terça-feira, 9 de maio de 2017

A terra dos índios em Viana: fragmento de história

O episódio envolvendo a emboscada aos Gamela de Viana colocou na ordem do dia um território antigo e conflituoso da Baixada Ocidental.

A gleba é testemunha de uma trajetória de várias comunidades caboclas, cuja identidade étnica teria iniciado seu processo de construção a partir da segunda metade do século XVIII, quando da "domesticação" dos indígenas Gamela.

O trabalho sistemático mais profundo que existe sobre essa espaço territorial ainda é o da antropóloga Maristela de Paula Andrade, realizado no início da década de 80.

Os Gamela foram indígenas que reagiram à invasão de seu território, lutaram contra catequese, contra as bandeiras, contra os sesmeiros e contra as tropas de linha. Com eles aliançaram-se os outros grupos sociais que se insurgiram contra a escravidão e se auto libertaram. Juntos, passaram a constituir redutos que as tropas de linha, durante o século XIX, tentaram dizimar

O primeiro momento do contato dos Gamela com os Jesuítas data de 1751. Até as primeiras décadas do século XIX, esses indígenas, em processo de acamponesamento, ocuparam áreas férteis, cobiçadas pelos que aí desejavam implantar fazendas de arroz e, principalmente, de algodão.

Estamos falando de um território que jamais conheceu a paz na sua relação com a terra, tendo seus habitantes que se confrontar com leis injustas e autoridades contrárias aos seus interesses, durante todo o período de consolidação histórica de suas posses.

As pesquisas apontam os Gamela como os habitantes originários da Terra dos Índios. Mas existem registros de um contato posterior com outra etnia, os Ka'apor, quando se deslocavam em direção ao Maranhão, até pelo menos os anos 60, período em que se afastaram definitivamente.

Na verdade, Viana, no início da colonização, era um verdadeiro laboratório étnico, havendo no Alto e Baixo Pindáré, assim como nas proximidades do lago de Cajari, registro de missões religiosas e aldeamentos indígenas, Tenetehara e Timbira. Isso sem mencionar escravos, ex-escravos, fugidos e libertos, de origem africana, que vieram depois a formar os povoamentos que ainda ali hoje existem.

Viana tem suas origens relacionadas à presença de fundadoras indígenas. As irmãs Ana, Ana Dias e Guardiana deteriam, segundo eles, o controle sobre a região de Viana, de Matinha e do território conhecido hoje como Anadia, também considerado Terra de Índio.

No período que vai de 1750 a 1777  trava-se a disputa entre a administração pombalina e as ordens religiosas, principalmente a dos jesuítas. Exatamente nessa época teriam sido feita a cessão de terras aos índios Gamela.

Dentro da polêmica sobre a escravidão indígena, o Marquês de Pombal optou para que os indígenas fossem livres, mas em áreas que lhe fossem atribuídas e destinadas pela autoridade real.

Os Gamela situavam-se num extenso território entre os rios Mearim e Grajaú. Depois foram se deslocando para noroeste do Rio Pindaré, exatamente onde hoje se localiza a Terra dos Índios, local reservado pela Coroa para sua permanência definitiva.

 A doação efetuada pela Coroa Portuguesa aos indígenas, ocorreu um ano após o Diretório ter sido sancionado por um Decreto Real. O documento é nada menos do que uma carta régia de data e sesmaria que ficou em poder dos indígenas desde o início do século XIX. Posteriormente, foi passando de geração em geração, dos chamados representantes dos índios, seus descendentes.

Esse documento, um decreto real, posteriormente foi confirmado pelo príncipe regente Dom João VI, dando ensejo à matrícula no Livro de Imóveis, de um fraudulento inventário, de onde parte o movimento de intrusão e grilagem que segue até os dias atuais.

No início da década de 80, os caboclos da Terra dos Índios já enfrentavam o último ciclo da intrusão, e desde os anos 60 já não se ouvia mais falar das visitas dos Ka'apor, cujo maior testemunho da presença consiste nos relatos dos antigos moradores. Taquaritiua é o povoado onde as visitas ocorriam e Zé Gurupi, cacique, cujo nome batiza aldeia hoje no atual território Ka'apor, no Alto Turi, era uma referência de autoridade sobre as ditas terras, em Viana.

Padre Eider Furtado, pároco de Viana, era um dos principais aliados da luta pela terra na região. Ele buscou assessoria jurídica para os indígenas e caboclos, pressionados pela sanha dos grileiros. Do seu esforço surgiu o interesse de entidades como Cáritas, SMDDH (atual SMDH) e CPT.

Naquela Diocese havia um bispo também de feição progressista, de onde Padre Eider ia buscar apoio: Dom Hélio Campos. Mas tudo mudou de figura quando sagrou-se bispo da região Dom Adalberto Paulo Silva, em 1975. De posições conservadoras, próximo dos militares e dos grandes proprietários rurais, sua presença significou o afastamento de integrantes do clero local, da ala progressista, incluindo o triste episódio de excomunhão do próprio referido pároco.

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BIBLIOGRAFIA

ANDRADE, Maristela de Paula. Terra de Índio: Identidade Étnica e Conflito em Terras de Uso Comum. São Luís: Ed. UFMA, 1999, 296p

Pereira Gomes, Mércio. O índio na história. O povo Tenetehara em busca da liberdade, Petrópolis, Vozes, 2002, 631 pp.

Ricardo, Carlos A. (Ed.). Povos Indígenas no Brasil,Sudeste do Pará (Tocantins). São Paulo: CEDIed. 1985.


quarta-feira, 3 de maio de 2017

A semântica dos Gamela e o governo avestruz

No dia 30 houve uma verdadeira tragédia na Terra dos Índios de Viana, município a 250 km de São Luís.

Vários indígenas Gamela foram atacados a golpes de facão e armas de fogo. Segundo a CPT,  mais de dez indígenas foram feridos, dentre os quais três de forma mais grave.

Desde 2015 alguns povoados da referida gleba de terras decidiram fazer o processo de retomada do território por conta própria, diante da inércia do Estado.

A chamada Terra dos Índios de Viana é um território oriundo de uma doação de Dom João VI aos indígenas da região.

Desde o início da década de 70, o território convive com um conflito fundiário, que envolve grilagem cartorial e a ação de agentes externos. Parte expressiva da gleba foi apropriada por fazendeiros, pequenos proprietários e posseiros.

As ações fundiárias para resolver o problema foram ineficientes. Nem o INCRA, nem o órgão estadual de terras conseguiram levar a cabo a resolução do litígio.

Sem a pronta intervenção do Estado, desenvolveram-se iniciativas particulares para a inserção das terras no mercado. Prisões e ameaças sempre foram a tônica, com costumeira postura contemplativa dos órgãos de segurança pública e do Poder Judiciário.

Os herdeiros dos Gamela sempre foram invisibilizados na sociedade local e muito os tinham como resíduos ou lembrança de um passado extinto.

Os conflitos que explodiram durante a ditadura militar foram gradualmente deslocados para ações menos coletivas, cada povoado fazendo mediações e recuos para não perder tudo.

Nos últimos anos, um processo coletivo de organização resultou na estratégia da retomada autônoma. O impacto dessas mobilizações assustam a sociedade local, tal como as correrias do século XIX, ensejando ações de retaliação,  muitas vezes incitadas por agentes externos, como pastores e políticos, conforme ocorreu recentemente.

Diante da repercussão da violência, chamou a atenção a postura do Governo do Estado, deflagrando uma verdadeira guerra semântica para reduzir os impactos do problema para sua própria imagem.

Em primeiro lugar, identificou o ataque como um confronto, mistificando o cenário de uma violência planejada, anunciada nas rádios e redes sociais, que convocava a população para a emboscada.

Em seguida, o governo Dino mobilizou toda a sua estratégia de comunicação para desqualificar e relativar a violência, desmentindo publicamente a amputação de membros dos dois indígenas feridos, internados hoje no Hospital Geral de São Luís.

Esse cabo de guerra infantil não tinha um interesse médico, simplesmente. Não era uma tentativa de bem informar a população, mas uma estratégia para desqualificar as entidades de mediação dos indígenas e por consequência a própria luta dos Gamela.

Não haveria, do ponto de vista prático, grandes diferenças entre uma tentativa de homicídio e uma lesão corporal seguida de morte, por exemplo. Assim como não há grande diferença entre fraturas externas, com secção de tendões e ligamentos de um decepamento. Se há, diz respeito mais à atuação dos cirurgiões do que propriamente a de um governo interessado em proteger os mais vulneráveis.

O governo entende a linguagem política que denuncia a violência, o problema é que nas lutas políticas a semântica é uma arma perigosa.

A inescapável relação do governo Dino com o agronegócio o faz resvalar para a disputa semântica, como uma forma de fugir do debate de conteúdo, cujo cerne é o seguinte:

a) como um ataque promovido em rádios e redes sociais numa pequena cidade do interior não chegou ao conhecimento da polícia local?
b) como reage o governo desde 2015, quando passou a acompanhar esse conflito, inclusive participando de reuniões no interior do território?
c) como poderia agir antes para prevenir a violência, promovendo mediações com o governo federal, assim como faz agora, depois do caldo derramado?

Em vez de dirigir suas baterias para o governo federal ou para os agressores, a estratégia de mídia de avestruz parece ter a função de apenas diminuir o governo Dino.