domingo, 28 de junho de 2015

A Nota da Pastoral: tempos difíceis ou sinais do fim do mundo?







Espantoso o debate envolvendo o Governador Flávio Dino e o representante da Pastoral Carcerária no Maranhão. Algo que deveria ser um momento de diálogo entre governo e sociedade civil descambou para o campo da desqualificação pessoal e para o ataque à honra subjetiva do padre Roberto Perez Cordova.

No dia 27, em reunião com diferentes entidades da sociedade civil em que se apresentava o projeto de lei da criação do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura e o Comitê Estadual de Combate à Tortura, o Governador apresentou um cenário de melhoria do sistema prisional e foi questionado pelo coordenador da Pastoral.

Visivelmente, irritado, o governador afirmou que o padre não conhecia a história do Maranhão, que sua posição era uma postura política e preconceituosa, e que ele não tinha senso crítico.

O episódio culminou com uma nota da entidade, seguida de uma resposta oficial do governo mais ofensiva ainda. Não satisfeito, o governador ainda replicou no twitter mais ofensas pessoais ao padre Roberto Perez Cordova. Afirmo que aquilo que poderia ser um debate se transformou em ofensa pessoal ao padre, por vários motivos:

a) O padre Roberto Perez Cordova não estava na reunião como pessoa física e sim representando uma entidade da sociedade civil com longa trajetória de acompanhamento do sistema prisional brasileiro;

b) Os adjetivos e termos utilizados na nota oficial, tipo "a nota é absolutamente inverídica"; "a nota atribuída à Pastoral Carcerária deriva da revelação de que um dos seus membros recebia remuneração indevida de uma empresa terceirizada no sistema penitenciário. O que gera, aí sim, reações prepotentes e descontroladas", traduzem bem a marca da agressão e não o desejo de debater;

c) No twitter, lê-se claramente o governador afirmando: "Qual a legitimidade da crítica de alguém que recebia dinheiro do Governo anterior e está irritado por que perdeu a benesse??", ou "Nosso governo se recusa a pagar "mensalinhos". Para qualquer autoridade: civil, militar ou eclesiástica. Isso desperta reações lamentaveis".



d) Tais ofensas foram praticadas também pelo próprio governador, que acusa o padre de haver recebido salário ilegal do Governo anterior. Isso é grave. Para o governo atual, o padre Roberto não teria legitimidade para criticar as condições atuais do sistema penitenciário porque simplesmente seria criminoso ou corrupto.

e) E a acusação do percebimento de salário ilegal é apontada em relação ao padre Roberto, omitindo que as empresas terceirizadas continuam a operar contratos por indicações de aliados do atual governo, envolvido nas tradicionais práticas de empreguismo de parentes. Quer dizer: para quem não colabora com o governo é crime, para quem o apoia, não. E lembramos que tais mecanismos não traduzem qualquer ilegalidade, sobretudo quando não envolvem clientelismo e patrimonialismo. E não foi o caso do padre, mexicano de origem, apartidário e sem demanda por emprego.

Esse modo de lidar com a crítica revela a antiga estratégia de tangenciar o debate na arena pública para tentar desqualificar a opinião divergente, atacando as pessoas e não seus argumentosl. Nem de longe isso representa a mudança e nem tampouco a esperança.

As críticas que a Pastoral Carcerária faz ao sistema penitenciário maranhense são acertadas, porque resta claro que nenhuma mudança estrutural poderá ser feita em tão pouco tempo. Por isso não é hora de fazer autoelogios, mas sim de reconhecer limites, abrir o governo para a participação da sociedade civil, criar mecanismos de controle e fiscalização dos presídios, preparar o sistema para um novo paradigma.

Muito do que se propala hoje como obra desse governo já havia ocorrido no final do governo anterior, a partir da construção de um espaço crítico, sobretudo depois da denúncia internacional, onde várias entidades do Estado figuram como peticionárias. Dou como exemplo: desde setembro até dezembro não havia ocorrência de mortes, nem de fugas; os presos voltaram para as celas; as facções foram separadas em presídios diferentes (e esse é um debate com o qual nos preocupamos, porque não sabemos que tipo de soluções o governo dará para recuperar o direito do preso ao regime escalonado previsto na execução penal).

O retorno das fugas e das mortes foram assinaladas pela SMDH, no balanço dos 100 dias de governo (https://smdhvida.wordpress.com/violencia-e-letalidade-poli…/). Era disso que tratava padre Roberto quando foi deselegantemente rebatido pelo governador. E muito mais teria eu a dizer sobre os sinais visíveis de retrocesso, incluindo a ausência de diálogo, o retorno dos ficha-suja nos cargos estratégicos, o esvaziamento da função da correição, o desmantelamento da escolta hospitalar etc.

Não aconselharia ninguém a participar do governo anterior e nem deste mas reconheço na pessoa do padre Roberto um idealista, como tantos outros, que participaram de governos, por vezes pagando despesas do próprio bolso. Tentar desqualificá-lo a ponto de acusá-lo de práticas criminosas significa que esse governo já está ultrapassando todos os limites do aceitável.

E isso é triste, poque o papel das entidades da sociedade civil é fazer a necessária tensão para que os governos acertem, avancem e garantam cada vez mais os direitos de todos e todas. Interpretar a função da crítica como ameaça relembra os sombrios tempos das ditaduras. Essa é minha posição pessoal sobre o assunto.

sexta-feira, 19 de junho de 2015

A guerra silenciosa nos campos naturais maranhenses




Historicamente, os Campos Naturais da Baixada Maranhense foram palco de inúmeros conflitos. Representam, por sua riqueza biótica, um ecossistema aberto estratégico para a sobrevivência das comunidades tradicionais que habitam no seu entorno.

É o maior conjunto de bacias lacustres do Nordeste, com influência de ambientes costeiros e marinhos, abrangendo 32 municípios.

Por sua importância, a área foi designada como Sítio Ramsar, no ano de 2000. A Convenção Ramsar é um tratado intergovernamental fundamentado no reconhecimento, pelos signatários, da importância ecológica e do valor social, econômico, cultural, científico e recreativo das zonas úmidas.

Os Campos Naturais da Baixada, portanto, estão compreendidos no conceito de zona úmida - toda extensão de pântanos, charcos e turfas, ou superfícies cobertas de água, de regime natural ou artificial, permanentes ou temporárias, contendo água parada ou corrente, doce, salobra ou salgada, que fornece serviços ecológicos fundamentais, atendendo necessidades de água e alimentação para as espécies de fauna e flora e para o bem-estar de populações humanas, rurais e urbanas.

A região também foi legalmente considerada uma Área de Preservação Ambiental - APA, desde o ano de 1991 (a APA da Baixada Maranhense foi criada pelo Decreto Estadual nº 11.900, de 11/06/1991 ), convive com a criação extensiva do gado bubalino desde a década de 1960, o que deu origem à disputa territorial até os dias atuais, com o cercamento dos campos.

Hoje, o cercamento dos campos está relacionado não apenas à criação do gado bubalino, mas também à chegada de grandes grupos empresariais interessados no cultivo do arroz. O cercamento representa a primeira etapa da apropriação individual do ecossistema público, que logo em seguida é introduzido no mercado imobiliário.

O cenário por onde a nova onda de privatização atravessa é aterrador. O ecossistema é devastado para dar lugar a grandes plantações de arroz. Diante da omissão das autoridades, da ineficácia dos instrumentos legais e ambientais criados, as comunidades tradicionais já deflagraram a guerra contra as cercas, em várias localidades de Anajatuba.

O Órgão do Ministério Público, ouvindo o clamor do povo, expediu notificações para que os proprietários retirem as cercas dos campos, mas alguns resistem. Não há outra alternativa senão defender a propriedade pública da sanha dos grileiros, botando abaixo o arame, por iniciativa coletiva dos verdadeiros guardiões do ecossistema: as comunidades tradicionais baixadeiras.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Somos todos velhas crianças: a ideologia da redução da maioridade penal por Gustavo Barbosa

“Somos velhas crianças, gente que nasce com oitenta anos”, sentenciou Antonio Gramsci, em artigo publicado em 19 de agosto de 1916 na coluna Sotto la Mole do jornal Avanti![1]. Ainda nas palavras do filósofo italiano, a natureza atávica de tal velhice decorreria do acúmulo de tradições que pesam sobre nós, exigindo um grande esforço para carregá-lo junto às convenções centenárias que recaem implacavelmente sobre os ombros das gerações mais recentes. “O esforço para superá-las deve sintetizar todos os esforços das gerações passadas”, prossegue Gramsci, observando que estas gerações “não hesitaram em combater por nós, em nos abrir um caminho menos povoado de turbulências, de obstáculos que nada são quando considerados um a um, mas que são formidáveis em seu conjunto”.

O ideário conservador, que congloba ainda hoje boa parte dos obstáculos mencionados por Gramsci, vem, aparentemente, ganhando cada vez mais adeptos tanto em nossa sociedade como no Congresso Nacional, dada a hipertrofia das bancadas ruralista, fundamentalista e do agronegócio na atual legislatura. O pacote de ideias reacionárias encampado por uma considerável parte de nossos deputados e deputadas vai desde a constitucionalização do financiamento empresarial de campanhas – passando pela flexibilização das hipóteses de contratação por terceirização e pela abrangência da isenção tributária a igrejas – à negação da cidadania LGBT. A cereja do bolo, tema da vez que se encontra às vésperas de ser votado, se trata da redução da maioridade penal, proposta que, a exemplo das demais, recebe a incorrigível chancela de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, acusado, por recente editorial da Folha de São Paulo, de transformar a casa em um verdadeiro picadeiro pseudo-religioso[2].

A redução da maioridade penal, como praticamente toda medida que dialoga com a intensificação dos mecanismos de vigilância e repressão, parte da já amplamente superada perspectiva contratualista, fonte do Direito Penal moderno que propugnava o livre-arbítrio como a única e inconteste origem de condutas tidas como criminosas. Émile Durkheim, pai da sociologia moderna, já frustrava os contratualistas ao asseverar que o crime se trata de um fato social, e as causas de um fato social não podem ser encontradas em circunstâncias individuais[3].

Ainda que superado racional, acadêmica, empírica, técnica, histórica, estatística e até literariamente, o paradigma liberal do contratualismo ainda parece seguir hegemônico em sua declarada ignorância quanto às circunstâncias sócio-econômicas e históricas do crime. Não lhes interessa se Beccaria – cujos escritos são o alicerce do Direito Penal moderno – há 250 anos já concluira que é preferível prevenir os delitos a ter de puni-los, devendo todo legislador sábio procurar impedir o mal a repará-lo, muito menos se todos os índices apontam para o retumbante fracasso da atual política criminal voltada ao encarceramento em massa, representação do mecanismo de garantia das desigualdades da relação capital/trabalho assalariado, como bem ensina o professor Juarez Cirino dos Santos, em recente artigo publicado aqui no Justificando[4].

Da mesma forma, pouco interessa se inexistem experiências práticas onde a redução da maioridade penal apontou para a diminuição dos índices de criminalidade – havendo países, inclusive, que reverteram a legislação nesse sentido ao perceberem sua franca ineficácia, a exemplo da Colômbia e da Costa Rica[5]. O que realmente interessa com a intensificação das medidas repressivas, segundo Durkheim, é a satisfação da consciência comum, lasciva por punição e reprodutora de um incontrolável fetiche por penas rigorosas, muitas das quais desumanas e ao arrepio da lei, ainda que na prática não surtam nenhum resultado que não a contemplação pessoal pelo sofrimento alheio.

O resultado é o que assistimos diariamente: a irracional eleição de soluções particulares e egoísticas (pena de morte, endurecimento das penas, trabalhos forçados, redução da maioridade, etc) baseadas unicamente nessa necessidade de satisfação pessoal para lidar com um problema de ordem pública e (super)estrutural, relacionado intrinsecamente à própria lógica das relações de produção[6], cuja solução passa longe de qualquer medida que não objetive dar novos e diversos rumos à vigente política encarceradora e repressiva de nosso sistema penal.

Assim, por qual razão o fetiche punitivista permanece forte mesmo diante da miríade de dados, informações e pesquisas que atestam o caráter disfuncional das medidas que nele se baseiam, a exemplo de relatório da ONU publicado em maio deste ano, cuja categórica conclusão é a de que a redução da maioridade penal agrava contextos de vulnerabilidade e reforça a discriminação racial e social.[7]

O recrudescimento das penas e a explosão da população carcerária, a partir da década de 80 – modelo de política criminal que permanece em vigor até os dias atuais – são expressões de um paradigma político-econômico que deslegitima a intervenção do Estado na economia como fator fundamental para a redução das desigualdades sociais, principal motriz da criminalidade. Tal modelo, legitimado pela superficial opinião hegemônica de que quanto mais duras as penas e mais gente encarcerada menor o número de crimes, não vê outra maneira de lidar com tais desigualdades senão por meio do patrulhamento policial ostensivo, da ameaça constante do encarceramento e, sobretudo, do isolamento em massa de populações tradicionalmente vulneráveis vítimas do estigma da marginalização.

Ainda, para esta mesma perspectiva hegemônica liberal-individualista, tais populações se encontrariam em situação de vulnerabilidade por “geração espontânea”, termo utilizado por Marx e Engels ao ironizarem a cosmovisão idealista – e histórica – de Feuerbach em A Ideologia Alemã. Estariam ali, portanto, tão somente em razão delas próprias, de sua preguiça ou esforço próprio, não compreendendo que o mundo sensível, palpável, “não é um objeto dado imediatamente, eterno por toda a eternidade, um objeto sempre igual a si mesmo, mas sim o produto da história e do estado da sociedade, na verdade, no sentido de que é um produto histórico, resultado da atividade de várias gerações (…)”[8].

Ademais, uma vez que o combate à desigualdade social implica diretamente em políticas de (re)distribuição de renda, justificando, nas palavras de Bertrand Russell[9], a interferência do Estado na privação de confortos e privilégios de uma minoria dirigente a fim de suprir as necessidades fundamentais de uma maioria solapada de sua dignidade e carente de condições materiais mínimas para o exercício de sua liberdade, não assusta que boa parte da sociedade – que não faz parte desta classe dirigente – se coloque de forma favorável a iniciativas tais quais a redução da maioridade penal, uma vez que, voltando a Marx e Engels, “as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes; (…) A classe que dispõe de meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo, as ideias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual[10]”.

Eduardo Galeano, em De Pernas pro Ar, observa que o racismo, assim como o machismo, justifica-se pela herança genética: não são os pobres uns fodidos por culpa da história, e sim por obra da biologia. É a “geração espontânea” de Marx e Engels, visto que carregam no sangue seu destino e, pior, os cromossomos da inferioridade que, por sua vez, costumam se misturar com as perversas sementes do crime.

Eis o discurso hegemônico reproduzido pelo arqueológico Cunha e por uma sociedade esquizofrênica que em regra acolhe, acriticamente, uma racionalidade que corresponde a interesses que se encontram a léguas de representar a vontade geral definida por Rousseau como aquela que, ao contrário da mera somatória de interesses individuais (vontade de todos), tem como meta uma sociedade verdadeiramente solidária e igualitária.

No caso da redução da maioridade penal, Cunha e sua obscurantista turba de asseclas vem se arvorando no fato de terem a maioria da opinião pública ao seu lado, mesmo que esta maioria não perceba o tiro no pé que representa tal medida. A falta de sentido dessa dominação cultural é denunciada por Slavoj Zizek[11] quando coloca que “nas sociedades contemporâneas democráticas ou totalitárias… o distanciamento cínico, o riso e a ironia são, por assim dizer, parte do jogo. A ideologia dominante não é para ser levada a sério ou tomada ao pé da letra”. O embate é realmente desigual. Mas qual deles não é?

Gustavo Henrique Freire Barbosa, advogado, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RN, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), integrante do Instituto de Pesquisa e Estudos em Justiça e Cidadania (IPEJUC), mestrando em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
[1] GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos, p. 67. 2004, Civilização Brasileira.
[2] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/222659-submissao.shtml
[3] Durkheim, Émile, Les Régles de la Méthode Sociologique, disponível em http://classiques.uqac.ca/classiques/Durkheim_emile/regles_methode/Durkheim_regles_methode.pdf
[4] http://justificando.com/2015/05/28/memorial-criminologico-ou-a-necessidade-de-retomar-marx/
[5]http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2015/04/02/internas_polbraeco,477979/maioridade-penal-acima-dos-18-e-adotada-em-mais-de-50-paises-diz-unic.shtml
[6] ZAFFARONI, Eugênio. Em busca das penas perdidas – A perda de legitimidade do sistema penal. 2006, p.58. Revan.
[7] http://nacoesunidas.org/nacoes-unidas-no-brasil-se-posicionam-contra-a-reducao-da-maioridade-penal/
[8] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 2010, p. 74. Martin Claret.
[9] RUSSELL, Bertrand. Ensaios Céticos. 2010, p. 162. L&PM Pocket.
[10] Idem, p. 78.
[11] ZIZEK, Slavoj. El sublime objeto de la ideología, 1992, Pág. 65. Siglo XXI.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

A farra dos túneis

No blog do Silvan Alves figuram as imagens do último túnel encontrado em Pedrinhas. Desta fez, o buraco estava sendo escavado no CDP.

Já fazia algum tempo que não se registrava essa modalidade de tentativa fuga. Estive no CDP recentemente. As revistas de cela ocorrem pelo menos duas vezes por semana. O ideal seria que ocorressem mais vezes, mas não há efetivo para tanto no sistema.

Mas cabe uma reflexão. Um túnel desse tipo requer o armazenamento de muito material de escavação, que precisa ser oculto. Duas revistas por semana não seria suficientes para detectar essa estranha movimentação num cubículo de poucos metros quadrados?


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Mapa do Encarceramento: Quem são os criminosos?


Por Leonardo Isaac Yarochewski



A população prisional no Brasil cresceu 74% entre 2005 e 2012. Em 2005, o número de presos no país era 296.919, sete anos depois, passou para 515.482. A população prisional masculina cresceu 70%, enquanto a feminina aumentou 146% no mesmo período.

Os dados estão no estudo Mapa do Encarceramento: os Jovens do Brasil, divulgado no último dia 3 de junho pela Secretaria-Geral da Presidência da República. O levantamento foi feito pela pesquisadora Jacqueline Sinhoretto com base nos dados do Sistema Integrado de Informações Penitenciárias (InfoPen), do Ministério da Justiça. Segundo o estudo, o crescimento foi impulsionado pela prisão de jovens, negros e mulheres.

Hoje, a população carcerária brasileira ultrapassa a cifra de 715.000 presos, contando os que estão em prisão domiciliar, é a terceira maior população carcerária do mundo. Uma proporção de 358 pessoas presas para cada 100 mil habitantes. Estima-se que se forem computados também o número de pessoas condenadas às penas restritivas de direitos, não há dados atualizados sobre esta modalidade de pena, este número ultrapassaria 1 milhão e 500 mil pessoas sob alguma forma de controle penal e de cumprimento de pena.

A população carcerária brasileira é formada em sua maioria por homens negros, com baixa escolaridade e por jovens. O estudo mostra que menores de 29 anos, embora representem 10% da população brasileira, são responsáveis por 55% da lotação dos presídios no País. Homens negros, por sua vez, têm o risco 1,5 vezes maior de ser preso do que um homem branco. Em 2012, por exemplo, para cada grupo de 100 mil habitantes brancos, havia 191 brancos encarcerados, enquanto para 100 mil habitantes negros, 292 negros encarcerados.

Ainda, de acordo com o levantamento, 38% dos presos estão sem julgamento. Ou seja, são presos provisórios que inclusive poderão ser absolvidos. Estes dados revelam o desprezo pelo princípio constitucional da presunção de inocência (art. 5º, inc. LVII da Constituição da República). Entre os presos condenados, 69% estão no regime fechado, 24% no regime semiaberto e 7% no regime aberto. Quase metade (48%) dos presos foi condenado à pena de até 08 anos de prisão.

Como bem avaliou o secretário Nacional de Juventude, Gabriel Medina, “O Brasil encarcera muito, encarcera mal e não ressocializa seus presos“. Somando crimes contra patrimônio e de drogas correspondem cerca de 70% das causas das prisões.

Contudo, é necessário destacar que, o que é considerado tráfico para alguns, no caso dos mais vulneráveis e etiquetados pelo sistema penal, para outros é considerado porte de drogas. Não é sem razão que a grande maioria da população carcerária é composta por negros e pobres. O sistema penal é seletivo. Como bem destacou a autora da pesquisa,Jacqueline Sinhoretto, “há uma aplicação desigual das regras e procedimentos judiciais”. Assim, por exemplo, no momento em que o policial escolhe quem deve ou não revistar. Ou a maneira de tratar uma pessoa flagrada portando uma determinada quantidade de entorpecentes. “A quantia pode ser a mesma. Determinadas pessoas podem ser acusadas por porte e outras por tráfico“, disse a pesquisadora.

Os dados do referido Mapa vêm confirmar o que há tempos foi delineado por Augusto Thompson em sua obra “Quem são os criminosos?”. Segundo o autor, o primeiro traço básico da imagem do criminoso que representa para si mesma a ideologia dominante, refere-se a seu “baixo status social”. De acordo com Thompson, pedindo a uma pessoa que descreva a figura de um delinquente típico, teremos, em função da resposta, “o retrato preciso de um representante da classe social inferior”, o que poderá estabelecer “o intercâmbio entre pobreza e crime”. Ao afirmar que o criminoso é, caracteristicamente, pobre, alerta Thompson, “abre-se facilmente a possibilidade de inverter os termos da equação, para dizer: o pobre é, caracteristicamente, criminoso”. Tudo isto, vem corroborar com uma das conclusões a qual chegou à pesquisadora no Mapa do Encarceramento, de que o sistema penal é desigual, tratando os mais vulneráveis (pobres, negros, favelados, etc.) – os que precisamente deveriam receber maior amparo por parte do Estado – com maior rigor e violência.

Os dados extraídos do Mapa do Encarceramento, como toda pesquisa séria, é de suma importância para compreensão da criminalidade. Como destaca o criminólogo Alessandro Baratta, “não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituição penitenciárias que as aplicam), e que, por isso o status social de delinquente pressupõe, necessariamente, o efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como delinquente”. [1]

Aqui entra a teoria do “labeling approach” (enfoque do etiquetamento), cujo nome provém de sua tese central: a criminalidade não é uma qualidade de uma determinada conduta, senão o resultado de um processo de atribuição de tal qualidade, de um processo de estigmatização. A criminalidade, explica Winfried Hassemer, é uma etiqueta “que se aplica por la policia, los fiscales y los tribunales penales, es decir, por las instancias formales de control social”[2]

O criminólogo Juarez Cirino dos Santos, com sua visão humanista e crítica, discorre sobre os objetivos reais (ou latentes), nos quais se manifestam as dimensões de ilusão e de realidade dos fenômenos da vida social nas sociedades contemporâneas, identificados pelo discurso crítico da teoria criminológica da pena.

Segundo Juarez Cirino, “a política de controle social instituída pelo Direito Penal e implementada pelo Sistema de Justiça Criminal inclui o conjunto do ordenamento jurídico e político do Estado, além de outras instituições da sociedade civil, como a empresa, a família, a escola, a imprensa, a Igreja, os partidos políticos, os sindicatos, os meios de comunicação etc.As formas jurídicas e políticas do Estado e as organizações da sociedade civil convergem na tarefa de instituir e reproduzir uma determinada formação econômico-social histórica, em que os homens se relacionam como integrantes de classes ou de categorias sociais estruturais da sociedade. O Direito Penal e o Sistema de Justiça Criminal constituem, no contexto dessa formação econômico-social, o centro gravitacional do controle social: a pena criminal é o mais rigoroso instrumento de reação oficial contra as violações da ordem social, econômica e política institucionalizada, garantindo todos os sistemas e instituições particulares, bem como a existência e continuidade do próprio sistema social, como um todo”.[3]

Diante dos dados trazidos a baila pelo Mapa do Encarceramento, não se pode olvidar, principalmente em razão da duplicação da população carcerária na última década, dos efeitos criminógenos do cárcere. Louk Hulsman observa que “o condenado à prisão penetra num universo alienante, onde todas as relações são deformadas. A prisão representa muito mais que a privação da liberdade com todas as suas sequelas. Ela não é apenas a retirada do mundo normal da atividade e do afeto; a prisão é, também, e principalmente, a entrada num universo artificial onde tudo é negativo. Eis o que faz da prisão um mal social específico: ela é um sofrimento estéril”. [4]

No mesmo sentido, Juarez Cirino adverte que “a crise da execução da pena, como realização do projeto técnico-corretivo da prisão, é irreversível. E a explicação da crise é simples: a prisão introduz o condenado em duplo processo de transformação pessoal, de desculturação pelo desaprendizado dos valores e normas de convivência social, e de aculturação pelo aprendizado de valores e normas de sobrevivência na prisão, a violência e a corrupção – ou seja, a prisão só ensina a viver na prisão”. [5]

Ao contrário do que os mais afoitos, ilusionistas e demagogos de plantão podem imaginar, não são arquitetos e engenheiros que resolveram os problemas estampados no Mapa do Encarceramento e demais censos penitenciários, mais do que construir presídios, penitenciárias de segurança máxima e cadeias para presos, é preciso repensar o direito penal e o sistema penal. Este sistema penal que na maioria esmagadora das vezes se dirige contra certas pessoas (prioritariamente os mais débeis e vulneráveis), ao invés de se dirigir contra as condutas (ações e omissões) definidas como crime. Pessoas, segundo Vera Regina Pereira de Andrade, com estereótipos de criminosos que são tecidos por variáveis como statussocial, cor, condição familiar, majoritariamente características pertencentes àquelas pessoas dos baixos estratos sociais, além de outros fatores que contribuem para uma maior criminalização.[6]

O poder seletivo do sistema penal, afirma Zaffaroni, “elege alguns candidatos à criminalização, desencadeia o processo de criminalização e submete-o à decisão da agência judicial, que pode autorizar o prosseguimento da ação criminalizante já em curso ou decidir pela suspensão da mesma.” A escolha, prossegue o jurista argentino, “é feita em função da pessoa (o ‘bom candidato’ é escolhido a partir de um estereótipo), mas à agência judicial só é permitido intervir racionalmente para limitar essa violência seletiva e física, segundo certo critério objetivo próprio e diverso do que rege a ação seletiva do restante exercício de poder do sistema penal, pois, do contrário, não se justifica a sua intervenção e nem sequer a sua existência (somente se ‘explicaria’ funcionalmente)”. [7]

Numa sociedade de classes, destaca Nilo Batista, “a política criminal não pode reduzir-se a uma ‘política penal’, limitada ao âmbito da função punitiva do estado, nem a uma ‘política de substitutivos penais’, vagamente reformista e humanitária, mas deve estruturar-se como política de transformação social e institucional, para a construção da igualdade, da democracia e de modos de vida comunitária e civil mais humanos”.[8]

Seletividade, repressividade e estigmatização, no dizer de Nilo Batista, são algumas das características de sistemas penais como o brasileiro. Não pode o jurista, conclui o eminente professor, “encerrar-se no estudo – necessário, importante e específico, sem dúvida – de um mundo normativo, ignorando a contradição entre as linhas programáticas legais e o real funcionamento das instituições que as executam”.

Por tudo, é forçoso que o Estado Penal seja imediatamente suplantado pelo Estado Social. Necessário que a sociedade entenda que a melhor política-criminal, como já proclamouHassemer, é sua substituição pela política-social. Os dados do Mapa do Encarceramento,bem como o aumento galopante da população carcerária revelado por todas as pesquisas são indicadores de que o sistema penal, que há muito entrou em colapso, é reprodutor da violência e mantenedor das desigualdades e injustiças sociais.

Para ler e compreender os dados e os números trazidos pelo Mapa do Encarceramento, é imperioso que seja retirada a venda dos olhos de Têmis, para que a realidade crua, desumana, discriminatória, cruel e atentatória dos direitos humanos mais elementares seja realmente vista, a fim de que algum dia, quem sabe, “quando o segundo sol chegar para realinhar as órbitas do planeta”, como diz o poeta, possa ser dito que no Brasil além da mera democracia (formal), há uma verdadeira e efetiva democracia (substancial/material), consistente na participação efetiva das pessoas no processo decisório, na qual a dignidade da pessoa humana seja inerente a todos os indivíduos, independente de condição social, sexo, cor e religião. Somente assim, poder-se-á pensar em Estado Democrático de Direito.Leonardo Isaac Yarochewsky é Advogado Criminalista e Professor de Direito Penal da PUCMinas
Dedico este artigo ao Professor Dr. Juarez Cirino dos Santos. Humanista, garantista e combatente das injustiças sociais.
[1](BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Trad. Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999).
[2] (HASSEMER,Winfried. Fundamentos del derecho penal. Trad. Francisco Muñoz Conde y Luis Arroyo Zapatero. Barcelona: Bosch, 1984, p. 82).
[3] (SANTOS, Juarez Cirino dos. Direito penal: parte geral. 6. ed. Curitiba: ICPC, 2014).
[4](HULSMAN, Louk; CELIS, Jacqueline Bernat. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Niterói: Luam, 1993).
[5](Cf. ob. cit. p. 452-453)
[6] (ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão de segurança jurídica: do controle da violência à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003). Trata-se, pois, de um sistema seletivo (quantitativamente e qualitativamente).
[7](ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Trad. Vania Romano e Amir Lopes da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 245-246).
[8] (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1990).

Vitória do Mearim: os policiais militares estavam presentes?



A execução sumária de Vitória do Mearim foi judicializada. Todos os envolvidos diretos no crime estão presos.

No entanto, os policiais militares alegam em sua defesa que não estavam presentes no momento dos disparos efetuados pelo zelador, Luiz Carlos Machado.

Um novo vídeo está sendo divulgado, como possível prova da inocência dos policiais. No entanto, uma análise mais atenta pode ter efeito contrário. Paralisando a imagem é possível constatar que os policiais na viatura que chegava tinham condições de perceber o ocorrido.

Nesse outro vídeo, que circula no youtube, temos impressão parecida.



Mas esse não é o único detalhe incriminador em jogo. A simples presença do zelador, exercendo funções típicas de policia, já é um problema com repercussões graves na esfera funcional de muita gente, não apenas dos PMs presentes no local do crime.

Pelo menos em um aspecto os PMs têm razão: a responsabilidade não pode recair apenas sobre as costas dos peixes pequenos.

Esses dois policiais eram subordinados a um comando e a uma autoridade local. Resta evidente que o zelador estava na operação policial com o conhecimento de autoridades superiores naquele município. E tal fato já vinha ocorrendo há mais tempo, visto que o atirador é reincidente em outro crime semelhante, ocorrido cerca de três anos atrás.

Os familiares desse crime anterior já buscaram a Comissão de Direitos Humanos da OAB para exigir providências em relação ao primeiro processo que visa responsabilizar também Luiz Carlos Machado.

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Apolônio subiu (Obtuário por Zema Ribeiro)






Obituário: Apolônio Melônio
03/06/2015





Apolônio Melônio (23 de julho de 1918 – 2 de junho de 2015) tinha poesia até no nome. Nenhum outro bumba meu boi tinha nome mais apropriado para (res)guardar os seres mágicos que habitavam aquela Floresta, em especial os cazumbás. Tamanha foi sua devoção à Floresta que o grupo tanto era chamado Boi da Floresta como Boi de Apolônio. Faleceu na noite de ontem (2), aos 96 anos, vítima de insuficiência renal após duas semanas internado.

Dessa vez é verdade, após duas barrigadas: uma há poucos dias, fruto do irresponsável jornalismo nosso de cada dia, que publica sem checar; outra, há muito tempo, em 1954, quando um jornal listou-o entre as vítimas do Maria Celeste, navio em que trabalhava – foi estivador –, que afundou após um incêndio.

“Mestre Apolônio havia escapado espetacularmente, prendendo o fôlego e mergulhando por metros e metros sob a superfície do mar em chamas. Nos intervalos do fogaréu sobre as águas, emergia para respirar. Assim conseguiu alcançar a Beira Mar”, lembrou recentemente o jornalista e professor universitário Murilo Santos, em uma rede social.

Nascido em São João Batista – outra predestinação, nascer em lugar com nome de santo junino – Mestre Apolônio veio para São Luís em 1939. Há 42 anos fundou o Boi da Floresta. Antes, com o saudoso Coxinho, foi um dos fundadores do Boi de Pindaré, do mesmo sotaque do grupamento que agora perde seu líder.

“Apolônio foi muito grande em tudo. Fez um trabalho lindo na Floresta, que segue. Tem que ter investimento no bumba meu boi o ano todo, para gerar renda, lazer, turismo, conhecimento”, defendeu a jornalista Giselle Bossard, diretora e roteirista de Brincando na floresta [Brasil, 2014, 30 min.], que ilustra este obituário, documentário curta-metragem sobre o boi e seu amo. Ela é favorável à garantia de um auxílio-saúde e um valor mensal para os mestres de cultura popular a partir de determinada idade. “Estes mestres precisam, levam uma vida pesada”, defende.

Em 2007 Mestre Apolônio foi um dos contemplados com o Prêmio Culturas Populares Mestre Duda 100 anos de Frevo, concedido pelo Ministério da Cultura (MinC). Traduzindo as necessidades apontadas por Bossard, à época, o dinheiro do prêmio custeou um tratamento de saúde do artista.