sábado, 19 de junho de 2010

Entrevista com Frei Betto

Paula Bonelli *

Adital –


Frei Betto lutou, foi preso, rezou em passeatas e chegou ao poder com o Lula em Brasília. Agora, ele se define como um "feliz indivíduo não governamental". Depois de correr o mundo, está de volta para onde tudo começou. Vive no convento dos frades dominicanos, uma construção moderna, em Perdizes. De lá, reflete sobre sua trajetória, os caminhos e descaminhos do PT que ajudou a construir. Sem deixar de ser crítico, fala sobre avanços do governo Lula: "Hoje não há uma pessoa que diga que o PT se destaca pela sua integridade". Sobre a indicação de Dilma Rousseff para disputar a sucessão de Lula, diz que se não fosse o mensalão o candidato certamente seria outro. Frei Betto gosta de temperos fortes. Também é assim quando cozinha para os amigos. Faz "bacalhau espiritual" à base de muito leite de coco.

A reportagem e a entrevista é de Paula Bonelli, O Estado de S. Paulo, 14-06-2010.

Diz que continua amigo de Lula e de Fidel Castro, a quem visitou recentemente. Ele acaba de concluir seu 53º livro, mas que, por superstição, não revela o tema. Conselhos que recebeu de uma mãe de santo quando escrevia Batismo de Sangue, em 1982, sobre sua experiência durante a resistência à ditadura militar.
Eis a entrevista.
-O que mudou para que o Brasil viesse a ter uma candidata oriunda da esquerda armada?
-É fantástico que, enquanto os torturadores se escondem envergonhados e não conseguem nem votos de seus companheiros de farda, uma pessoa como a Dilma seja hoje a candidata preferencial à Presidência. Acho que ela está preparada, conhece profundamente a administração pública e foi ótima ministra.
-Lula fez uma boa escolha?
-Lula fez a escolha possível porque as outras se queimaram. Dilma é candidata por falta de opção.
-Se não fosse o caso mensalão quem seria o candidato? José Dirceu teria chance?
-Só Lula pode responder, mas, na minha opinião, certamente não seria a Dilma.
-O PT é um antes do mensalão e outro depois?
-Sem dúvida alguma. O PT tinha dois trunfos simbólicos para garantir a sua credibilidade: ser o partido dos mais pobres e da defesa da ética. De certa maneira, ele ainda é o partido dos desfavorecidos. O apoio popular do presidente Lula vem das políticas sociais que governo desenvolveu. Entretanto, não há hoje ninguém que diga que o PT se destaca por sua integridade.
-O caráter da militância mudou?
-Com certeza. Nas eleições dos anos 80 e 90 existiam militantes que voluntariamente se dedicavam a fazer panfletagem, que davam o sangue nas campanhas. Hoje os cabos eleitorais do PT são pagos. Isso é triste.
-Por que o governo Lula não deu continuidade ao Fome Zero?
-Porque quem controlava o cadastro eram representantes eleitos em assembleias populares. Isso provocou gritaria dos prefeitos, pois o dinheiro não passava por eles. Saía da Caixa Econômica direto para as famílias beneficiadas. O prefeitos ameaçaram sabotar e o governo federal decidiu erradicar os comitês gestores formados em mais de 2 mil municípios. O governo deu aos prefeitos o controle do cadastro, permitindo que famílias fossem incluídas ou retiradas do programa, estimulando a corrupção. Isso criou uma relação de clientelismo político no País.
-Por que deixou o governo?
-Descobri que não era minha vocação. Fui convocado para fazer o Fome Zero que tinha um caráter emancipatório. O governo matou o programa e o substituiu pelo Bolsa Família, que é usado como cacife eleitoral. Até agora nenhum gênio achou a porta de saída.
-Você guarda mágoas?
-Não, ao contrário. Minha experiência no governo expus em dois livros: A Mosca Azul e Calendário do Poder. Tenho bons amigos lá e espero que tudo tenha continuidade. Queria voltar a escrever, pois é minha verdadeira vocação.
-Quais são os problemas do governo Lula na sua opinião?
-O governo Lula, apesar de muitos méritos, ainda deve à Nação reformas básicas, como a agrária, tributária, política, da saúde e da educação. O principal defeito do governo atual é não ter mexido na estrutura.
-O presidente Lula o consulta?
-Não, o presidente é meu amigo. Nunca fui consultor, guru. Isso que falam é bobagem.
-Tem falado com Fidel Castro?
-Tenho. Quando vou a Cuba, ele me recebe na casa dele. A última vez foi no dia 3 de março, quando fui comemorar os 25 anos do livro Fidel e a Religião.
-Acredita em abertura do governo de Cuba com Raúl Castro?
-Raúl está empenhado em reduzir o paternalismo estatal e permitir o aumento dos salários. Mas o retorno do capitalismo está fora de cogitação.
-O que acha do Lula intermediar acordo para que o Irã desenvolva seu programa nuclear?
-Lula é um grande negociador. Ele provoca enorme ciumeira no cenário internacional porque não precisa pedir licença a ninguém para desempenhar seu papel de agenciador da paz.
-Não importam os argumentos de que o Irã tem um governo teocrático e de que não respeita os direitos humanos?
-Mas os EUA também não respeitam. Quem deu a eles o direito de ocupar o Vietnã, de matar mais de 600 mil civis no Iraque e outros tantos no Afeganistão? Que moral têm para falar de um país como Irã?
-É possível, então, ignorar a falta de liberdade de expressão e a pena de morte?
-E nos EUA não tem?
-É legítimo se os dois países se comportam da mesma forma?
-Nós queremos a paz no mundo e não haverá paz se não tiver justiça. Enquanto não vem, o melhor caminho é dialogar. Isso o Lula faz muito bem.
-Como vê o comportamento da igreja em relação à pedofilia?
-A igreja tardou a tomar providências efetivas. Primeiro internas, com a suspensão dessas pessoas, depois respondendo pelos crimes cometidos perante a legislação vigente.
-O que está por trás disso?
-A ideia de que todo sacerdote precisa ter vocação para o celibato. Esse não era o ponto de vista de Jesus. E como sei disso? Porque está no primeiro capítulo do Evangelho de Marcos, que fala que Jesus curou a sogra de Pedro. Agora, se Pedro tinha sogra, qual é a conclusão? E o interessante é que não só Jesus incorpora ao grupo de apóstolos um homem notoriamente casado como o escolhe para ser o primeiro Papa. O celibato foi uma medida tardia na história da igreja católica.
-E o celibato leva à pedofilia?
-Isso acontece por dois motivos: a obrigatoriedade do celibato e a má formação afetiva dos seminaristas. Acho um crime colocar no seminário um jovem antes dos 15 anos, que não tem claro ainda o seu perfil sexual, e depois jogá-lo sozinho em uma paróquia sem qualquer relação familiar. Essa carência leva, às vezes, a aberrações.
-Você é celibatário?
-Sim. Para quem vive numa comunidade religiosa como eu, não faz o menor sentido casar porque você partilha os seus bens, a sua vida. Agora, para os sacerdotes diocesanos não há nenhuma razão. Se há nesses escândalos de pedofilia algo aproveitável é a possibilidade da igreja voltar a discutir a obrigatoriedade do celibato e a ordenação das mulheres.
-Qual é a explicação para as mulheres não sejam ordenadas?
-A igreja considera ainda hoje a mulher um ser inferior ao homem. No período medieval, a instituição abraçou o princípio de São Tomás de Aquino que, entre grandes luzes, disse essa bobagem.
-Como era o Frei Betto de 30 anos atrás e como é o de hoje?
-Continuo um cigano de Deus, viajando a bordo de um paradoxo. Há 30 anos eu acreditava que o meu tempo pessoal coincidiria com o meu tempo histórico. Hoje, sei que não participarei da colheita, mas faço questão de morrer semente.

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