terça-feira, 20 de julho de 2010
BRASIL É RESPONSÁVEL PELA IMPUNIDADE NO “CASO ASSIS”
Do blogue do Zema: http://www.zemaribeiro.blogspot.com/
Passados quase 20 anos do assassinato do lavrador Francisco de Assis Ferreira, nenhum envolvido foi julgado e/ou condenado. OEA acatou denúncia da SMDH e Justiça Global e responsabiliza o Estado brasileiro pela impunidade.
POR ZEMA RIBEIRO
“Já ia dar doze horas, os companheiros chamaram ele. Já só andavam juntos, temendo as ameaças. Ele disse: ‘vão andando que eu acompanho já vocês’. Outro companheiro disse: ‘vão indo que eu fico mais ele’. Ele [Assis] ainda perguntou: ‘vocês têm água?’. E os outros responderam que não, que o resto que tinham derramou. E ele retrucou que também não iria demorar, que estava com sede. ‘A sede é tanta que eu ‘tou cuspindo bala’, lembro bem o termo que me disseram que ele usou. No caso, a bala já ‘tava lá na frente esperando ele”.
[O lavrador e líder sindical Assis. Reprodução de panfleto distribuído quando do primeiro aniversário de seu assassinato]
Aos 62 anos, Dona Antonia Araújo Oliveira, carrega no rosto as marcas do sofrimento. Cada ruga parece uma medida de tempo particular da dor que carrega desde o covarde assassinato do marido, o lavrador e liderança sindical Francisco de Assis Ferreira, quando retornava da roça para almoçar em casa, na gleba Conceição do Salazar, em Codó/MA [atualmente Capinzal do Norte]. A cena é lembrada por ela no parágrafo anterior.
[Pistoleiros presos à época do assassinato de Assis e soltos em seguida. Exceto Feliz Diogo, ainda vivo, todos morreram sem julgamento e/ou condenação. Foto: Reprodução da publicação Conflitos de Terra. Acervo SMDH]
À época, foram presos em flagrante os pistoleiros Natal José de Sousa (Paturi), José Felício de Oliveira (João do Boi), Francisco de Sousa Lobão (Corda), Luís Silva Ferreira (Valter da Dedé) e Feliz Diogo do Espírito Santo. Após nove dias na cadeia foram soltos mediante parecer do Ministério Público, que considerou a prisão ilegal. Jonas da Cruz Rocha, suposto proprietário de uma fazenda de 12 mil hectares, a área em conflito, foi apontado como mandante do crime.
A polícia não realizou exames periciais básicos como balística ou da cena do crime. Pelas falhas da investigação policial, o inquérito só foi concluído em 1994, ano em que a viúva mudou-se para o povoado Santa Cruz [hoje em Capinzal do Norte/MA], outra área de conflito, onde vive até hoje. “Mas lá já foi tudo desapropriado. Tem oito meses que eu ‘tou na casa de uma irmã, no Ceará, mas eu, apesar de ter nascido lá, não me acostumo mais a morar ali”, disse. “Mas aqui, acolá, eu entro lá [onde o corpo do falecido marido está sepultado] pra eu nunca esquecer. É uma obrigação, eu vou todo cinco de novembro [aniversário do assassinato]”, completa. O processo que apurava o homicídio foi declarado improcedente pelo juiz da comarca de Codó em 1997. Da decisão houve recurso ao Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão, em maio de 2000. Mas as esperanças de julgamento, condenação e de que a justiça fosse feita foram sepultadas no Palácio Clóvis Bevilácqua.
Ontem (19) completou nove anos do ingresso da petição P-462-01 na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) da Organização dos Estados Americanos (OEA). A Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH) e a ONG Justiça Global (RJ), diante da morosidade do judiciário maranhense e do arquivamento do caso, alegaram a responsabilidade internacional da República Federativa do Brasil pela falta de prevenção e pela impunidade no assassinato de Francisco de Assis Ferreira. Ele tinha 44 anos quando foi executado. A denúncia foi acolhida pela CIDH no relatório de admissibilidade nº. 94/09, de 7 de setembro de 2009, quando a OEA concluiu ter competência para examinar o mérito do Caso 12.726 – número com que o mesmo foi inscrito na corte internacional.
Conflito – O suposto proprietário da fazenda expulsou duas famílias de lavradores rurais dessa propriedade em 1989. No ano seguinte o fazendeiro interporia uma ação de reintegração de posse. 30 anos antes, em 1959, Jorge Rocha Tibúrcio, pai de Jonas, teria registrado indevidamente as terras em questão, os povoados Pitoró, Resfriado e Pescateira, localizados na gleba Conceição do Salazar.
Milícias privadas foram contratadas por Jonas para bloquear o acesso das famílias às suas plantações. Ameaças de morte contra trabalhadores rurais foram denunciadas pelos mesmos ao delegado de polícia do município de Coroatá e organizações da sociedade civil, entre as quais a SMDH, denunciaram as tensões na região, solicitando ao então secretário de segurança pública estadual Agostinho Noleto, medidas preventivas para desarmar as milícias e garantir a segurança e a integridade física dos lavradores e suas famílias. Nada foi feito e em 5 de novembro de 1991 Assis foi assassinado com um tiro no peito e outro nas costas, em uma emboscada.
Na ocasião, o trabalhador rural Francisco das Chagas Sousa, conhecido como Pretinho, foi ferido por um dos tiros no braço esquerdo, mas sobreviveu. “Não era para ele [Assis] ter morrido. Se fosse doença, ele ainda estava vivo, iria fazer 63 anos, ele era só um ano mais velho que eu. Se fosse a morte que Deus dá, a gente se conformava. Mas uma criança ver seu pai morto assim...”, lembra dona Antonia, emocionada. E completa: “Mas ele sempre dizia: ‘eu vou morrer pelos companheiros’”, referindo-se à sua atuação como liderança junto ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Codó/MA.
[Centenas de pessoas acompanharam o enterro de Assis. Foto: Cesar Teixeira]
Admissibilidade – A Comissão Interamericana de Direitos Humanos declarou admissível a petição “no que se refere a supostas violações dos direitos protegidos nos artigos I e XVIII da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem com relação aos fatos ocorridos antes de 25 de setembro de 1992” – data da assinatura da declaração –, conforme texto do relatório nº. 94/09, da CIDH/OEA.
“Recorremos à OEA por terem sido esgotadas as instâncias internas e até hoje nós não termos um julgamento, o que só faz com que as pessoas achem que podem tirar a vida de outras, que podem banalizar um direito fundamental, que é o direito à vida”, afirma Joisiane Gamba, advogada da SMDH. “É um recurso extremo, que não gostaríamos de ter que usar, mas que é preciso, uma vez que os espaços responsáveis pela apuração e responsabilização no Estado brasileiro não tem sido ágeis, hábeis e eficazes para a garantia dos direitos humanos. O Brasil está no relatório de 2009 da OEA como um estado que não garante os direitos humanos. É um vexame público, mas infelizmente tivemos que acessar, e vamos acessar todas as vezes em que se fizer necessário garantir direitos humanos, que não têm pátria nem nacionalidade, completa.
A petição também foi declarada admissível “no que se refere a supostas violações dos direitos protegidos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos quanto à obrigação geral consagrada no artigo 1.1 desse tratado, com relação aos fatos ocorridos depois de 25 de setembro de 1992”; as partes – SMDH e Justiça Global como peticionários e o Estado brasileiro – foram devidamente notificadas e a CIDH/OEA continua com a análise do mérito do assunto. A decisão foi publicada em 7 de setembro de 2009 e incluída no Relatório Anual à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos.
“A OEA acolheu a denúncia pela não apuração dos responsáveis pela morte de Francisco de Assis e nesse momento a Comissão [Interamericana de Direitos Humanos] está examinando o mérito dessa denúncia. Nosso trabalho, agora, é de acompanhamento dos desdobramentos da análise do mérito”, explica o advogado Celso Sampaio, da SMDH. “Isso pode resultar em várias sanções ao Estado brasileiro, de ordem pecuniária, com indenizações, ou de ordem estrutural, com relação à questão da segurança no país. Houve prisões, mas não houve apuração, nem julgamento ou condenação de quem quer que seja até a presente data”, complementa.
[Dona Antonia, 63, na sede da SMDH, ontem. Foto: Zema Ribeiro]
Na manhã de ontem (19), a senhora Antonia Araújo Oliveira, esteve na sede da SMDH, em São Luís/MA, onde, acompanhada dos advogados Celso Sampaio e Joisiane Gamba, que têm acompanhado o caso junto à OEA, concedeu entrevistas a diversos meios de comunicação da capital maranhense.
Dona Antonia vive da pensão de um salário mínimo. Tem seis filhos (“Homem é só o mais velho, as outras todas são mulheres”). Quase sempre cabisbaixa, sua expressão é de profunda tristeza, apesar do olhar vivo. Ao fim da manhã, após lembrar detalhes doloridos de sua viuvez precoce, pediu licença para fumar. Ao despedirmo-nos com um abraço, ela esconde o cigarro e comenta, sobre o vício: “Eu sei que ‘tou errada. Mas o mal que eu faço é só pra mim”. Sábia lição.
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