quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

A BÍBLIA E O BACAMARTE


O governo Bolsonaro agora ataca a comunidade indígena em duas frentes:

a) tenta desmontar o sistema de proteção aos indígenas isolados e de recente contato, que tem como princípio norteador exatamente a não obrigatoriedade do contato;

b) autoriza a mineração e hidrelétricas em territórios indígenas(PL 191).

As duas medidas estão alinhadas com outras propostas legislativas de autoria da Bancada Ruralista. As Propostas de Emenda à Constituição 187/2016 e 343/2017, que tratam da exploração agropecuária, parceria agrícola e exploração dos recursos hídricos e minerais em terras indígenas já tramitavam na Câmara dos Deputados.

A PEC 187 acrescenta um novo parágrafo ao artigo 231 da Constituição, que autoriza “atividades agropecuárias e florestais” nas terras indígenas e a “praticar os atos necessários à administração de seus bens e comercialização da produção”.

A PEC 343 introduz outro dispositivo no artigo 231 da Constituição para abrir as terras indígenas a “parceria agrícola e pecuária”, na qual uma das partes seria composta por “brasileiros que explorem essas atividades, conforme o interesse nacional, na forma compatível com a política agropecuária”.

A Constituição Federal dispõe sobre "o usufruto exclusivo dos povos indígenas aos seus territórios”, um princípio que historicamente foi alvo de ataques dos empresários do agronegócio. 

A bancada ruralista pretende legalizar a exploração econômica das terras indígenas por terceiros, ou seja, pelo agronegócio, algo jamais permitido pela jurisprudência de nossos tribunais. 

A Constituição da República diz, taxativamente: "As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes" (art. 231, § 2).

Esse direito deve ser entendido à luz de diversificadas estratégias de gestão territorial e ambiental, que primam pelo uso sustentável e pela conservação dos recursos naturais essenciais à reprodução física e cultural dos povos indígenas.

Todas essas propostas agem de acordo com a ideia ultrapassada de assimilação (de comunhão nacional, com diz ainda o velhusco Estatuto do Índio de 1973), de negação do direito à diferença, de racismo colonial, que pressupõe o modo de viver dos indígenas inferior, incluindo suas práticas religiosas.

Medidas legislativas que afetam diretamente os povos indígenas, devem ser precedidas por etapa de consulta livre, prévia e informada a representantes desses povos, nos termos do que determina o artigo 60 da Convenção no. 169 da Organização Internacional do Trabalho, norma de status hierárquico supralegal, ratificada no Brasil por meio do Decreto Legislativo nº. 143/2002 e promulgada pelo Decreto Presidencial nº. 5.051/ 2004.

Por último cabe lembrar que a revisão constitucional não pode atingir o núcleo essencial da proposta do poder constituinte originário (CF, art. 60, § 4º), a chamada cláusula pétrea, e o STF já reconheceu no direito territorial indígena o caráter de direito fundamental.

A Constituição de 1988 rompeu com os paradigmas assimilacionista e integracionista que antes permeavam o tratamento da questão indígena no país, adotando um paradigma pluralista e multicultural. O texto constitucional, abriu-se às diversas formas de manifestações étnicas e culturais que formam as múltiplas identidades componentes da sociedade brasileira.

A proteção qualificada desse direito está pontuada como posse originária, ocupação tradicional, terra imemorial, terra tradicionalmente ocupada, princípio do indigenato, direito precedente a qualquer outro, por isso mesmo, fundamental, porque não há índio sem território. 

A questão da terra é ponto central dos direitos constitucionais dos índios, pois para eles ela tem um valor de sobrevivência física e cultural. 

O paradigma assimilacionista não foi superado apenas na Constituição de 88. A legislação internacional também fez o mesmo movimento desde o ano de 1957.

A Convenção nº 107 da Organização Internacional do Trabalho – OIT39, de 5 de junho de 1957, afirmava, em seu preâmbulo, o propósito de integrar as populações indígenas à comunidade nacional. 

Diferentemente, a Convenção nº 169, de 7 de junho de 1989, que a sucedeu, passou a reconhecer as aspirações desses povos a assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões, dentro do âmbito dos Estados onde moram.

No meio da batalha contra o neofascismo em ascensão, cabe perguntar se as instituições democráticas estarão preparadas para o enfrentamento de fundo, em relação a todas essas propostas e muitas outras que virão, de resgate da missão colonial de cobiça às terras e às almas dos povos originários.