sexta-feira, 31 de julho de 2015

Lei de zoneamento e o direito à cidade


foto: http://vnfoto.blogspot.com.br/2010/01/blog-post_21.html

Já estão ocorrendo as audiências públicas para fazer a revisão da Lei de Zoneamento, Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo Urbano de São Luís.

A proposta apresentada pela prefeitura pretende ampliar o gabarito de construção(número de andares) das zonas, permitindo a construção de prédios de até 31 andares. Só aí temos várias questões que deveriam ser debatidas amplamente, tendo em vista as graves consequências que tais mudanças acarretarão para a mobilidade urbana, o destino dos esgotos e ventilação no interior da ilha.

Também se constata que a proposta prevê ainda a ampliação do distrito industrial, permitindo a instalação de novas indústrias, em áreas já ocupadas por comunidades tradicionais ou em áreas de expansão urbana com ocupações consolidadas.

O distrito industrial sempre operou com violação direitos possessórios e ambientais. Avança nos limites dos padrões legais de emissões de poluentes e ruídos e contamina águas superficiais e subterrâneas. Ele é um enclave que impede a sustentabilidade do ecossistema frágil da Ilha, promove o deslocamento compulsório de comunidades tradicionais e faz pressão para impedir um programa extenso de regularização fundiária na Gleba Tibiri-Pedrinhas, atuando em consórcio com a especulação imobiliária que avança para o noroeste da Ilha, presente especialmente na região do Araçagy e adjacências, Paço do Lumiar e São José de Ribamar.

São Luís não comporta mais tanto adensamento populacional. A primeira ideia de um zoneamento sustentável é permitir que as pessoas trabalhem no mesmo bairro onde residem, reduzindo os gargalos da mobilidade, a emissão de poluentes, o desperdício de tempo nos deslocamentos, com investimentos no lazer, na cultura, no associativismo comunitário e nos vínculos familiares.

A visão imobiliária da Lei de Zoneamento significa o extermínio das já diminutas áreas verdes e maior concentração populacional nas áreas de maior atrativo empresarial ou de maior concentração de equipamentos urbanos, aprofundando as desigualdades sociais e o abandono das periferias.

A questão posta é como esse zoneamento urbano pode funcionar como mecanismo de promoção dos direitos fundamentais à saúde, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao direito de ir e vir com segurança, numa cidade sitiada pelo medo, torturada pelos engarrafamentos, pelo abandono das vias públicas e pela renúncia a qualquer padrão estético.

Em São Luís, a existência de residências localizadas cada vez mais próximas a indústrias significa que o Poder Público Municipal sucumbiu ao poder do mercado, cuja expansão desordenada compromete a oferta de água potável, o direito de moradia, e, em suma, o direito de decidir que tipo de cidade queremos.

O zoneamento permite remodelar o processo de urbanização e poderia ser um processo de deliberação coletiva muito rico, capaz de apontar para os tipo de vínculos sociais, os relacionamentos com a natureza, os estilos de vida, as tecnologias e os valores estéticos que nós desejamos.

O direito à cidade é uma expressão largamente utilizada hoje, mas é um conceito desenvolvido pelo sociólogo francês Henri Lefebvre, em seu livro de 1968, "Le droit à la ville". Ele define o direito à cidade como um direito de não exclusão da sociedade urbana das qualidades e benefícios da vida urbana. David Harvey diz que o direito à cidade "é muito mais do que a liberdade individual para acessar os recursos urbanos: é o direito de mudar a nós mesmos, mudando a cidade".

O direito à cidade está relacionado portanto ao desejo de superação das tragédias sócioeconômicas e ao fenômeno do afastamento das pessoas para as periferias. O zoneamento está no centro da questão, e, de maneira nenhuma, deveria reforçar antigos padrões de exclusão social, cuja principal estratégia é dificultar a participação dos interessados mais vulneráveis.

Mas imagine colocar em prática tudo isso nos limites da coalizão política comandada por Edvaldo Holanda Junior e seus compromissos com o financiamento privado de campanha. No melhor estilo dos Escutas Territoriais, essa participação será cuidadosamente calculada, para não fugir do controle.

Informar e conscientizar o cidadão sobre essas possibilidades e alternativas constitui o objetivo de movimentos sociais espalhados em todo o mundo, que lutam contra o modelo de urbanização de muitas cidades modernas, em que os processos e serviços públicos foram privatizados e onde o desenvolvimento é direcionado por empresas e mercados, como ocorre em São Luís.

Para mudar esse quadro, uma nova Lei de Zoneamento implicaria novos métodos de participação. E para que isso ocorra seria preciso mudar realmente a política.

“A perversão começa na formação”, diz ex-PM condenado

Carta Capital

por Agência Pública* — publicado 31/07/2015 04h21
Na penitenciária de Bangu, ex-soldado da PMERJ Rodrigo Nogueira Batista fala sobre cultura violenta da corporação, corrupção dos oficiais e o revanchismo entre policiais e criminosos

Bel Pedrosa



“Nenhum nenhum recruta sai do CFAP pronto para empunhar uma arma no meio da rua”, diz o ex-PMLeia também


*por Ciro Barros

Com quase dois metros de altura, mais de 100 quilos entre músculo e alguma gordura, o ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro Rodrigo Nogueira Batista, de 33 anos, é um “monstro” como a gíria popular classifica os brutamontes do tamanho dele. A orelha esquerda estourada pelos tatames de jiu-jitsu e o nariz meio torto ajudam a compor a figura do ex-PM preso em Bangu 6 (Penitenciária Lemos de Brito). Essa prisão, destinada prioritariamente a ex-policiais, bombeiros, agentes penitenciários e milicianos, faz parte do Complexo Penitenciário de Bangu, bairro da zona oeste do Rio de Janeiro. Preso desde novembro de 2009, Rodrigo foi condenado pela Justiça Militar a 18 anos por furto qualificado, extorsão mediante sequestro eatentado violento ao pudor e a 12 anos e 8 meses no Tribunal do Júri por tentativa de homicídio triplamente qualificado.

Segundo a condenação judicial, Rodrigo e seu então parceiro, o cabo Marcelo Machado Carneiro, abordaram a vendedora ambulante Helena Moreira na descida do Morro de São Carlos, onde ela morava. Ela iria à estação de metrô Estácio, no bairro do Estácio de Sá, Rio de Janeiro, e levava na bolsa R$ 1.750. Os policiais a revistaram, roubaram a quantia em dinheiro e sequestraram Helena pensando que ela fosse mulher de algum traficante. Segundo a decisão do juiz Jorge Luiz Le Cocq D’Oliveira, os PMs mantiveram a vendedora sob cárcere privado por quatro horas, onde ela foi agredida e “constrangida a praticaratos libidinosos” antes de ser atingida por um tiro de fuzil no rosto, que teria sido disparado por Rodrigo. Ainda segundo a sentença, a vítima se fingiu de morta após a sessão de tortura e foi à delegacia dar queixa. Rodrigo recorreu da sentença no Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele afirma não ter cometido o crime pelo qual foi condenado, mas diz com todas as letras que “não é inocente”, cometeu “outros erros” como policial, que ele não quer detalhar para não complicar sua situação.

Ele é autor do livro “Como Nascem os Monstros”, da Editora Topbooks, um brutal “romance de não-ficção”, em que mistura suas próprias histórias às histórias de outros colegas, casos de repercussão na crônica policial e “causos” da corporação. No livro, Rodrigo descreve com consistência a transformação de um jovem comum, com vagos ideais de defesa da sociedade e combate ao crime, em um criminoso fardado que usa de sua posição para matar, sequestrar, extorquir e prestar serviços à milícia. O resultado é um quadro aterrador de achaque de oficiais aos recrutas, corrupção dos batalhões e uma ácida interpretação da visão da sociedade em relação à polícia.

“Nenhum, eu digo e afirmo, nenhum recruta sai do CFAP [Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças] pronto para empunhar uma arma no meio da rua”, afirma categoricamente o ex-PM. Mas logo ele vai aprender que tem que pagar para tirar férias, para ficar nos melhores postos da corporação e assistir aos oficiais lucrando com a venda de policiamento. “No Morro dos Macacos, ninguém entrava sem autorização do comando. Se um carro fosse roubado, e o bandido fugisse com o veículo para o interior da comunidade, sorte dele (…). Acredite, se um policial adentrar uma comunidade sem autorização do comando, não importa o motivo, ele responderá por descumprimento de ordem. O morro que está ‘arregado’ não tem tiro nem morte, basta estar com o carnê em dia”, denuncia.

“Posso garantir que, ao ingressar na corporação, ninguém acredita que um dia vai sequestrar alguém, roubar seu dinheiro, matar essa pessoa e atear fogo ao corpo. Pode até ter uma vontadezinha de atirar em algum bandido (…), mas pensar em tamanha crueldade é impossível”, narra Rodrigo no livro. “Embaixo da casca monstruosa que envolve esse tipo de criminoso, o policial militar que erra, também havia (há?) um homem que um dia estudou, passou no concurso, se formou, fez um juramento e marchava com garbo. Deu orgulho à sua família e, pelo menos uma vez, arriscou morrer pela sociedade.”

Tenho diante de mim um monstro: alguém condenado por um crime hediondo, mas, na própria metáfora de Rodrigo, alguém que também é produto de mecanismos cruéis de uma corporação cruel. Ligo o gravador. Essa é a versão dele.

O ex-soldado da PM chora ao falar de Sampaio, recruta que foi morto aos 19 anos | Crédito: Bel Pedrosa

Como você entrou na Polícia Militar?

Entrei na Marinha com 18 anos, fui aprendiz de marinheiro em Santa Catarina. Sempre gostei muito da vida militar. Logo no começo eu já me desiludi com o militarismo na Marinha. Eu sentia falta de realmente me sentir útil. Quando eu tive que escolher uma especialização na Marinha, não consegui passar nos exames para mergulhador. Sobraram algumas áreas bem ruins e aí resolvi fazer o curso da polícia. Passei no primeiro concurso que eu fiz, pedi baixa da Marinha e fiquei aguardando. No fim, eu fui pra polícia.

Mais uma vez veio a desilusão. Assim que nós nos apresentamos lá no CFAP (Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da Polícia Militar), onde a maioria dos praças são treinados. O CFAP deveria ser um centro de excelência, mas para você ter uma ideia, no primeiro dia não teve nem almoço pros recrutas. No primeiro dia tivemos só meio expediente e o comando já liberou todo mundo.

Você conta no livro que ali começou uma degradação de um rapaz que tinha um ideal, queria defender a sociedade, e começou a tomar contato com a violência e a corrupção na corporação. Como foi isso pra você?

O processo de perversão começa no início da formação. Quando cheguei no CFAP, o primeiro contato quando a gente sai do campo para a companhia é um caminho cercado por árvores. Do alto daquelas árvores, os policiais antigos começavam a disparar tiros de festim e soltar bombas. O camarada que deveria ser treinado desde o início pra policiar, já começa a ser apresentado a uma guerra. Dentro do CFAP, a cultura dos instrutores não é formar policiais. É formar combatentes. E aí é que tá o problema: você formar um combatente para trabalhar numa coisa tão complexa quanto o aspecto social que ele vai ser inserido. Um dia o policial tá trabalhando com um mendigo, no outro com um juiz, no outro com um assassino, no outro com um estuprador. Para você preparar um combatente para trabalhar nesse contexto, é muito delicado. Demora muito. Se isso não for muito bem feito você acaba criando monstros.

As instruções, as aulas que são ministradas no CFAP desde o início elas começam a mudar o viés do camarada. A minha turma não teve nem aula de direito penal, não teve aula de direito constitucional, não teve aula de filosofia, de sociologia. A gente chegava na sala de aula, sentava, o instrutor falava meia dúzia de anedotas da história da polícia militar e o resto é contando caso (matou fulano, prendeu ciclano). Dentro do próprio ambiente ali, os outros oficiais que coordenavam o curso só tinham um objetivo: deixar o cara aguerrido, endurecido, fazer esse recrudescimento da moral do indivíduo para ele não demonstrar piedade, covardia. Eles acreditam que se o camarada endurecer bastante ele pode preservar a própria vida com isso. Mas isso é ruim: você cria um cachorrinho bitolado que não consegue enxergar as coisas ao redor como elas são.

Depois de alguns meses no CFAP, o recruta vai estagiar e trabalhar com os antigos na rua. Como na época era verão, existiam as chamadas Operações Verão. Eles colocam o policial antigo armado e dois ou três “bolas-de-ferro”, como eles chamam os recrutas, justamente por dificultar a movimentação do antigo. Geralmente, os batalhões que recebem esse efetivo do CFAP são os litorâneos. Aí a gente foi pro 31º, no Recreio, 23º, que é o Leblon, 19º, Botafogo, 2º, Copacabana… Eu ficava um pouquinho em cada um.

No período de praia, por exemplo, a gente chegava e o antigo ficava angustiado com a nossa presença porque queria pegar o dinheiro do flanelinha, do cara que vende mate, da padaria. Outro exemplo: uma das instruções que os oficiais davam antes do efetivo sair pro policiamento era: “olha, vocês podem fazer o que quiserem, pega o pivete, bate, quebra o cassetete, dá porrada no flanelinha. Só não deixa ninguém filmar e nem tirar foto. O resto é com a gente. Cuidado em quem vocês vão bater, com o que vocês vão fazer e tchau e benção”. A minha turma partiu pro estágio com dois meses de CFAP, dois meses tendo meio expediente e depois rua. E aí, meu camarada, a barbárie imperava: pivete roubando, maconheiro… Quando caía na mão era só porrada e muito gás de pimenta. Foi ali que eu tive contato com as técnicas de tortura que a Polícia Militar procede aí em várias ocasiões. Você vê agora o caso do Amarildo. O modus operandi vai se repetindo, evoluindo, até que toma uma proporção mundial. Eu conheci aqueles recrutas que participaram do caso Amarildo lá no presídio da Polícia Militar e eles foram formados depois do meu livro. O último parágrafo do meu livro diz que os portões do presídio da polícia militar estarão sempre abertos para receber cada novo monstro nascente. E que venha o próximo. E continuam nascendo os monstros, um atrás do outro. Aqueles policiais que participaram do caso Amarildo, pelo menos de acordo com o que o inquérito está investigando eles estão fazendo as mesmas práticas que eu já fazia, que o meu recrutamento já fazia, que outros fizeram bem antes de mim e que já vem de muitos anos. Vem de uma cultura.

Como um policial aprende a torturar?

É no dia a dia mesmo. O nosso direito dificulta o trabalho do policial em certos aspectos. Por exemplo, um pivete roubou uma coisa de um turista e correu. O policial corre atrás do pivete e pega o pivete. Quando ele consegue chegar no pivete, ele já jogou o que ele roubou fora e ele é menor de idade, não pode ser encaminhado para a delegacia. Porra, mas o policial sabe que ele roubou. E aí entra o revanchismo, a hora da vingança. Primeiro lugarzinho separado que tiver (cabine, atrás de um prédio, dentro dos postos do guarda-vidas) é a hora da válvula de escape. E eu posso assegurar para você: da minha turma do CFAP, de dez que se formaram comigo, nove jamais pensaram que passariam por um processo de desumanização tão grande. O camarada começa a ver um pivete levando choque, spray de pimenta no ânus, no escroto, dentro da boca e não sente pena nenhuma. Pelo contrário, ele ri, acha engraçado.

E tem um motivo: se nesse momento que o mais antigo pegou o pivete e começa a fazer isso, se você ficar sentido, comovido por aquela prática, pode ter certeza que vai virar comédia no batalhão, vai ser tido como fraco. Vai ser tido como inapto para o serviço policial. E aí você vai começar a ser destacado, a ser visto como um elemento discordante desse ideal que a tropa criou. Se eu tô com você, mas você não tem disposição pra bancar o que eu tô fazendo com um vagabundo, na hora que der merda é você que vai roer a corda. Na hora que o vagabundo me der tiro, você não vai ter peito pra meter tiro nele. No fim, você vai ser afastado: vai ficar no rancho, na faxina ou em algum baseamento a noite toda.

Você vai formando e selecionando por esse critério. Se você é duro, você vai trabalhar na patrulha, no GAT (Grupamento de Ações Táticas), na Patamo (Patrulhamento Tático Móvel)… Agora você que é mais sensato, que não vai se permitir determinadas coisas, não tem condições de você trabalhar nos serviços mais importantes. Não tem como o camarada sentar no GAT se não estiver disposto a matar ninguém. Não tem como. E não é matar só o cara que tá com a arma na mão ali, é matar porque a guarnição chega a essa conclusão: “Não, aquele cara ali a gente tem que matar.” Aí é cerol mesmo. Se você não estiver disposto a participar disso aí, tu não vai sentar no GAT, não vai sentar numa patrulha nunca.

No livro, você descreve o constante clima de guerra e revanchismo entre policiais e traficantes e conta a história do recruta Sampaio…

É uma das partes verídicas do meu livro, fiz questão de chamar a atenção pra esse caso do Sampaio. Quem sabe para a família também ler e sentir que alguém lembrou dele. Esse caso foi muito sério… Foi pesado pra caraca… [Rodrigo chora]. No livro eu coloco que o protagonista conhecia, mas não tinha muita intimidade com o Sampaio. Eu particularmente conhecia bem o Sampaio. Um dia eu cheguei para trabalhar no CFAP, tava de serviço na guarda. Era sexta-feira de carnaval. Quando eu cheguei, já ouvi a notícia que o Sampaio tinha sido assassinado com 19 tiros, lá em Caxias [Duque de Caxias, município da região metropolitana do Rio]. O Sampaio era filho caçula de uma família relativamente grande, tinha vários irmãos, a mãe dele era uma senhora bem velhinha. Era pra ele estar de serviço comigo naquele dia. Ele ia todo dia pro CFAP de ônibus. Naquele dia, ele ia de carona com um outro companheiro lá do CFAP. Ele tava ali parado no ponto de ônibus, esperando o cara passar de carro e passaram alguns bondes de vagabundos voltando do baile. Ele morava numa área onde tinha traficantes, mas, como ele era recruta e cria da área, ele achou que teria uma tolerância com a presença dele pelo menos até ele se formar e conseguir sair. Ele tava no ponto às cinco da manhã, os vagabundos voltavam do baile e alguém o reconheceu. Eles fizeram a volta e começaram a atirar nele ali. Ele correu, correu muito, quase 800 metros. E foi cair lá perto de uma ruazinha de barro com 19 tiros de calibre .380. Todos eles nas costas. Todos.

A gente já chegou no CFAP com essa notícia próximo a nossa formatura. Aí pediram voluntários para a guarda fúnebre e eu fui pro enterro dele. Foi uma representação da polícia lá. E pô, bicho, ali eu vi como… [Rodrigo chora novamente]. Se eu tava rachado, ali foi o ponto de quebra. Pô cara, ele tinha 19 anos. 19 anos…

"Ele [policial] foi treinado pra quê? Acelerou, correu, bala!", relata Rodrigo | Crédito: Bel Pedrosa

Como o clima de guerra entre criminosos e policiais influencia na formação do policial no dia a dia?

Depois que eu vi o Sampaio no caixão lá com flores até o pescoço, só a cara pra fora, a família dele chorando… O comandante do CFAP nem quis ir ao enterro, nenhum oficial foi. A kombi que a gente usou pra levar o corpo até o enterro, a gente teve que empurrar porque não funcionava. Depois que eu vi esse descaso todo, eu pensava: “porra, o Sampaio morreu. Tomou 19 tiros. Não é possível que vai ficar por isso mesmo”. Não teve uma palestra de alguém pra conversar com a gente, não teve um inquérito, não teve nada. Ninguém sabe até hoje quem deu 19 tiros num recruta que estava desarmado. Ninguém sabe. Ali eu pensei: “se eu der mole, vai ser um contra um e de caixão livre. Alguém vai ter que pagar, isso aqui não vai ficar de graça não. Vou ter que escolher de que lado que eu tô.” E nós nos formamos, e eu fui começar a trabalhar na rua.

Quando eu cheguei no batalhão, eu não poderia trabalhar numa coisa que fosse muito perigosa. Eles colocaram a gente num serviço de P.O, que é o Policiamento Ostensivo a pé. Eu trabalhei muito na área da Tijuca. Naquela época não tinha UPP ainda, não existia. Então a Tijuca, agora é menos, mas era uma região muito complicada de se trabalhar pela quantidade de morros ao redor. Eu trabalhava na rua 28 de setembro e no fim dessa rua era o Morro dos Macacos, que era o único morro da facção criminosa ADA (Amigos dos Amigos) em uma área cercada pelo Comando Vermelho. Era um morro muito forte, os bandidos eram muito aguerridos no combate. Não tinham medo de matar polícia, de dar tiro em polícia. É uma área onde passa muito ladrão, principalmente do Jacarezinho. Eles vinham de lá, atravessavam o túnel Noel Rosa, roubavam na 28 de setembro e voltavam pro Jacarezinho, mudavam de área de batalhão e era difícil de pegar. Ali, bicho, meio dia eu já dei tiro nos outros ali em saidinha de banco. A primeira vez que eu disparei a minha arma de fogo foi assim, meio dia e pouco, no Itaú da 28 de setembro. Tinha acabado de assumir o serviço. A gente vinha de ônibus até a 28 de setembro, eu pus os pés na rua e um camarada apontou: “Tão roubando, tão roubando”. Aí eu vi um cara saindo do banco e sentando na moto. Já puxei a arma, falei pra ele parar, e o garupa se encolheu. Aí o motorista acelerou e eu atirei. Só que eu errei e o cara escapou. Ali eu vi que o troço é de verdade, que se der mole, fechar o olho, vai ser baleado. Aconteceu também quando o Borrachinha foi baleado [episódio descrito no livro]. O Borrachinha tomou um tiro de .380 no meio do olho, foi pro hospital. E não passava uma semana sem que alguém próximo a mim tivesse levado um tiro. Policial que era baleado quando tentavam assaltar…. Quando eu tava na patrulha todo dia tinha. Todo dia, quando eu tava trabalhando na DPO, e com o rádio e eu escutava: “Prioridade, prioridade. Assalto em tal rua” é porque algum vagabundo tinha dado tiro em patrulha e tava correndo. O GAT quando entrava no Morro dos Macacos, eu tava patrulhando em volta e só ficava escutando o pau roncando lá. E eu só ficava pensando: “pô cara, eu tenho que ir pra lá, quero ir pra lá, quero dar tiro”. E agora que eu tive tempo pra parar e pensar eu fico vendo como isso é absurdo. É absurdo.

Eu via essas coisas acontecerem. Rajada de fuzil uma da tarde nos Macacos, seis horas da tarde o cara descarregando uma nove milímetros em cima da patrulha pra poder fugir. Eu via isso acontecendo. Agora eu penso como isso é surreal, é uma guerra. Essa banalização do confronto entre polícia e bandido é singular no Rio de Janeiro.

O criminoso aqui no Rio de Janeiro não tem receio de dar tiro no policial, nenhum receio. Não tem receio de jogar uma granada em cima do policial que entra numa favela. Tem noção do que é isso? Escutar uma granada explodindo e você saber que é pra você? Bicho, isso deixa qualquer um pirado. Você tá passando com a sua patrulha e de repente você escuta os tiros atrás. O cara fica louco. Bicho, você dentro de um blindado, parece que você tá no Iraque ou na Síria cara. Quando você embica de blindado dentro de um acesso à favela, é tiro batendo no vidro, na lataria. Granada explodindo. Não tem como o cara não ficar louco. Isso cria um stress no policial que tá ali direto, que fica difícil do policial equacionar isso na cabeça dele. Você imagina uma escala de 24 horas por 72 de descanso. Então o cara chega na segunda-feira, vai trabalhar. Entra no blindado, bota colete, fuzil, carregador e vai pra favela. Troca tiro, leva tiro, mata um, dois, vai pra delegacia levar a ocorrência. Vão pro batalhão. Passa terça, quarta, quinta. Sexta-feira ele entra, vai pra favela de novo, troca tiro de novo, mata mais um. Não tem como se conservar são.

O monstro é uma metáfora desse processo de desumanização pelo qual o camarada passa na lida diária do trabalho. Por mais que o cara ele tenha tendências homicidas, seja violento, tenha caráter duvidoso antes de entrar na Polícia Militar, quando ele entra isso tudo é potencializado. É a hora disso extravasar. Essa lida contínua com situações de confronto, morte e violência tem que ser encarada de maneira séria pelos gestores da Polícia Militar. A gente tem que parar e pensar: a quem interessa deixar que esse bando de alienados fique na rua matando e levando tiros. A quem interessa isso?

No livro você também comenta sobre a participação dos oficiais nesse ciclo de violência e corrupção e chega até mesmo a chamá-los de “chefes de quadrilha”. Você diz que eles estão no comando disso tudo. Como isso acontece?

É o coronelismo moderno. No militarismo, não tem como uma coisa seja ela boa ou errada continuar sem a anuência de quem tá no comando. Se eu e você estamos na patrulha e a gente começa a agir de uma maneira que está desagrando o comando, ele vai tirar a gente da patrulha. Se eu e você estamos na patrulha, trocando tiros, matando gente e a gente continua na patrulha, é porque o comando quer que a gente continue. Dentro da estrutura da Polícia Militar, o coronel, o comandante do batalhão é que coordena todo esse esquema que mantém a área do batalhão em funcionamento. Toda área de batalhão no Rio de Janeiro tem ponto de táxi, tem clínica de aborto, tem tráfico de drogas, tem oficina de desmanche, tem jogo do bicho. Essas atividades só podem ocorrer enquanto o policial não vai lá e manda parar. Por que o policial não vai lá pra impedir? Porque ele tem determinação pra não ir. Posso garantir pra você que qualquer policial do Rio de Janeiro que fechar uma banca de bicho na área do batalhão dele, no outro dia ele tá em outro batalhão. Isso se não estiver em outra cidade. E ainda pega fama de “rebelde”, de “problemático”.

Há algum tempo teve uma comoção muito grande por conta de uma menina que foi fazer um aborto e faleceu, a Jandira. Todo mundo sabia onde era aquela clínica de aborto. Por que aquela clínica não foi fechada? Se a patrulha for lá e fechar a clínica de aborto, o coronel vai querer saber porque fechou a clínica. “Ah, teve reclamação”. Ok, mas a clínica manda dinheiro pro batalhão pra continuar funcionando. Se o policial se meter nesse esquema, ele vai sofrer algum tipo de consequência. Não é consequência de morte, violência, não. É consequência administrativa. Vai ser encostado de alguma forma e daqui uma semana a clínica vai estar funcionando de novo, pode ter certeza.

No batalhão, você tem a administração da lavradura militar e tem as companhias. O comandante da companhia é quem vai definir que tipo de serviço existe dentro das companhias (se o cara vai trabalhar na patrulha, na Patamo, nas cabines…) A patrulha é considerada um serviço bom. Te deixa móvel, você consegue se movimentar bastante dentro da área do batalhão e tem possibilidade de ganhos. Você pode extorquir o usuário de drogas, você pode pegar um ladrão, tomar a arma dele e ficar com o dinheiro dele e vender a arma. É diferente do serviço baseado, que você tem que ficar parado no mesmo lugar o dia todo. Pra você trabalhar nessa patrulha, você tem que ser indicado pelo comandante de companhia, pois é ele quem determina onde cada um vai ficar. Você foi indicado, beleza, vai trabalhar na patrulha. Pra você se manter na patrulha, você vai ter que dar alguma coisa pro comandante de companhia. Porque tem alguém atrás de você que tá querendo ir pra patrulha também. Na minha época, todo mundo que trabalhava na patrulha pagava cem reais por mês pra continuar na patrulha. Cem meu e cem do comandante da patrulha. Toda sexta-feira à noite, o comandante da companhia pegava duzentos reais de cada patrulha, de quem tava de serviço à noite. Isso da patrulha. Mas ele também pega de quem tá trabalhando num subsetor, também pega 200 reais do cara que tava na cabine, mais um dinheiro do camarada que trabalha no trânsito. Quando você vai ver no final do mês, esse pedagiozinho dá uma soma boa pro comandante de companhia.

Se o cara que tá no serviço, por exemplo, a patrulha, não quiser pagar, OK. Ele só não vai ficar na patrulha, vai ser deslocado pra outro serviço. Esse pedágio é uma forma do comandante receber um dinheiro e se blindar. Ele não precisa disputar na rua o dinheiro que ele vai receber, ele recebe dentro do batalhão. É um tipo de achaque e corrupção muito difícil de ser descoberto porque um policial dificilmente vai dizer que o comandante tá extorquindo ele. Dificilmente vai dizer, dificilmente vai conseguir provar e vai sobrar pra ele.

Por que dificilmente ele vai dizer?

Porque se ele falar pro comandante do batalhão que o comandante da companhia tá pedindo cem reais pra ele continuar na patrulha, a primeira coisa que o comandante do batalhão vai dizer é: “você não tá mais na patrulha”. Ele pode tentar produzir provas, colocar uma câmera escondida, tentar ir mais a fundo. Mas aí, meu camarada, ele tá assinando a própria sentença de morte. Aí você tá querendo prejudicar o comandante da companhia, tá querendo prender o cara. Entre a própria tropa é visto como ofensivo, como uma coisa péssima. Isso não vai acontecer nunca.

Esse é só mais um exemplo. Quer outro? Pra você tirar férias, você tem que pagar o sargenteante. Olha que absurdo. Esse dinheiro é dividido entre o sargenteante, que é um sargento, e o capitão que é comandante de companhia. Isso tá no filme lá, no Tropa de Elite, não é mais novidade pra ninguém. Mas não para por aí não. Se você não quer mais trabalhar, você pode chegar no oficial e falar que não quer mais trabalhar. Ele vai falar: “Ok, todo mês o seu salário fica pra mim”. Aí o sargenteante te coloca numa escala fantasma. Ou seja, você não existe mais no batalhão. Você não precisa mais colocar os pés no batalhão. Isso é bom pro cara que trabalha na milícia, no jogo do bicho. O camarada que, por exemplo, tá trabalhando na banca do jogo do bicho. Recebe lá cinco mil por semana pra trabalhar no jogo do bicho. Ir pro batalhão pra ele é ruim porque ele perde o dia de trabalho dele no bicho. Então ele pega o salário dele de dois mil reais, deposita na conta do comandante de companhia e não aparece mais no batalhão. Fica só trabalhando no jogo do bicho. Pra ele é mais jogo, porque ele não precisa mais se expor, não precisa botar farda, ter horário, fazer a barba. O interessante pra ele é a carteira de policial e o porte da arma. Isso é muito comum, é fácil de se constatar. Qualquer promotor de justiça que chegar no batalhão de surpresa e disser: “bom dia, eu quero o efetivo do batalhão e a escala de serviço”. Ele vai encontrar, no mínimo, cinco, seis fantasmas. Em qualquer batalhão do Rio de Janeiro. Isso é batata.

Esses esquemas todos nos batalhões da Polícia Militar são muito antigos. Eles fazem parte de uma cultura da polícia. Acabar com esses esquemas todos vai demandar uma coisa muito complicada, que seria tirar o poder das mãos dos coronéis.

Por isso você defende a desmilitarização?

É um primeiro passo. Quando você vê um soldado policiando, alguma coisa já tá errada. Ou o camarada é soldado, ou é policial. Ele pode até ser um soldado policial dentro do quartel, mas não na rua. O soldado tem uma premissa que é o quê? Matar o inimigo. O soldado é formado para eliminar o inimigo e o policial não, pelo menos não deveria. O policial, ao contrário do que se acredita em boa parte da sociedade carioca, ele não foi feito pra matar ninguém. O policial não tem inimigo. O camarada que hoje tá dando tiro no policial, ontem pode ter estudado com ele, pode ter frequentado os mesmos lugares que ele. O criminoso é resultado da nossa sociedade, do nosso contexto. O crime é um fato social e o policial não pode enxergar o criminoso como um inimigo. Não é pra matá-lo. Prendeu, leva pra lei tomar as providências dela. Mas o que se convencionou acreditar é justamente o oposto.

O coronel, os oficiais, acumulam muito poder em uma figura só. O coronel tem uma área de influência enorme dentro do batalhão dele, ele determina muitas coisas. E o soldado não pode questionar o coronel. O soldado não pode entrar na sala do coronel e falar assim: “Coronel, por que eu não posso abordar aquela van pirata que tá passando ali?” Porque isso já constitui uma transgressão disciplinar. Desde o legalismo do militarismo, até as regras subjetivas que regem a relação entre subordinados e superiores hierárquicos, tudo serve para impedir o camarada de pensar. Ele não pode virar pro comandante e falar: “capitão, não vou pra rua porque o colete tá vencido”. Não pode. Ele pode reclamar do colete, mas não pode reclamar para o capitão que é quem resolveria. Quando você tira o militarismo e coloca os profissionais de segurança em nível equivalente, se o profissional de segurança questionar o coronel por que ele teve que voltar das férias pra trabalhar, o coronel não vai poder responder: “você tá indo porque eu quero. Porque eu tô determinando que você vá. E se você não for, vai ficar preso à disposição”.

Você vê que essa confusão de atribuições entre soldado e policial, elas não se resolvem de maneira fácil. As coisas continuam acontecendo aos olhos de todo mundo e ninguém faz nada. Por exemplo, aquele pessoal que tava voltando de uma festa dentro do HB20 branco e que foram perseguidos por uma patrulha. Não teve um estalinho, uma bombinha, nada que viesse do HB20 pra patrulha e o cara deu 15 tiros de fuzil no carro, num carro em fuga. Só poderia acontecer na cabeça de um soldado, na cabeça de um policial não aconteceria nunca. Um policial iria correr atrás, cercar. Mas ele não ia dar tiro em quem não tá dando tiro nele. Só na cabeça do soldado, que acha que tá na guerra e acha que se não atirar primeiro vai levar tiro. O cara foi lá, deu a sirene e o carro acelerou pra fugir da polícia. “Ah, é bandido, vou dar tiro”. Podia ser alguém bêbado, podia estar todo mundo fazendo uma suruba dentro do carro, podia ter uma cachaça no carro e o cara estar com medo de ser pego, o cara podia não ter habilitação, o cara podia ser surdo… São milhões de coisas, mas o cara não para pra analisar essas coisas porque ele não foi condicionado pra pensar, a contextualizar o tipo de serviço que ele tá fazendo. Ele foi treinado pra quê? Acelerou, correu, bala!

Aquelas crianças que tavam brincando na rua, filmando, um correu atrás do outro. Daqui a pouco é tiro pra todo lado e o garoto caiu agonizando. Sabe por que? Preto e pobre correndo na favela é bala. Depois a gente vê o que é. Foi o soldado sobrepujando o policial de novo. Ele tava entrando num território conflagrado. Ele entrou lá pra prender ou pra matar? Pra matar, pô. Se ele tivesse entrado pra prender, a primeira coisa que ele ia fazer quando viu o menino correndo era gritar pra ele parar.

A nossa sociedade carioca, principalmente da região metropolitana, criou, até por sofrer muito com os assaltos e tudo mais, um pensamento torto. Quando um policial vai lá e mata um bandido, a sociedade faz o quê? Aplaude. Toda vez que o policial entra em confronto, mata um cara que tava fazendo o arrastão a sociedade aplaude e estimula. Só que o policial militar tem que entender que quando ele errar a sociedade não vai aplaudir não. A sociedade vai sentar pra formar o tribunal do júri e vai condená-lo sem a menor vergonha. Mas ao mesmo tempo, criou-se essa cultura de que o policial tem que matar.

Tem uma frase sua no livro que até vai nesse sentido, quando você escreve: “O PM só vale o mal que ele pode causar”. Como é que o PM enxerga essa hipocrisia da sociedade que às vezes exige o policial e às vezes o monstro?

Se o PM andar com uma roupa humilde, pegar ônibus pra trabalhar, se ele não andar demonstrando que tá armado, ele vai ser encarado por aquelas pessoas que o conhecem como um policial bobão que não faz mal pra ninguém. Agora, se ele tá dentro de um Fusion, com uma pistola enorme na cintura, com roupa de marca, cordão de ouro no pescoço e mete a porrada em quem tá fazendo merda perto da casa dele. Se ele se torna algo que realmente traz risco, ele se torna valorizado. “Ih, pô, não mexe com o fulano não. Ele é polícia”. Há uma glamourização desse estado desumanizado. A sociedade valoriza mais o monstro do que o policial e é por isso que ele tá nascendo o tempo todo.

As nossas próprias autoridades políticas valorizam a criação dos monstros, mas tem que ter alguém pra eu apontar o dedo na hora que tiver dando merda. As autoridades querem que existam monstros e tem vários exemplos disso. Você lembra do caso do Matemático, que foi perseguido pelo helicóptero? O camarada de helicóptero com uma M60, atirando em um carro em fuga que não deu um tiro nele. Enquanto isso, a esteira de tiros batendo nos muros das casas, nos carros estacionados, em tudo que é lugar. Aquilo ali é o exemplo da hipocrisia e de como as nossas autoridades são parciais. Se fosse uma Patamo fazendo isso, os policiais iriam todos presos. Mas como foi o helicóptero, tá tudo tranquilo. Agora, me diz a diferença entre o cara do helicóptero e os caras do HB20? Não tem diferença nenhuma. Mas o tratamento foi bem diferente. “Ah, aquele PM ali que atirou no carro em fuga, errou. Mas o cara do helicóptero, não, vamos proteger ele porque alguém tem que fazer esse tipo de merda.”

O Estado quer que alguns profissionais façam sim esse tipo de serviço sujo. Como fizeram com o Matemático, como fizeram com o Bem-te-vi na Rocinha, mas sempre que a coisa começa a chamar muita atenção, eles entregam alguns pra serem açoitados. E com isso a gente vai empurrando. E não enfrentamos nenhum problema.

O seu livro chegou a ser proibido no BEP (Batalhão Especial Prisional, prisão para policiais militares).

A Polícia Militar não gostou do livro, tanto que ele foi censurado. Eu me ressinto um pouco de não ter previsto isso. Eu até imaginava que teria algum tipo de represália. Depois de escrever o livro, eu pensei em segurar ele e lançar quando eu saísse da prisão. Mas as coisas não se resolveram, eu já tava com o livro pronto, a editora tinha gostado e tava querendo publicar. Aí eu lancei o livro enquanto ainda tava no presídio da Polícia Militar. Foi a pior coisa que eu fiz. Escrever um livro falando mal da Polícia Militar dentro do presídio da Polícia Militar, que que tu imagina que pode ter acontecido?

Cara, quando o livro foi lançado, minha esposa levou 30 exemplares pra distribuir lá no BEP, pra alguns amigos. Eu ia dar pra rapaziada que sabia que eu tinha escrito o livro e queria ler. Quando ela chegou, não deixaram ela entrar com o livro. “Ah, mas por que não pode entrar com o livro?” “Ordem do comando, não pode entrar com esse livro no presídio.” Minha esposa ficou nervosa e foi lá no plantão do Ministério Público no centro do Rio pra contar o que aconteceu, que o livro foi censurado. Ela contou que o Elite da Tropa, por exemplo, pode entrar, o livro que o capitão escreveu. Mas o livro que o ex-soldado escreveu não pode. Aí ela foi e relatou isso lá pro Ministério Público e depois de alguns dias o MP oficiou o comando da Polícia Militar solicitando informações sobre o porque da censura prévia. O comando deu lá as explicações dele.

Dois dias depois, de madrugada, aconteceu. Entraram quatro policiais, pelo que eu pude perceber, na minha cela, todo mundo com roupa do BOPE, touca ninja, sem identificação. Entraram na minha cela, me acordaram e eu fui pro saco, tomei choque. Saco e choque pra caramba. E eles falaram: “Manda lá a tua esposa retirar a denúncia do Ministério Público, se não tu vai amanhecer suicidado aqui dentro. Na próxima vez que a gente voltar, vai ser pra você se suicidar, entendeu bem?”. Como não entender um recado desse? A minha esposa não foi mais lá, retirou a denúncia e o assunto morreu, ficou por isso mesmo. Eu falei com a minha advogada e ela foi, procurou gente pra denunciar, mas ninguém quis ouvir.

O Comando da Polícia Militar se doeu mesmo comigo, tomou como uma coisa pessoal que poderia trazer algum tipo de incômodo pra eles lá em cima. É impressionante como ainda hoje você incomoda se você falar o que você pensa, se você falar a verdade.

Teve uma livraria, uma rede de varejo que, por conta do lançamento do livro, queria fazer uma noite de lançamento. Eles queriam fazer o lançamento do livro, falaram com a minha editora e tudo mais. A Justiça autorizou a minha ida até a livraria pra poder fazer a noite de lançamento. Só que, no despacho, o juiz determinou que ficava a critério da Polícia Militar providenciar a escolta pra que eu fosse até o local de lançamento no dia tal, hora tal, pra fazer o lançamento do livro. Só que no dia, a escolta não pode me levar porque ficou empenhada em outra atividade. Ou seja, o comandante providenciou a escolta, mas no dia disse que não tinha escolta pra me levar. A tentativa era essa, de calar, de evitar que eu falasse.

Em que ponto se perde o policial e se ganha o monstro?

São vários pontos de quebra. Pra mim foi a morte do Sampaio. Quando eu vi o Sampaio morto, um recruta de 19 anos morto com 19 tiros pelas costas. Ali eu falei: “É guerra e se alguém atentar contra minha vida, eu vou tacar bala também”. Ali foi que eu percebi a crueza da morte. Essa lida diária com a violência constante é que causa a desumanização. Com a corrupção também, mas ela se torna parte do processo da violência. Porque pra você conseguir pegar o arrego do traficante, você tem que subir o morro e dar tiro nele. Se não o traficante não vai te pagar nada. Traficante não paga pra quem tá baseado na entrada do morro, porque quem tá baseado na entrada do morro não atrapalha o movimento da boca. Essa desumanização vem primeiro com a violência, depois vem com os benefícios pecuniários que você pode ter quando os outros querem evitar a violência. Primeiro eu vou lá, entro no morro, entupo o traficante de bala. Vai descer um, dois, três mortos. Na semana que vem o traficante vai pagar pra não descer mais três mortos. A corrupção é consequência desse estado de violência que o policial tá sujeito o tempo todo. O policial militar tá o tempo todo oprimido: na folga dele ele tá oprimido, tem receio de ser reconhecido, assassinado. Pra mim esse ponto de quebra foi perceber que eu estava no meio de uma guerra de verdade. E como o Sampaio, depois vi muitos outros amigos morrendo, fui a muitos enterros, funerais. Mas aí eu já estava mais recrudescido. Tem outro caso que eu conto é o de dois policiais assassinados numa cabine, no Andaraí, o sargento Marco Aurélio e o cabo Peterson. Eles chegaram pra trabalhar, de manhã cedo, e lá na cabine Caçapava o vagabundo matou os dois de .45. O cara fugiu sem levar nada. Cheguei lá pra ver e tava o sargento Marco Aurélio sem a parte de cima da cabeça e o Peterson tava todo cheio de tiros no tórax.

Muita gente da minha turma morreu, tá presa, foi excluída. E a fábrica de monstros tá aberta, continua lá. Eles vão preenchendo. Sempre tem gente querendo entrar por causa dessa glamourização do monstro. Todo concurso da PM é 100 mil inscritos, 80 mil inscritos. É muita gente, pô. A relação candidato/vaga é paralela a vários cursos aí da UERJ. A fábrica tá aberta e muita gente quer entrar nela, mas a gente vê que tá tudo errado.

Segurança Pública: quem a estuda?

Justificando

Terça-feira, 28 de julho de 2015

Bartira Macedo de Miranda Santos
Professora de Penal e Processo Penal na Federal de Goiás


A segurança pública é um tema no qual todo mundo se atreve a dar palpites, mas a verdade é que pouca gente entende do assunto.

Neste artigo, propõe-se abordar o conhecimento produzido sobre segurança pública no Brasil, questionando o que se entende por “segurança pública” e expondo a conflituosidade dos paradigmas que marcam as discussões do tema neste início de século XXI.Quem se ocupa, academicamente, da segurança pública?
Quem se ocupa, academicamente, da segurança pública?

Para responder a essa questão, o primeiro impulso é olhar para as faculdades de Direito. Lá estão os penalistas, aqueles que conhecem direito penal, processo penal, execução penal, legislação penal. Alguns até se dedicam a estudos de criminologia, sociologia criminal, política criminal, antropologia criminal. Porém, todo esse conhecimento está longe de ser um saber empenhado em pensar a segurança pública de maneira propositiva. Os penalistas conhecem a legislação, sabem manipulá-la dogmaticamente, aplicá-la, interpretá-la e tem os seus métodos mais ou menos reconhecidos de chegar à decisão juridicamente correta. Enfim, sabem acusar, defender e julgar. Já os criminólogos – aqui incluídos os criminologistas e juristas que de forma zetética analisam as questões criminais – sabem bem fazer suas críticas ao sistema penal, se colocam contrários – com razão – à expansão do poder punitivo e lutam por sua diminuição ou mesmo abolição.

Os juristas estão longe de emitir qualquer opinião cientificamente fundamentada sobre como reduzir a criminalidade. Eles dirão que se devem respeitar a Constituição, as leis, os direitos humanos etc., mas estão longe de possuírem qualquer conhecimento empírico e propositivo sobre como se faz segurança pública em um Estado democrático de direito.

Os penalistas e os antipenalistas (como gostam de ser chamados os criminólogos críticos) produzem conhecimentos aplicáveis após a ocorrência do crime, mas não sabem como evitá-los; não estão ocupados com a prevenção, e nem é essa sua função. Algumas vezes o direito penal e a política criminal se empenharam na prevenção e acabaram por provocar catástrofes históricas. Melhor mesmo deixá-los fora disso.

A crítica criminológica contemporânea aponta sim caminhos a serem trilhados[1], mas essa crítica tem por base o que deve ser feito para diminuir (principalmente) a violência estatal. O estado é, afinal, o maior produtor de violência e estão na sua conta os grandes massacres e genocídios da história da humanidade.

Além dos juristas, grande parte do conhecimento produzido em torno da segurança pública está nas faculdades de sociologia e administração, mas não apenas nelas. A economia, a educação, a geografia, a arquitetura, a psicologia e a medicina também têm destaque. Existem escolas nas polícias[2] e nas forças armadas[3], contudo, não se sabe muito bem o que está sendo produzido nessas escolas policiais.
A conflituosidade teórica na área da segurança pública

Na introdução ao livro Política de segurança: os desafios de uma reforma, Guaracy Mingardi[4] afirma que:

A segurança pública é ainda um tema em construção dentro das políticas públicas brasileiras. Saúde e educação, por exemplo, são tratados há muito tempo. Nessas áreas, o acúmulo de conhecimento e de concordância chegou a níveis em que é possível discordar de uma política, mas discuti-la dentro dos mesmos parâmetros de seus idealizadores. Na questão da segurança estamos longe disso.

A segurança pública é um campo de grande disputa e, como afirmam Arthur Trindade Costa e Renato Sérgio de Lima[5], é um conceito “em aberto”: não há consenso sobre seu significado.


“Trata-se menos de um conceito teórico e mais de um campo empírico e organizacional que estrutura instituições e relações sociais em torno da forma como o Estado administra ordem e conflitos sociais”.

Transitar teoricamente na área da segurança pública é andar em areias movediças. Os significantes não têm os mesmos significados. Palavras e termos comumente usados em uma área são teoricamente bombardeados em outra(s). Vejam, por exemplo, o termo “ordem pública”. De um lado, ele é empregado pela Constituição Federal ao dizer, no art. 144, que a segurança é exercida para a preservação da ordem pública. Portanto, é um termo utilizado pelo pessoal da segurança (por assim dizer) sem muitos questionamentos, afinal, é a própria Constituição assegura que “a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação daordem pública e da integridade das pessoas e do patrimônio” (grifo nosso).

De outro lado, o que quer dizer “ordem pública” para os penalistas críticos? Para Aury Lopes Júnior[6], a visão de ordem nos conduz à de pureza, à de estarem as coisas nos lugares “justos” e “convenientes”. É uma situação em que cada coisa se acha em seu justo lugar e em nenhum outro. Segundo Aury, o oposto da pureza (o imundo, o sujo) são as coisas fora do lugar; já Bauman exemplifica a questão com a imagem de um belo par de sapatos colocados sobre a mesa de refeições e/ou uma deliciosa omelete derramada no travesseiro. Aury afirma:

O exemplo é interessante e bastante ilustrativo, principalmente num pais como o nosso, em que vira notícia no Jornal Nacional o fato de um grupo de favelados ter ‘descido o morro’ e ‘invadido’ um shopping center no Rio de Janeiro. Ou seja, enquanto estiverem no seu devido lugar, as coisas estão em ordem. Mas ao descerem o morro e invadirem o espaço da burguesia, está posta a (nojenta) omelete no travesseiro. Está feita a desordem, a quebra da organização do ambiente.

Doriam Borges[7] nos dá a noção de quanto a segurança pública está envolta numa situação problemática:

Quanto mais relatos da mídia sobre o crime, mais o Estado procura responder as demandas e tomar medidas, e, consequentemente, mais delitos são detectados: uma profecia autocumprida do medo. Este contexto, por sua vez, pode levar a mídia a falar sobre a onda de crimes, o que pode gerar na sociedade uma demanda por segurança, acionando os políticos e gestores da área de segurança pública, e mantendo o círculo vicioso. [...] Se essas políticas são implementadas, o medo do crime precisa ser mantido, a fim de apoiar a existência das políticas. Se o combate ao crime é o ponto focal de um programa de governo ou de uma promessa de campanha do partido, o próprio crime precisa ser mantido como principal problema das pessoas.

A falta de entendimento teórico e de um consenso mínimo, aliada ao peso ideológico e às relações de poder que o tema envolve, têm sido o grande empecilho para o desenvolvimento da segurança pública. Em termos de “políticas públicas”, as áreas da saúde e da educação estão muito mais avançadas. Nessas áreas já foi possível construir um campo teórico que permite discutir o tema dentro de certos paradigmas conceituais.

Para o desenvolvimento da segurança pública é necessária uma mudança do paradigma repressivo que comanda as ações da área há séculos. Segundo Vera Regina Pereira de Andrade[8], para ultrapassar o paradigma repressivo em segurança pública é necessário ultrapassar e redefinir, em âmbito ideológico e simbólico, os conceitos fundamentais e o senso comum que lhe dão sustentação: criminalidade (identificada com criminalidade de rua e da pobreza), violência (identificada com essa criminalidade) e segurança pública (identificada com segurança contra essa criminalidade).

Ainda de acordo com Vera Regina Pereira de Andrade:

Para que a própria mudança preconizada ocorra, o princípio vertebral a sustentar todos os demais deve ser o princípio de proteção integral de direitos humanos, erigido como o objeto e limite do poder de punir e no qual o direito à segurança (sobretudo a segurança da pessoa, da vida e dos corpos, antes que dos bens) seja um deles, libertando-se do paradigma da segurança “contra” a criminalidade. Isso faz a passagem do modelo de segurança pública focado na ordem e em nome da ordem, violando seletivamente direitos da pessoa, para um modelo de segurança pública focado no sujeito – segurança cidadã; faz ainda a passagem do paradigma repressivo (negativo e desconstrutor) de luta contra a criminalidade para uma cultura positiva e construtora de uma nova concepção de segurança e controle democrático dos problemas e conflitos sociais. (BARATTA, 1987, 1997, 2000; SABADELL, 2003, 1-28).

Ao que parece, as graves violações dos direitos humanos no Brasil, desde a colonização, com a dizimação dos povos originários (os índios), a escravatura, o uso de teorias importadas (como o positivismo antropológico) - utilizadas para justificar a exclusão e o encarceramento dos negros e pobres -, até as mortes e os desaparecimentos forçados da ditadura militar, bem como os massacres e o superencarceramento após a democratização do país, tudo isso constitui o foco dos pesquisadores da questão criminal. Assim, parece haver certo desconforto e desconfiança em relação às pesquisas na área da segurança pública. Afinal, cada vez mais a ciência se dá conta de sua contribuição e da existência de teorias justificadoras de massacres. É preciso, pois, desconstruir o conhecimento produzido em bases autoritárias e colonizadoras e reconstruí-lo sobre novas bases, digamos, mais democráticas e racionais.

Compreendido o campo de areia movediça que constitui a segurança pública, a questão colocada neste artigo é quem está se dedicando ao estudo da “segurança pública”, compreendida como sinônimo de práticas democráticas de controle social que possam reduzir a violência e a criminalidade.
Afinal, quem estuda “segurança pública”?

Em primeiro lugar, deve-se observar que o tema “segurança pública” está disperso no interior de várias disciplinas e campos de pesquisas diversas, no entanto, o Direito ainda domina a produção acadêmica nessa área, seguido da Sociologia.

Em segundo lugar, o termo “segurança pública” está cada vez mais sendo substituído por concepções mais modernas, que a pensam em termos de “políticas públicas de segurança”, “segurança humana”, “segurança cidadã” ou mesmo “segurança de direitos”.

Entretanto, os conhecimentos da área, em termos de política pública cidadã, são incipientes. Pensar a segurança pública no que diz respeito a “práticas democráticas de controle social”, ou em termos de políticas públicas, é uma abordagem recente, praticamente uma coisa do século XXI. Afinal, o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública é do ano 2000, elaborado durante o Governo FHC, e o segundo é de 2007, já no Governo Lula.

No âmbito acadêmico, o Plano Nacional de Pós-Graduação (2011-2020) impulsionou a demanda por mestrados em Criminologia e Segurança Publica, incentivando a consolidação de um campo interdisciplinar que possa contribuir para a formação especializada de profissionais da área, bem como subsidiar e orientar ações do poder público[9].

Os programas de mestrado profissional em segurança pública implementados no Brasil são os seguintes:

“Segurança Pública, Justiça e Cidadania”, da Universidade Federal da Bahia, reconhecido pela CAPES em 22/09/2011;
“Segurança Pública, Cidadania e Direitos Humanos”, da Universidade Estadual do Amazonas, de 2012;
“Segurança Pública”, da Universidade Federal do Pará, de 2012;
“Segurança Pública”, da Universidade de Vila Velha, de 2013.

Não há mestrados acadêmicos específicos em segurança pública, e as linhas de pesquisa nesta temática, por incrível que pareça, são escassas, embora seja um tema corrente em projetos de pesquisa.

As mais importantes pesquisas sobre segurança pública estão concentradas no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e no Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

Em 2009, o IPEA publicou o livro Brasil em desenvolvimento: Estado, Planejamento e Políticas Públicas, no qual avaliou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (PRONASC). De acordo com a publicação, o PRONASC se mostrou omisso na redução da violência por parte das forças policiais, pois não previu mecanismos de controle externo e interno da atividade policial e, portanto, não se propôs a reduzir a letalidade provocada pela polícia, nem enfrentar a corrupção policial. Outro problema detectado pelo estudo refere-se à falta de sintonia e integração entre as ações do governo federal, dos estados, dos municípios e da sociedade civil organizada, valorização dos profissionais de segurança pública e enfrentamento do crime organizado.

O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), por sua vez, foi constituído em 2006 e é um espaço nacional de referência e cooperação técnica na área da atividade policial e da gestão da segurança pública no Brasil. Para isso, conta com (1) o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, voltado ao monitoramento de instituições e políticas de segurança pública, com os objetivos de consolidar e difundir o conhecimento produzido sobre o tema no Brasil e incentivar a avaliação como prática de gestão e formulação de estratégias no setor; (2) a Revista Brasileira de Segurança Pública, reunindo artigos e trabalhos significativos na área; e (3) o site, no qual se encontra uma valiosa fonte de informações sobre segurança pública no Brasil[10].
Conclusão

Com tudo isso, percebe-se que, apesar dos avanços nos últimos anos, ainda são incipientes as políticas públicas de segurança no Brasil. A segurança pública, apesar de ser uma das grandes preocupações nacionais, ainda está longe de se constituir como uma nova área do saber ou ao menos como um tema livre da ideologia do punitivismo. É recente a preocupação do Estado brasileiro com a reação ou a resposta racional ao crime. Não se negam os avanços dos últimos anos, mas temos ainda muito a caminhar em termos de informações seguras e consistentes referentes às estatísticas criminais, à atuação e à formação das polícias, e, sobretudo, na formulação, implantação e avaliação das políticas públicas de segurança no Brasil.

Enquanto não for possível a construção de um aparato conceitual mínimo e de um consenso necessário para a proteção de todos os direitos, os juízes e todos aqueles que trabalham a questão criminal deveriam ouvir o conselho de Zaffaroni[11]: “o conjunto nos recomenda antes de tudo prudência, cautela no uso do poder repressivo, muita cautela”.

Bartira Macedo de Miranda Santos é professora de Direito Penal e Direito Processual Penal da Universidade Federal de Goiás, é Pós-doutoranda pela PUC-GO e bolsista Capes. Autora do livro Defesa social: uma visão crítica, 2015, pela Coleção Para Entender Direito.

quinta-feira, 16 de julho de 2015

Reforma do ECA: aumento do tempo de internação para menores é alvo de polêmica

Via GGN


Ato infracional equiparado a crime hediondo poderia chegar a pena de até oito anos
Agência Brasil - 17/07/2014 - 21h07


O relatório de reforma do ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que deve ser discutido e votado pela Câmara dos Deputados em breve, e prevê aumento de três para até oito anos do período de internação dos adolescentes, de 16 a 18 anos, que praticarem ato infracional equiparado a crime hediondo, tais como tortura e tráfico de drogas, foi criticado por especialistas em São Paulo.

Durante debate na tarde desta quinta-feira (17/6), no Instituto Sedes Sapientiae, zona oeste da capital paulista, para discutir os avanços e desafios dos 24 anos da promulgação do ECA, os especialistas condenaram a proposta prevista no relatório do deputado federal Carlos Sampaio (PSDB-SP). Em seu site, o deputado defendeu a medida. “O plenário da Câmara deve reproduzir o sentimento da nação, que está indignada com essa questão da impunidade. Muitos adolescentes têm plena ciência do ato infracional que estão praticando e muitas vezes ficam internados por apenas um ano”, disse ele.

Mas, para o juiz Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, que integra a Coordenadoria da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça de São Paulo, o aumento da pena não resolve o problema. “Aumentar o tempo de internação não resolve o problema. O que resolve a longo prazo é a prevenção. E, no caso de adolescentes, instituições de segregação e as unidades de internação com bom atendimento e bom serviço, ampliando seu trabalho, e com políticas públicas visando também as famílias. É preciso cuidar, não punir”, falou o juiz.

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Opinião semelhante foi manifestada pelo advogado Ariel de Castro Alves, do Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente. Alves disse que a proposta fere o princípio constitucional da brevidade. “Tem um princípio do estatuto que é o da brevidade das medidas socioeducativas. Oito anos [de internação] para um jovem de 16 anos representa 50% de seu tempo de vida. Fere esse princípio que está na Constituição. Essa é uma forma de tentar driblar a questão da redução da maioridade penal, que é inconstitucional”, falou ele. Alves disse não ser contrário a se discutir ou reavaliar o tempo de ressocialização, que foi definido na década de 90, “mas não com essa finalidade”.

A psicóloga Paula Saretta de Andrade e Silva reclamou que questões como essas são discutidas ou viram leis sem embasamento teórico ou estatístico que possam justificá-las. “As pessoas se posicionam sem nenhum dado relevante ou científico. Não há estatísticas para se falar. Se se comparar com vários outros países que fizeram isso, não tem dado certo. Por que olhamos para casos isolados, como se em todos os cantos houvessem adolescentes com esse mesmo perfil [de cometer crimes considerados hediondos]? Não estamos olhando para a grande massa de adolescentes que estão presos. Tem aquelas pessoas que argumentam que os adolescentes estão perdendo muito pouco, ou que três anos [de internação] é muito pouco. Perder a juventude é uma perda muito grande, que nunca mais terá recuperação. Isso não é uma questão de números. O grande problema é se olhar só para dados isolados. É preciso olhar para a população em geral”, falou ela.

Para Ariel Alves, a legislação atual referente às crianças e adolescentes, embora tenha representado grande avanço no país, precisa ser, de fato, efetivada. Ponto que também foi defendido pelo juiz. “Uma das dificuldades do ECA é que não aprendemos ainda a trabalhar de forma multidisciplinar. A política educacional deve estar ligada à política de saúde e de assistência social, por exemplo”, citou o juiz Carvalho durante o debate.

“A integração operacional e multidisciplinar nem sempre ocorre. A maior parte das crianças em abrigos estão lá por problemas de alcoolismo de seus pais”, ressaltou Alves. Segundo ele, o ECA ainda apresenta muitas falhas provocadas pela sua falta de implementação e efetividade. “Casos recentes que tiveram grande repercussão, como o assassinato do menino Bernardo Boldrini, em abril, no Rio Grande do Sul; as denúncias de exploração sexual infantil durante a Copa do Mundo; e a decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo que absolveu o fazendeiro Geraldo Brambilla, de 79 anos, acusado de estupro e exploração sexual de vulneráveis, ao considerar que o réu foi induzido a erro quanto à idade das vítimas e que elas já eram 'prostitutas'; demonstram o quanto a proteção integral das crianças e adolescentes no Brasil ainda é uma utopia”, disse o advogado.

segunda-feira, 13 de julho de 2015

Barbárie nossa de cada dia: linchamentos e religiosidade



Wagner Francesco
Teólogo

Recentemente fui indagado sobre minha opiniões na internet. Pessoas que estranhavam que eu, num ambiente acadêmico extremamente secular e postando numa internet cada vez com pessoas mais descrentes, estivesse publicando textos falando de Jesus. Mas vamos aos fatos. Primeiro, se um teólogo não falar de Jesus sobre o que ele falará? Segundo, quem disse que vivemos num ambiente extremamente secular? Digo sem medo de erro: muito pelo contrário. Vivemos num ambiente religioso - e religioso até demais!

O brasileiro é religioso. Não sai de casa sem fazer o “sinal da cruz”, tem uma bíblia aberta (de preferência nos Salmos 23 ou 91) em sua casa e, claro, coloca adesivo no carro: “foi Deus quem me deu”. Sendo assim, é correto afirmar que somos um povo cordial e bondoso, bem ao estilo Jesus Cristo de ser. Correto? Errado! E vou explicar.

Veja que curioso: dados de 2012 mostravam que “o número de evangélicos aumentou 61% em 10 anos no Brasil”. E o resumo da história toda é:

Mesmo com o crescimento de evangélicos, o país ainda segue com maioria católica. Segundo o IBGE, o número de católicos foi de 123,3 milhões em 2010, cerca de 64,6% da população.

A religião no Brasil está em alta e os índices de violência também. Segundo o mapa da violência de 2014, em 2012, 112.709 pessoas morreram em situações de violência no país. O número equivale a 58,1 habitantes a cada grupo de 100 mil, e é o maior da série histórica do estudo, divulgado a cada dois anos.

Agora, me explique como pode um país de pessoas tão religiosas como o nosso ser tão violento? E como pode ser tão vingativo?

A notícia em pauta essa semana foi o linchamento de um rapaz acusado de tentar assaltar uma loja numa periferia no Maranhão. Pena por assalto? Segundo o Código Penal, varia entre 4 a 10 anos de prisão, mas, no caso do rapaz em questão, sem direito à ampla defesa ou contraditório, foi a pena de morte. E tudo isto, repito, num país que é majoritariamente religioso.

O Brasil, ainda, tem números assombrosos no que diz respeito aos linchamentos. Segundo pesquisa feita pelo sociólogo brasileiro José de Souza Martins em seu livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil”, um milhão de compatriotas participaram de linchamentos em 60 anos. Olhe, estes são números dos que participaram, mas imagine que você conhece alguém que publica em seu Facebook coisas como “bem feito”, “eu acho é pouco”, “bandido bom é bandido morto”, etc.

Eu, quando ouço sobre linchamentos, penso logo em Jesus. Vocês lembram do encontro que Jesus teve com uma mulher que iria ser apedrejada? Abaixo o texto transcrito:


Jesus, porém, foi para o Monte das Oliveiras. E pela manhã cedo tornou para o templo, e todo o povo vinha ter com ele, e, assentando-se, os ensinava. E os escribas e fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em adultério; E, pondo-a no meio, disseram-lhe: Mestre, esta mulher foi apanhada, no próprio ato, adulterando. E na lei nos mandou Moisés que as tais sejam apedrejadas. Tu, pois, que dizes? Isto diziam eles, tentando-o, para que tivessem de que o acusar. Mas Jesus, inclinando-se, escrevia com o dedo na terra. E, como insistissem, perguntando-lhe, endireitou-se, e disse-lhes: Aquele que de entre vós está sem pecado seja o primeiro que atire pedra contra ela. E, tornando a inclinar-se, escrevia na terra. Quando ouviram isto, redarguidos da consciência, saíram um a um, a começar pelos mais velhos até aos últimos; ficou só Jesus e a mulher que estava no meio. E, endireitando-se Jesus, e não vendo ninguém mais do que a mulher, disse-lhe: Mulher, onde estão aqueles teus acusadores? Ninguém te condenou? E ela disse: Ninguém, Senhor. E disse-lhe Jesus: Nem eu também te condeno; vai-te, e não peques mais. João (8:1-11)

O adultério era crime, bem como roubar. A solução encontrada no Antigo Testamento, criada pela Lei Mosaica, era o apedrejamento de quem adulterasse (Levítico 20:10). O interessante é que na história em que Jesus participa ele desafia: “quem nunca pecou que atire a primeira pedra”. Por que isto? Porque Jesus, logo que viu a mulher, “sentiu a falta do homem”. Ora, se o adultério era punível de morte, cadê o homem? Por que trouxeram só a mulher? Não é demais imaginar que provavelmente o homem estivesse ali com pedras na mão também... Mas falar que “o primeiro sem pecado que jogue a pedra” foi uma forma muito inteligente de demonstrar que, ali, todo mundo tinha mãos sujas, passado que condena e razão também para ser punido. Ninguém é santo.

Ora, agora imagine que você vive numa sociedade imensamente religiosa, que lota igrejas – com um mercado gospel que rende muito com a venda de bíblias e bugigangas da fé – e que pratica e apoia o linchamento. Agora pense na barbárie: o indivíduo é acusado de roubo e alguém, bondoso, que pensa no bem da comunidade e da nação, o assassina.

Certamente, estes que praticam linchamentos são pessoas que costumam falar que “advogado é safado, pois defende bandido” ou que “odeiam os direitos humanos”, mas... e quando pesar sobre eles a cruz de uma ação penal? E quando começar a via crucis do tribunal do Júri? Neste momento, ninguém no mundo será mais bem vindo que um advogado, que garantirá os Direitos Humanos do cidadão: ampla defesa e contraditório. Isto é: garantir para o “sujeito justiceiro” o que ele achou que não devia ser garantido ao rapaz linchado.

Isto tudo é sintoma de uma sociedade doente, egoísta, que aprendeu a santificar bens e não a vida. Foi Marx quem disse que a desvalorização do mundo humano aumenta em proporção direta com a valorização do mundo das coisas – e ele não estava errado. Vivemos numa sociedade extremamente religiosa, mas distante do que Jesus falou. Ver um religioso apoiando a barbárie dos linchamentos e da pena de morte é muito bizarro porque o que vemos em Jesus é outra frase: ‘nem eu te condeno”.

Infelizmente notícias sobre linchamentos são cada vez mais constantes em nossa sociedade, e o temor – pelo menos meu! – é que se torne algo natural. Eu temo porque a banalização do mal nos faz perder a nossa capacidade de se revoltar com injustiças. Na verdade, a banalização do mal nos fazer cometer injustiças sobre o pretexto de fazer justiça.

Matar para fazer justiça é como jogar gasolina para apagar fogo: é estupidez. E que Deus nos livre dessas pessoas justas e boas.Wagner Francesco é Teólogo com pesquisa em áreas de Direito Penal e Processual Penal.

A passagem da vingança para a matança


Diogo Cabral*, Luís Antônio Pedrosa* e Wagner Cabral** 

Os linchamentos, geralmente, são mais frequentes em tempos de tensão social e econômica. Essa modalidade de extermínio também sempre esteve relacionada a preconceitos e práticas discriminatórias que condicionaram as sociedades a aceitar esse tipo de violência como prática normal de "justiçamento popular". Não é à toa que seu formato atual foi dado no contexto da opressão racial existente ao longo da colonização dos EUA.

Assim como existe uma certa aura de perdão em torno do agente da lei que pratica extermínios, os linchamentos invocam justificativas. A mais alegada atualmente é o aumento da criminalidade e a fragilidade do sistema de segurança pública e de justiça.

A palavra tem origem vinculada ao nome do Coronel Charles Lynch ou ao Capitão Willian Lynch, ambos coetâneos ao século XVIII. A lei de Lynch, a partir de 1837, designou o ódio racial contra índios e negros e consolidou práticas que deram origem ao grupo racista Ku Klux Klan.

Assim como ocorreu no sul dos Estados Unidos, o linchamento tem como mola propulsora a desconfiança da lei e a reivindicação de anarquia, terreno fértil para a proliferação da barbárie.

No Brasil, ela se dirige basicamente à principal clientela do sistema penal: jovens, negros e pobres. O caldo de cultura para esse tipo de violência é alimentado por amplos setores da mídia policialesca, que vegeta na periferia da programação das grandes redes de televisão e rádio e, atualmente, até nos discursos religiosos fundamentalistas mais inflamados.

Tal como o preconceito, quando flagrado geralmente é negado. E nenhum desses agenciadores diriam claramente que defendem o linchamento. O incentivo se dá por vias indiretas, fortalecendo noções do senso comum cuja lógica descamba para o mesmo lugar de sempre: a violência.

Os lugares comuns frequentemente invocados por esses grupos formadores de opinião podem ser facilmente perceptíveis:

a) A polícia prende mas a justiça solta;
b) Adolescentes infratores não são punidos;
c) O ECA protege "menores" bandidos;
d) Bandido bom é bandido morto;
e) Direitos humanos só defende bandido.

Essa cantilena, repetida infinitas vezes e das mais variadas formas, suscita o espírito de desamparo e de vingança na população. Os elevados índices de criminalidade são analisados a partir das suas consequências exclusivamente, exigindo soluções cada vez mais repressivas.

Assim, esse discurso conservador vai evoluindo para soluções cada vez mais drásticas e irracionais, mobilizando adeptos, como num efeito dominó, em atitude de manada, culminando no retrocesso da representação política atual, como é exemplo a bancada da "bala", do "boi" e da "bíblia".

O linchamento é estimulado pela nova pauta reacionária instalada. Ela quer que cada cidadão possua uma arma para se defender dos ditos criminosos; ela quer a pena de morte e a prisão perpétua; ela quer a tortura institucionalizada; ela quer a redução da maioridade penal; ela quer mais presídios e mais polícia; ela quer a criminalização dos grupos sociais que reivindicam direitos; ela quer a volta da ditadura militar e a satanização das identidades sexuais e religiosas. 

Enfim, essa pauta quer muito mais. A cena do linchamento no bairro São Cristóvão, periferia de São Luís, é a cópia de todas as outras. Até no poste se assemelha, como versão atual do Pelourinho. 

A praça pública ou o palco do espetáculo sangrento são as redes sociais. Neste universo de compartilhamento de imagens, surgem dois homens, um morto, completamente desnudado e amarrado com cordas a um poste e outro espancado, também amarrado.

Do virtual para o real, a cena se desenrola em São Luís do Maranhão, uma das cidades mais violentas do Brasil, apontada como a 10a cidade mais violenta do mundo (pela ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz), capital de um Estado onde a desigualdade social detém indicadores alarmantes.

Aqui o (in)justiçamento possui a regularidade de uma vítima por mês, desde o ano de 2013, segundo levantamento da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).Trata-se de mais um caso de linchamento. Não por acaso, mais um jovem negro, suspeito da prática de assalto, trucidado por pauladas, garrafadas, facadas e enforcamento, em plena via pública.

De janeiro de 2013 até julho de 2015, houve 29 linchamentos com vítimas fatais, resultando em 30 mortes na Grande São Luís (houve um caso de linchamento duplo, de adolescentes de 16 e 17 anos). Além destes, houve pouco mais de uma dezena de linchamentos que não resultaram em morte. A média, portanto, é de um linchamento fatal por mês – medida da barbárie naturalizada no cotidiano urbano.

O mapa abaixo esclarece a incidência dos linchamentos na capital maranhense e ilustra esta forma de fazer justiça. Segundo os motivos atribuídos para os linchamentos com vítimas fatais, na parca cobertura da imprensa local ou nos sumários relatórios da SSP-MA, temos:

a)      4 casos envolvendo estupro ou violência doméstica;
b)      4 casos envolvendo assassinatos (ou tentativa de), inclusive um caso de linchamento de um policial (PM);
c)      4 casos em que não foi possível reunir informações suficientes para identificar os motivos;
d)      18 casos de linchamento de supostos assaltantes (60% do total).



O que impressiona não é somente a crueldade do linchamento de Cleidenilson Pereira da Silva, mas também a “invisibilidade” das outras 29 mortes por linchamento ocorridas nos últimos dois anos e meio, bem como a impunidade dos envolvidos e o silêncio do Estado. Nesse sentido, desde o início do ano, foi apresentada ao governo do Maranhão a proposta de criação de um Sistema Estadual de Informações sobre Violência e Segurança Pública, visando o monitoramento dos mais diversos tipos de violência, numa parceria Estado-Sociedade Civil, de modo a subsidiar a formulação de políticas públicas de prevenção social da violência e combate à impunidade. Continuamos aguardando a resposta do governo estadual...

George Sorel, em seu estudo no início do século XX, informa que a força bruta, o derramamento de sangue e a crueldade seriam interpretados usualmente como costumes de povos antigos, de sociedades atrasadas. José de Sousa Martins chama atenção para o fato de que no Brasil, no entanto, os linchamentos diferem profundamente do que a própria imprensa classifica como chacinas, praticadas por justiceiros ou, mesmo, policiais. Nos debates a respeito dos linchamentos, é possível perceber que muitos confundem a ação dos linchadores com a ação dos chamados justiceiros, apesar da enorme diferença entre as motivações de uns e outros. Boa parte das pesquisas sociológicas colocaram grande ênfase nas orientações positivas dos agentes da luta pela cidadania, dando ênfase ao estudo dos movimentos sociais, orientados por objetivos sociais evidentes e modernizadores, isto é, de algum modo politizados.
Evidentemente, estamos diante de um fenônemo novo e distinto, inserido dentro de um conjunto de práticas elaboradas pelo pensamento conservador, em tudo diferente das práticas de gestação da cidadania onde a chamada “justiça popular” poderia ter lugar.

Para os grupos vulnerabilizados, a conjuntura de fortalecimento do ódio e do preconceito leva a situações extremas, emergindo o linchamento como um dos mecanismos desse ideal de justiça, seletivo, emocional, permeado de rituais súbitos, irracional e refratário aos procedimentos formais dos julgamentos reconhecidos pelo Estado de Direito.

Jean Améry, sobrevivente do campo de concentração de Bergen-Belsen, em seus escritos testemunhais, nos esclarece que o prisioneiro do lager nazista denominado de Muselmann era um cadáver ambulante, um feixe de funções físicas já em agonia e que deveria ser excluído da consideração humana, ou, notadamente, conforme Primo Levi, em seu livro É isto um homem?, o Muselmann é o não-homem que habita e ameaça todo ser humano, a redução sinistra da vida humana à vida nua e que não pode nem ser chamado de vivo nem ter uma morte que mereça esse nome.

A passagem de uma vingança ordinária para a matança transforma os homens em objetos e os redefine e insere em dois grupos racionalizados, notadamente aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer. O primeiro, o grupo dos bons, dos intocáveis, que também são diferenciados internamente por representações classistas,  e o segundo, daqueles que representam o mal, a feiura, a imundice, os negros e pobres da periferia que cometem os delitos contra o patrimônio dos bons e que deixaram de ser homens e viraram feras. Estas redefinições e rearranjos não encontram guarida no ordenamento jurídico nacional, no entanto, constituem-se como regra padrão, como nomos que, contraditoriamente, são utilizadas em larga escala pelo próprio Estado, que, teoricamente, as repele. Assim, de acordo com Hannah Arendt, “grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em termos utilitários. [...] Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários para tornar os homens supérfluos”.

Decapitações, torturas, linchamentos e chacinas não podem ser explicados como uma fatalidade, mas sim caracterizados como um mecanismo eficaz de controle absoluto sobre a vida humana, induzido por ações/omissões estatais que, cada mais vez, golpeiam, como punhal, à traição, o corpo do inimigo declarado e marcam o fim e a ruína de qualquer ética da dignidade humana.

*   Advogados da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.
** Historiador, Prof. Ms. do Curso de História da UFMA, membro do Conselho Diretor da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e do Observatório da Violência.