Por racismoambiental, 06/10/2010 09:50
Segundo dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), o envolvimento de comunidades tradicionais em conflitos sociais no campo aumentou consideravelmente no último ano, chegando a representar cerca de um quarto do total dos conflitos registrados. Em entrevista à CPT NE II, o pesquisador e professor da Universidade Federal do Amazonas, Alfredo Wagner*, aprofunda a análise sobre esta nova configuração dos conflitos no campo e ressalta a importância do debate do território, considerando-o como elemento central da questão agrária brasileira. Para o pesquisador, “Está em jogo uma ideia de que os conflitos hoje não são só conflitos agrários stricto sensu, são conflitos sociais no campo que têm uma dimensão cultural, identitária e étnica.” Confira abaixo a entrevista:CPT NE II – A partir dos dados da CPT, temos visto nos últimos anos um aumento significativo do envolvimento de comunidades tradicionais em conflitos no campo no Brasil. Como o senhor analisa esse novo desenho dos conflitos no campo?
Alfredo Wagner – Com relação aos conflitos sociais no campo o que mais me chamou a atenção, no último levantamento feito pela CPT, foi que do total de 528 ocorrências registradas no decorrer de 2009, cerca de um quarto delas correspondia a povos indígenas e quilombolas, à comunidades de fundo de pastos e comunidades de faxinais, à quebradeiras de coco babaçu, à comunidades extrativistas na Amazônia, ribeirinhos e outras unidades sociais usualmente designadas como povos ou comunidades tradicionais. Uma leitura à primeira vista é que os interesses dos agronegócios (soja, cana-de-açúcar, dendê, eucalipto, pecuária e carvoarias atreladas a guseiras), combinados com ações de mineradoras e grandes projetos de infraestrutura (rodovias, barragens, hidrovias, aeroportos, portos) e com medidas governamentais ditas de “regularização fundiária” estão pressionando mais diretamente as terras tradicionalmente ocupadas. O aquecimento do mercado de terras está impondo novas tentativas de usurpação de direitos territoriais dos povos e comunidades tradicionais. Estas comunidades, agrupadas em torno de identidades coletivas, tem mostrado um formidável potencial de resistência à expansão dos agronegócios e à devastação ambiental. Na defesa dos recursos hídricos e florestais, tem inclusive colocado inúmeros condicionantes às chamadas agroestratégias, que visam incorporar a todo custo e de maneira célere novas extensões de terra ao mercado de commodities. Está-se diante de um fenômeno recente, que traz os conflitos para dentro dos aparatos de poder, nos meandros do Estado. Os “crescimentistas”, como diria Carlos Vainer, para classificar o aparato burocrático e de planejamento que privilegia as “grandes obras”, parecem denotar um absoluto menosprezo pela capacidade econômica das comunidades tradicionais e por qualquer fator que associe elementos identitários a lutas econômicas. De outro lado, tem-se os que se empenham no reconhecimento da diversidade cultural e do que Hobsbawm chama de “política de identidade”, evidenciando o quanto estes fatores são essenciais ao desenvolvimento sustentável. Tal contradição nos levou a indagar o porque e proceder à leitura crítica de inúmeras interpretações conflitantes.
Uma destas interpretações refere-se à formulação de Elinor Ostrom, ganhadora do Prêmio Nobel de Economia, em 2009, que afirma que a gestão comunitária tem apresentado uma eficácia tão grande ou maior que a gestão privada ou governamental. Perguntamo-nos se isso se daria através do conhecimento profundo que as comunidades têm de um ecossistema ou de um determinado bioma, ou se seriam laços de solidariedade que não foram esgarçados ou fragilizados como teria sido no caso de trabalhadores rurais, dos chamados “posseiros” e, enfim, dos chamados “proletários”? A perda da capacidade mobilizadora de certas categorias sociais glacializadas ou despolitizadas, evidenciou a inspiração mobilizatória dos que se agruparam nas identidades coletivas e emergentes, gravitando em torno da força política acoplada no novo significado de “tradição” e de “tradicional”. A partir dessas verificações e de indagações sobre o processo de transformação dos discursos e dos atos políticos é que nos detivemos no que é que poderia explicar o aumento da resistência ou do “envolvimento” de comunidades tradicionais nos conflitos no campo.
Novo capítulo dos conflitos sociais no campo
Assistimos, assim, a um novo capítulo dos conflitos sociais no campo, marcado de um lado pelo aquecimento do mercado de terras, por agroestratégias muito agressivas e pela visão triunfalista do agronegócio. Segundo seus intérpretes, a re-primarização da economia brasileira tem sido o grande motor do crescimento econômico e “nós deveríamos agradecer” às agroestratégias pela maneira como está se dando. De outro lado, encontram-se as interpretações que evidenciam a importância da agricultura de base familiar, do uso comum dos recursos naturais e das formas de solidariedade intrínsecas às comunidades tradicionais.
Pode-se afirmar, quanto a isto, que nesta primeira década do século XXI, estamos assistindo não somente à emergência de novas identidades coletivas (que já mencionamos acima), mas também a um maior potencial de solidariedade e da capacidade de resistência destas comunidades tradicionais à expansão das agroestatégias. Essa combinação da emergência da identidade com o processo de mobilização e de resistência à ampliação das terras pelo agronegócio tem sido um elemento bastante contraditório. Os economistas e historiadores, de fundamentos evolucionistas, apostavam que os fundos de pastos não existiam mais, que as quebradeiras de coco babaçu representavam uma forma atrasada e primitiva de extrativismo, e mais: que o “extrativismo acabou”, que os índios tendiam a desaparecer face ao progresso e que os faxinais estavam em extinção. Essas eram as teorias evolucionistas e inspiradas no “crescimentismo”, que dominavam o discursos dos planejadores desde a ditadura militar. Agora nós estamos constatando a reversão de tudo isso, a falácia destes argumentos positivistas e tão definitivos em seu eurocentrismo de nítida marca colonial. Nós estamos assistindo à afirmação dos quilombolas e à afirmação da gestão comunitária nas próprias terras indígenas. Temos também o caso das quebradeiras de coco de babaçu mobilizadas em torno das leis do babaçu livre, bem como o dos faxinalenses com a luta pelo “pinhão livre” no Paraná.
Nós temos, em verdade, o fortalecimento efetivo de tudo aquilo que estava classificado pelo poder como em “extinção” e que, no momento atual, parece se agrupar na definição de comunidades tradicionais. Essas comunidades emergem como existências coletivas relativamente consolidadas e com potencial de enfrentamento à expansão dos agronegócios. Nesse sentido, as novas plantations (soja, cana-de-açúcar, dendê e plantios de eucalipto vinculados às fábricas de papel e celulose) tem uma fragilidade a toda prova face às flutuações dos preços de mercado. Isto não ocorre com as comunidades tradicionais, que revelam maior capacidade de resistir às flutuações dos preços. Elas tem autonomia produtiva frente às flutuações do mercado de commodities, em um período em que há uma crise de alimentos e em que boa parte das novas plantations volta-se para a produção de biocombustíveis.
Os relatórios da FAO, de agosto e setembro de 2010, indicam a gravidade da questão expondo a expressão do êxodo rural no mundo nas duas próximas décadas. Os números convergem para 30 milhões de pessoas se deslocando anualmente do campo para as cidades nos próximos 20 a 30 anos. Segundo estimativas, apenas 20% da população permanecerá no campo, tomando a Índia e a China como referência, sendo que no Brasil já poderíamos observar um quadro dessa natureza. Isso nos leva a pensar sobre o papel dessas comunidades tradicionais e porque elas são consolidadas. É diferente dos assentados pelo INCRA e dos posseiros stricto sensu, bem diferente daqueles que utilizam a estratégia permanente de ocupar. As comunidades tradicionais já estão ocupando efetivamente as terras e têm uma resposta pronta ao agronegócio.
CPT NE II – E é a expansão do agronegócio não apenas para a produção de grãos, não só para plantar cana e soja, e sim para se apropriar e explorar a riqueza do território, a biodiversidade…
Alfredo Wagner – Dentro das estratégias das Indústrias de Biotecnologia, está sempre em jogo o controle do patrimônio genético. Esse controle é central para responder essa questão e ele se dá pela mercantilização da floresta em pé. Há todo um conjunto de estratégias de empresas muito sofisticadas, com seus especialistas, economistas, biólogos, antropólogos e advogados para definir esse valor mercantil, para definir o circuito de comercialização desse patrimônio genético e a sua utilização industrial, questões relacionadas à legislação e os mecanismos de repartição de benefícios. Essa luta pelo controle do patrimônio genético é muito forte, é como se o capitalismo tivesse duas versões na sua expansão: uma versão de destruição das florestas, com as novas plantations, tendo que destruir as áreas de mata para o plantio de soja, dendê e eucalipto e para a formação de pastagens artificiais; e essa outra versão que é a de conservar a floresta e preservar a biodiversidade. São duas vertentes do desenvolvimento do capitalismo que estão em conflito aberto, mas confluindo para uma mesma região. Nesta segunda vertente, os interesses dos laboratórios de biotecnologia andam juntos com aqueles dos laboratórios farmacêuticos e da Indústria de cosméticos, sem mencionar as empresas que negociam a venda de créditos de carbono, que já estão ganhando corpo nas bolsas de valores.
As comunidades tradicionais estão resistindo. Umas resistem ao desmatamento e outras às tentativas de controle do patrimônio genético pelas grandes empresas. Elas resistem impondo o seu saber tradicional àqueles interesses empresariais que buscam controlar o patrimônio genético Ela se contrapõe aos laboratórios de biotecnologia e às indústrias de cosméticos. Assistimos hoje a uma luta com característica diferentes do que foi no passado. Não se trata da acumulação primitiva stricto sensu, trata-se de outras formas de controlar recursos hídricos e florestais. Está em jogo uma ideia de que os conflitos hoje não são só conflitos agrários stricto sensu, são conflitos sociais no campo que têm uma dimensão cultural, identitária e étnica. Estes conflitos estão apoiados, primeiramente, pelo processo de autodefinição desses grupos, que têm uma autoconsciência cultural de sua situação, como os faxinalenses, como fundo de pastos, indígenas, quilombolas. Eles se autodefinem assim, dentro das relações que mantém com os outros grupos, não pelas suas características intrínsecas. Assim, eles estabelecem um quadro identitário diferente, de afirmação e de manutenção do seu território. Então tem direitos territoriais em jogo no reconhecimento de comunidades e povos tradicionais, não são só agrários, não é só terra. Esses direitos territoriais são os que apontam para o futuro. Eles são que definirão, de certa forma, uma parte da resistência, principalmente na área de floresta Amazônica, à expansão do agronegócio.
CPT NE II – Nós acompanhamos algumas comunidades tradicionais em Pernambuco e percebemos uma contradição muito grande. Por um lado, houve avanço com o Estado reconhecendo essas populações, mas por outro lado, esse reconhecimento os limita. Temos o exemplo de uma comunidade quilombola chamada Castainho, em Garanhuns, agreste de PE. A comunidade afirma que seu território é mais de 3 mil hectares, no entanto, o Estado só reconhece 298 hectares. Então, isso diz um muito da diferença do conceito de território para a comunidades e para o Estado…
Alfredo Wagner – Não há uma coincidência entre a representação que o Estado tem de território e a territorialidade especifica que o próprio grupo tem de si mesmo, das suas necessidades, do seu conjunto de atividades culturais. Então essa autoconsciência cultural é fundamental para delimitar uma outra territorialidade, que se distingue da oficial, e que é aquela que o grupo considera importante para a sua reprodução física e cultural, e ela contradita aquela do Estado, que é a terra. O Estado, ao lidar com a comunidade tradicional, pensa na terra, e o grupo está pensando em território, então as dimensões não coincidem e acaba que o reconhecimento às vezes pode causar uma limitação para o grupo. No entanto agora, é mais importante nós termos políticas de reconhecimento, com demarcação de terras para depois discutirmos os efeitos das politicas de identidades.
* Alfredo Wagner Berno de Almeida é antropólogo, coordenador do NSCA/CESTU-UEA, professor do PPCAS-UFAM e pesquisador do CNPq.
Entrevista realizada pela Comissão Pastoral da Terra – Nordeste II
http://www.cptpe.org.br/modules.php?name=News&file=article&sid=2862
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