da esquerda: como superar a dispersão e abrir um novo caminho no Brasil? Para mim, está claro que o caminho da esquerda brasileira é negar a divisão, perseguir uma aliança popular ampla e aceitar o desafio de arquitetar o novo. É construir uma frente plural, um instrumento de mobilização, unificação e organização da população. Um espaço de unidade das lutas populares e uma alternativa também para as disputas eleitorais. Um movimento que arranque conquistas, que alargue a influência das ideias progressistas e avançadas, que se imponha na disputa contra-hegemônica e que deixe explícita a ideia de ruptura com a situação vigente. Uma aliança ampla entre partidos, correntes, agrupamentos, movimentos, fóruns, assembleias, setores religiosos, dirigentes políticos, intelectuais e personalidades identificados com os anseios nacionais, democráticos e populares. Uma frente que se abra à adesão e à fi liação massiva de militantes e ativistas, bem como de todas as pessoas que se identificarem com seu programa e sua plataforma de reivindicações.
Como você avalia que deva ser um instrumento político que seja capaz de fazer frente ao atual estágio do capitalismo no Brasil?
Uma unidade popular orgânica baseada num programa de luta social por reformas profundas, de caráter anti-imperialista, antimonopolista e antilatifundiário. Um programa que aprofunde a soberania e equacione as questões nacionais pendentes. Que combata os oligopólios financeiros. Que avalize o alargamento das liberdades e dos direitos democráticos. Que garanta o desenvolvimento econômico e a elevação do nível de vida do povo e o bem estar das grandes maiorias. Que realize a reforma agrária, a democratização da cultura e a correta relação com o meio ambiente. Que lute pela eliminação de todas as formas de discriminação. Enfim, que promova o progresso social do país e aponte para o socialismo. Uma frente de esquerda pelo conteúdo programático, pela composição social, pela abordagem das diversas formas de luta e pelas formas de organização e não pela simples autoafirmação.
O centro das ações da frente popular é o combate radical às políticas neoliberais e atitudes governamentais antipovo, em defesa dos interesses econômicos e sociais, imediatos e permanentes, dos assalariados, dos desempregados, dos camponeses, dos segmentos médios e pequeno-burgueses em contradição com o grande capital, das mulheres, da juventude, dos setores discriminados, da intelectualidade libertária e dos demais segmentos explorados e oprimidos.
Sob o ponto de vista da organização, os partidos, movimentos e setores que participarem da aliança poderiam manter seus instrumentos e estruturas funcionando normalmente, assumindo apenas o compromisso de construir a frente como um fórum de unidade popular e de divulgar suas ideias e propostas. Penso num funcionamento baseado no consenso nas questões importantes e na rejeição da disputa interna permanente como método de decisão.
A unidade popular não tem receita, mas exigirá, sobretudo, determinação. É no próprio movimento de construção da frente que serão superadas as dificuldades previsíveis. A experiência, a formação e a inventividade de quadros e militantes serão adquiridas e lapidadas enquanto a frente se constrói.
Fico imaginando o espectro político do jornal Brasil de Fato envolvido numa empreitada dessa. Na força que tem a militância partidária, da Consulta, da Assembleia Popular, da Via Campesina e de outras organizações juntas. Nos milhares de dirigentes, militantes e ativistas hoje incomodados, insatisfeitos e desmobilizados. No contingente da população ainda presa ao passado, mas aberta para o futuro. Imagine esta gente promovendo debates, encontros e reuniões. Discutindo pontos programáticos e ações comuns. Dirigentes, militantes e personalidades reconhecidos percorrendo o Brasil, mobilizando as pessoas e reacendendo a esperança perdida. Construindo uma opção orgânica que significa o novo encarnado na unidade popular. Mexeríamos ou não com a pasmaceira e a mesmice que assola o país? Enfrentaríamos nossos inimigos de forma mais radical e, fundamentalmente, iríamos voltar a ser perigosos.
Você acha que o Programa Democrático Popular construído pelo PT em 1986 ainda está atual?
Um programa democrático e popular não é patrimônio de qualquer partido ou movimento. É fruto das necessidades históricas, das lutas e dos acúmulos teóricos e políticos de nossa gente. Enquanto o povo não conquistar autonomia em relação ao imperialismo e aos monopólios, não realizar as reformas democráticas – como, por exemplo, a reforma agrária – e não criar condições para melhorias substanciais na vida das grandes maiorias, as transformações democráticas e populares estarão na ordem do dia.
Sávio Bones é jornalista, assessor sindical e diretor do Instituto 25 de Março.
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