segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

A BÍBLIA E O FUNDAMENTALISMO

No debate sobre a criminalização da homofobia, vários fundamentalistas apresentaram argumentos bíblicos para considerar o segmento LGBT não agraciado por Deus.
As citações bíblicas, condenando a homossexualidade existem, de fato, tanto no Velho como no Novo Testamento.

Em versículos como estes do Levítico:
“Se um homem se deitar com outro homem como quem se deita com uma mulher, ambos praticaram um ato repugnante. Terão que ser executados, pois merecem a mor­te” (Levítico 20:13)

Com homem não te deitarás, como se fosse mulher; abominação é; (Levítico 18:22)

A Primeira Epístola de Paulo aos Coríntios, diz: “Não errais: nem os impuros, nem os idólatras, nem os adúlteros, nem malakoi, nem arsenokoitai herdarão o reino de Deus”.

Os fundamentalistas traduzem essas palavras gregas como “efeminados e homossexuais”. Traduções mais recentes e criteriosas preferem “pervetores”, “pervertidos” ou “imorais”.

Mas também existem passagens envolvendo a relação entre o rei Davi e Jônatas, presente em Samuel I e II.

Jônatas era filho do rei Saul de Israel e seu sucessor natural. Mas fez uma aliança com Davi, que acabou sendo escolhido para o trono, o que Jônatas aceitou de coração.

De fato, os verbetes convidam a uma reflexão, sobre homoafetividade na Bíblia:

(1SM 18:1-4) “E sucedeu que, acabando ele de falar com Saul, a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e Jônatas o amou, como à sua própria alma. E Saul naquele dia o tomou, e não lhe permitiu que voltasse para a casa de seu pai. E Jônatas e Davi fizeram aliança; porque Jônatas o amava como à sua própria alma. E Jônatas se despojou da capa que trazia sobre si, e a deu a Davi, como também as suas vestes, até a sua espada, e o seu arco, e o seu cinto.”

(1SM 20:3) “Então Davi tornou a jurar, e disse: Teu pai sabe muito bem que achei graça em teus olhos; por isso disse: Não saiba isto Jônatas, para que não se magoe. Mas, na verdade, como vive o Senhor, e como vive a tua alma, há apenas um passo entre mim e a morte. E disse Jônatas a Davi: O que disser a tua alma, eu te farei.”

(1SM 20:41) “E, indo-se o moço, levantou-se Davi do lado do sul, e lançou-se sobre o seu rosto em terra, e inclinou-se três vezes; e beijaram-se um ao outro, e choraram juntos, mas Davi chorou muito mais.”

(2SM 1:25-26) “Como caíram os poderosos, no meio da peleja! Jônatas nos teus altos foi morto. Angustiado estou por ti, meu irmão Jônatas; quão amabilíssimo me eras! Mais maravilhoso me era o teu amor do que o amor das mulheres.”

Tais passagens apenas comprovam que a Bíblia é um documento complexo, que exige estudos e cuidadosa interpretação.

Várias outras recomendações do Livro Sagrado são polêmicas ou impraticáveis nos dias atuais.

Até o mais arraigado seguidor da Palavra terá dificuldade em seguir a Bíblia ao pé da letra, como querem alguns fundamentalismos.

Por exemplo:

Comer carne de porco - Também o porco, porque tem unhas fendidas, e a fenda das unhas se divide em duas, mas não rumina; este vos será imundo. Das suas carnes não comereis, nem tocareis nos seus cadáveres; estes vos serão imundos (Levítico 11:7,8). Poucas denominações cristãs cumprem essa orientação nos dias atuais.

Cortar o cabelo e a barba - Não cortareis o cabelo, arredondando os cantos da vossa cabeça, nem danificareis as extremidades da tua barba (Levítico 19:27).

Tatuagem - Pelos mortos não dareis golpes na vossa carne; nem fareis marca alguma sobre vós. Eu sou o Senhor (Levítico 19:28).

Comer frutos do mar - Mas todo o que não tem barbatanas, nem escamas, nos mares e nos rios, todo o réptil das águas, e todo o ser vivente que há nas águas, estes serão para vós abominação (Levítico 11:10).

Coito interrompido - Onã, porém, soube que esta descendência não havia de ser para ele; e aconteceu que, quando possuía a mulher de seu irmão, derramava o sêmen na terra, para não dar descendência a seu irmão. / E o que fazia era mau aos olhos do Senhor, pelo que também o matou (Gênesis 38:9,10).

Por outro lado, existem passagens que facilitariam a vida de todos nós, acaso fôssemos capazes de fazer a melhor e mais acolhedora interpretação.

A que indica que os Dez Mandamentos podem ser resumidos pela Boa Nova de Cristo Libertador:

Porque o fim da lei é Cristo para a justiça de todo aquele que crê (Romanos 10:4).

As que resumem todos os outros mandamentos em apenas dois:
E Jesus disse-lhe: Amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento.
Este é o primeiro e grande mandamento.
E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo.

Destes dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas. (Mateus 22:37-40).

Como se vê, a Bíblia é uma boa leitura, mas convida para um esforço interpretativo a partir desses dois princípios fundamentais. O fundamentalismo não gosta de princípios e muito menos da interpretação. É uma espécie de legalismo de cunho religioso.

Com a Bíblia na mão, podemos ser profetas do amor ou do ódio. É o caminho da leitura que vai dizer.

O JULGAMENTO DA CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA


JULGAMENTO SUSPENSO


O julgamento da criminalização da homofobia foi suspenso, sem previsão de pauta. Até o momento, quatro ministros voltaram a favor da criminalização da homofobia: Celso de Mello, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Roberto Barroso.

O julgamento é baseado na ADO 26 (Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão) e do MI 4733 (Mandado de Injunção), apresentadas pelo PPS (Partido Popular Socialista) e pela ABGLT(Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros).


A ESTRATÉGIA JURÍDICA

Até 2007, essas ações serviam apenas para dar ciência ao Poder Legislativo de que havia uma mora. Naquele ano, quando o STF examinou a mora legislativa em relação ao direito de greve dos servidores públicos, a lei de greve do setor privado passou a ser aplicável, como efeito concreto de uma interpretação conforme a Constituição (ou seja, o intérprete adota a interpretação mais favorável à Constituição Federal, considerando-se seus princípios e a jurisprudência, sem, contudo, se afastar da finalidade da lei).

A Constituição Federal determina, em seu artigo 5º, inciso XLI, que a "lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". Esse dispositivo até os dias atuais não mereceu a atenção do Congresso Nacional, no sentido de criar uma legislação que tipifique o crime de homofobia. É essa omissão que está sendo questionada pelas duas ações.

O julgamento atende a um pleito antigo da chamada comunidade LGBTTT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) ou LGBTT+ (intersexos).

Em resumo, as ações postulam:

a) Que sejam reconhecidos que a homofobia e a transfobia se enquadram no conceito ontológico constitucional de racismo nos termos do julgamento do HC 82.424 RS (caso Ellwanger), racismo (art. 5º, inciso XVII) e da Lei nº 7.716/89, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor
  ; 

b) Que seja declarada a mora inconstitucional, concedendo-se prazo para que o Congresso Nacional produza a lei específica que tipifique a homofobia como ilícito penal.

O Caso Ellwanger é uma referência a um livreiro que publicava obras com conteúdo antissemita, no Rio Grande do Sul. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul condenou-o por racismo, com base na legislação de 1989, e o STF negou-lhe um pedido de habeas corpus. 

No bojo desse julgamento, o Supremo entendeu que o racismo é um conceito político social mais amplo, não só para questão de raça, cor de pele, mas que se enquadra em qualquer tipo de inferiorização de um grupo por outro, por um atributo que o grupo tenha. Assim, foram incluídos judeus nesse grupo. E agora se pede a inclusão da comunidade LGBTI na Lei Federal 7716/89 – Lei Antirracismo, por raciocínio analógico. 

OS FUNDAMENTOS TEÓRICOS DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

A discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero retira das pessoas a justa expectativa de que tenham igual valor. 
O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero e a orientação sexual. 

Tratados internacionais de que o Brasil é parte e a Constituição de 1988 orientam a criminalização de toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais (o direito à igualdade está no art. 24 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos); a proibição contra a discriminação, no art. 4º da Convenção para Eliminação da Discriminação Racial e no art. 2º do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos). 

Qualquer tipo de discriminação, inclusive a que se fundamenta na orientação sexual das pessoas ou da identidade de gênero, é atentatório ao Estado Democrático de Direito, segundo o Relator, Ministro Celso de Mello.

Existem vários relatórios elaborados pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos que mostram o Brasil como o país onde mais ocorrem relatos de violência contra a população LGBT.

Também o STF já havia reconhecido que “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero” e que “a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la” (ADI 4.275, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. para o Acórdão Min. Edson Fachin, acórdão ainda pendente de publicação).

Em outro julgamento, o STF já declarou que reconhecimento do direito à liberdade de orientação sexual condiz com a própria liberdade existencial do indivíduo (ADPF 291, Rel. Min. Luiz Roberto Barroso, DJe 10.05.2016).

Já houve precedentes que diretamente examinaram o conteúdo do direito previsto no art. 5º, XLI, da Constituição Federal, que trata da crimes de discriminação . Por exemplo, na ADI 4.424, sob Rel. Ministro Marco Aurélio, DJe 31.07.2017, o Plenário do STF deu interpretação conforme à Constituição para que não fossem aplicados à lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher os dispositivos da lei dos juizados especiais.

O fato é que a proteção dos direitos fundamentais pode implicar também na criação de tipos penais próprios. A Constituição de 1988 contém um significativo elenco de normas que, em princípio, não outorgam direitos, mas que, antes, determinam a criminalização de condutas (CF, art. 5º, XLI, XLII, XLIII, XLIV; art. 7º, X; art. 227, § 4º). 

Em todas essas normas é possível identificar um mandato de criminalização expresso, tendo em vista os bens e valores envolvidos. 

O Ministro Fachin alegou que 


  1. "(...) os direitos fundamentais não podem ser considerados apenas como proibições de intervenção (Eingriffsverbote), expressando também um postulado de proteção (Schutzgebote). 
  2. Pode-se dizer que os direitos fundamentais expressam não apenas uma proibição do excesso (Übermassverbote), como também podem ser traduzidos como proibições de proteção insuficiente ou imperativos de tutela (Untermassverbote).
  3. Os mandatos constitucionais de criminalização, portanto, impõem ao legislador, para o seu devido cumprimento, o dever de observância do princípio da proporcionalidade como proibição de excesso e como proibição de proteção insuficiente.” (HC 104410, Relator(a): Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 06/03/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe062 DIVULG 26-03-2012 PUBLIC 27-03-2012). "

De acordo com esse entendimento, o princípio da proporcionalidade, na modalidade de proibição de proteção insuficiente, é o fundamento pelo qual o STF tem reconhecido que o direito penal é o instrumento adequado para a proteção de bens jurídicos 

IDENTIDADE DE GÊNERO

“A identidade de gênero é a vivência interna e individual do gênero tal como cada pessoa o sente, o qual pode ou não corresponder com o sexo designado no momento do nascimento, incluindo a vivência pessoal do corpo (que pode compreender – ou não – a mudança da aparência ou função corpora por meio de procedimentos médicos, cirúrgicos ou de outra índole, sempre que ela for livremente escolhida) e outras expressões de gênero, incluindo a vestimenta, o modo de falar e as maneiras.

ORIENTAÇÃO SEXUAL

“Se refere a atração emocional, afetiva e sexual por pessoa de um gênero diferente do seu, ou do seu mesmo gênero, ou de mais um gênero, assim como a relações íntimas e/ ou sexuais com essas pessoas.


PROJETOS DE LEI

Hoje existem, ao menos, dois projetos que propõem a criminalização da homofobia. O Projeto de Lei da Câmara (PLC) 122, de 2006, proposto pela ex-deputada federal Iara Bernardi (PT-SP), está arquivado no Senado. Em 2014, a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) apresentou o PL 7.582, com a mesma proposta, que está paralisado na Câmara.

sábado, 9 de fevereiro de 2019

O PACOTE ANTICRIME DO EX JUIZ MORO

O pacote anticrime de Moro é um tiro no pé para a segurança pública. Sem se reportar a dados, estatísticas, fundamentações teóricas criminológicas sem avaliações de impacto orçamentário, o projeto é uma ameaça ao país e uma afronta a consciência jurídica nacional, por vários motivos.
Além de ferir a Constituição em vários aspectos, contrariar decisões do STF, ainda cria novos tipos penais e pretende retardar a saída dos presos do sistema carcerário, sem medir os impactos desses medidas para um sistema penitenciário à beira do colapso.
A título de esclarecimento preliminar é preciso dizer que o STF já tomou posição em relação ao regime integral fechado da pena e também em relação ao regime fechado inicial obrigatório. O pacote de Moro vai na direção contrária ao entendimento da Corte Suprema.
Sobre a questão da presunção da inocência e trânsito em julgado na segunda instância, o STF ainda vai se posicionar, o que atesta que o caminho seria uma emenda constitucional e não uma lei ordinária, como propõe Moro. Nesse caso, a proposta somente reforça o argumento de que a condenação em segunda instância carece de previsão legal e, portanto, não é permitida pelo nosso ordenamento jurídico.
A proposta de vídeo conferência vai desvirtuar o sistema de audiências de custódia, um espaço criado para permitir o contato direto do preso com o juiz, que avaliará, dentre outras coisas, eventuais abusos e violências praticadas contra ele.
O plea bargain tem problemas no seu país de origem e vem sendo apontando como responsável pela explosão carcerária, atingindo especialmente latinos e negros. Num país desigual como o Brasil, com precária institucionalização das defensorias públicas, o acordo será prejudicial especialmente para os mais pobres.
Em resumo:
1 - a proposição de regime inicial obrigatório em casos de reincidência ou crime habitual, corrupção ou peculato, por si só é uma bomba. Pode aumentar em 80% a população carcerária.
2 - é omisso em questões envolvendo o fortalecimento do sistema de segurança, estratégia de investigação científica, proteção a testemunha, unificação de polícias e de procedimentos, proteção e garantias da carreira policial, controle do uso abusivo da violência e corrupção interna.
3 - é omisso em relação a crimes praticados por corporações privilegiadas no atual sistema, como policiais, juízes, promotores e especialmente políticos.
4 - é omisso quanto às estratégias de prevenção ao crime, ressocialização de detentos, organização do sistema prisional e atendimento em políticas públicas de segmentos agenciados para o crime, especialmente a juventude pobre e negra das periferias.
5 - propõe a execução de pena em segunda instância por lei ordinária, contrariando a Constituição Federal.
6 -propõe o cumprimento da pena logo após a condenação pelo tribunal do júri, incrementado mais ainda o encarceramento.
7 - nos crimes hediondos propõe 60% do cumprimento da pena, para a progressão de regime, retardando o tempo de permanência da massas carcerária nos presídios.
8 - dificultando a prescrição penal sem qualquer proposta que resguarde o regular e ágil andamento processual.
9 - aumenta em 1/4 da pena os crimes praticados com arma de fogo.
10 - propõe o "plea bargain", do modelo americano, um acordo para aplicação imediata da pena, que, dentre outras coisas, afronta o princípio constitucional do devido processo legal.
11 - com a proposta do "informante do bem", aumentará os casos de delação em crimes contra a administração pública, em troca de recompensas.
12 - imposição de regime obrigatório fechado para lideranças de organizações criminosas, sem possibilidade de progressão de regime enquanto mantiver o vínculo com a organização, fato de difícil apuração e comprovação ao longo do cumprimento da pena. Salientando que na maioria dos Estados os presos estão divididos por facções nas unidades prisionais.
Dentre essas propostas, chamamos a atenção para o forte viés punitivista e encarcerador. O impacto delas para o sistema carcerário, num país que ostenta a terceira maior população carcerária do mundo, não foram mensurados. A lógica que as orienta apenas agravará o problema da violência e contribuirá para o colapso do sistema penitenciário. 
Isso tudo sem ainda fazer uma análise acerca da proposta que altera o princípio da legítima defesa, com impacto inegável sobre a questão da letalidade policial.