http://www.amalgama.blog.br/10/2010/o-mito-da-continuidade-da-politica-economica
por Rafael Dubeux * – Nos últimos meses, intensificou-se na imprensa a tese segundo a qual o governo Lula teve êxito econômico graças à manutenção intocada da política herdada de FHC. Mais preocupado com a disputa eleitoral do que com a análise isenta, o objetivo desse argumento é conferir todo o mérito e indiscutível prestígio do Presidente Lula ao governo de Fernando Henrique – que hoje não consegue se eleger sequer para síndico de condomínio.
Segundo o argumento, a partir da assinatura da Carta ao Povo Brasileiro, ainda na campanha de 2002, Lula teria se convertido à luz da sabedoria econômica fernandista. Quando assumiu o governo, em janeiro de 2003, garantiu seu sucesso ao preservar o “tripé” da política econômica, consistente em câmbio flutuante, metas de inflação e superávit primário.
Acontece que nem a Carta representou uma aceitação da política econômica de FHC, nem é fato que a manutenção do tal “tripé” signifique a continuidade da política econômica anterior.
Quanto à Carta, de fato ela afastou propostas mais extremas que, noutras circunstâncias, haviam sido defendidas pela esquerda brasileira, como a moratória da dívida. Mas é inteiramente falso afirmar que ela representou a aceitação da política econômica então vigente. É mais um mito. Convém relembrar trechos da Carta:
O Brasil quer mudar. Mudar para crescer, incluir, pacificar. Mudar para conquistar o desenvolvimento econômico que hoje não temos e a justiça social que tanto almejamos. [...]
O povo brasileiro quer mudar para valer. Recusa qualquer forma de continuísmo, seja ele assumido ou mascarado. Quer trilhar o caminho da redução de nossa vulnerabilidade externa pelo esforço conjugado de exportar mais e de criar um amplo mercado interno de consumo de massas. Quer abrir o caminho de combinar o incremento da atividade econômica com políticas sociais consistentes e criativas. O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. [...]
O PT e seus parceiros têm plena consciência de que a superação do atual modelo, reclamada enfaticamente pela sociedade, não se fará num passe de mágica, de um dia para o outro. Não há milagres na vida de um povo e de um país. [...] Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. [...]
Nossa política externa deve ser reorientada para esse imenso desafio de promover nossos interesses comerciais e remover graves obstáculos impostos pelos países mais ricos às nações em desenvolvimento. [...]
Superando a nossa vulnerabilidade externa, poderemos reduzir de forma sustentada a taxa de juros. Poderemos recuperar a capacidade de investimento público tão importante para alavancar o crescimento econômico. [...] Queremos equilíbrio fiscal para crescer e não apenas para prestar contas aos nossos credores. Mas é preciso insistir: só a volta do crescimento pode levar o país a contar com um equilíbrio fiscal consistente e duradouro. [...]
Há outro caminho possível. É o caminho do crescimento econômico com estabilidade e responsabilidade social. As mudanças que forem necessárias serão feitas democraticamente, dentro dos marcos institucionais.
Difícil inferir desses trechos que o candidato Lula se comprometeu com o continuísmo. A Carta, portanto, não representou submissão ao modelo anterior. Mas será que, a despeito da Carta, o governo manteve a política econômica? Vale notar que a crítica central da esquerda ao governo anterior poderia ser assim resumida: 1) a excessiva vulnerabilidade externa do país (sintetizada no enorme déficit em transações correntes); e 2) a péssima distribuição da renda. Como alternativa, propunha-se reduzir a vulnerabilidade e criar um grande mercado interno de massas. Essa interpretação petista (“os desenvolvimentistas”) se contrapunha ao grupo de economistas do então governo (“os monetaristas”) que advogavam que o grande problema macroeconômico do Brasil era fiscal, e não a vulnerabilidade externa.
Falar, portanto, em tripé da política econômica só serve para confundir o debate. Há muito mais entre o céu e a terra da política econômica do que apenas meta de inflação, câmbio flutuante e superávit primário. Aliás, mesmo esses três pequenos itens comportam temperamentos. As metas podem ter bandas mais amplas e seu centro pode ser mais elevado. A flutuação do câmbio não é limpa: intervenções são constantes em todos os países – tal qual no atual governo mediante, entre outros, a criação do fundo soberano, a instituição de IOF em investimentos estrangeiros e a compra intensa de reservas. E, por fim, o superávit é medida importante em períodos de crescimento, mas deve ser evitado como medida contracíclica por ocasião das crises, como praticado em 2009 para mitigar os efeitos da crise internacional – sob outro governo, o Brasil teria aumentado o superávit e elevado os juros.
Mas, como já apontei, há vários outros aspectos da política econômica para além do “tripé”. Podemos falar de crédito, poupança, tributação, comércio exterior, transferências públicas, entre outros.
Impossível, por exemplo, ignorar a mudança radical na política creditícia, mediante microcrédito, PRONAF, crédito consignado e aumento do papel dos bancos públicos (o BNDES emprestou 137 bi em 2009, contra cerca de 41 bi em 2002; a CAIXA aplicou 47 bi em financiamento imobiliário, contra cerca de 5 bi em 2002).
É preciso lembrar também a contribuição indispensável da política de comércio exterior, que auxiliou o país a passar de cerca de US$ 60 bi em exportações para US$ 197 bi em 2008 (em 2009, por conta da crise, caiu para “apenas” 160 bi), diversificando mercados. Isso permitiu ao país adquirir reservas vultosas, passando dos ridículos US$ 16 bi em 2002 para os atuais US$ 240 bi, mesmo com crise. O Brasil ainda ousou taxar os investimentos estrangeiros por meio do IOF, medida impensável pela cartilha anterior. Some-se ainda que, por essas medidas, o Brasil deixou de ouvir as lições e ordens tão temidas do FMI e se tornou credor internacional e também do próprio FMI. Isso seria simplesmente inacreditável em 2002. Nem o mais otimista dos petistas imaginava que o governo se encerraria com tamanho sucesso econômico.
Não custa lembrar que, em 2002, parecia impossível imaginar o Brasil credor internacional e sem receio dos humores diários e instáveis dos investidores internacionais. Notícias diárias sobre risco-país não têm mais relevância hoje. O tal “dever de casa” (quanto se abusou dessa expressão!) a que o Brasil estaria obrigado para atrair investimentos está absolutamente fora da pauta. Foi outro o dever foi realizado: superamos a vulnerabilidade externa e distribuímos um pouco a renda.
Não há como ignorar também o papel dos instrumentos de distribuição de renda, a exemplo do Bolsa-Família, do aumento real do salário-mínimo, da desoneração da cesta básica e de investimentos estruturais em áreas desfavorecidas do país (o Nordeste cresce hoje a ritmo chinês).
O resultado dessas e de outras medidas foram, conforme prometido na Carta, a formação do grande mercado interno de massas (foi o consumo crescente da nova classe média que evitou que afundássemos na crise internacional) e a redução drástica da vulnerabilidade externa (a atual taxa do câmbio traz alguma preocupação, mas nem de longe comparável à era FHC).
É fato que, também conforme disposto na Carta, a mudança não seria feita do dia para a noite. Lula alertara que não daria “cavalo-de-pau em transatlântico”. As mudanças foram cautelosas e eficazes, como se impõe a um país com a complexidade do Brasil. Os resultados estão à mostra: no ano da maior crise internacional das últimas décadas, 2009, o Brasil gerou em um só ano mais empregos formais (995 mil) do que nos oito anos somados de FHC.
Mesmo o retorno recente de pequeno déficit em transações correntes não pode ser equiparado à situação fernandina. Na ocasião, o déficit era objetivo deliberado do governo – hoje não é mais. Na ocasião, o Brasil não tinha reservas em quantidade suficiente e se via espremido por uma dívida externa monumental – hoje não mais. Portanto, embora o déficit atual mereça atenção, ele não pode ser minimamente comparado ao que já passamos por decisões equivocadas de política econômica.
Depois de indicadas as mudanças, é necessário por último rechaçar outro mito: o governo FHC não teria adotado essas medidas porque não teria tido tempo hábil entre o controle da inflação (1994) e o fim do segundo mandato (2002). É falso. O déficit em transações correntes era almejado pelo governo de então, e não um obstáculo que se tentava superar. Argumentava-se que o déficit seria positivo, pois acarretaria o ingresso de poupança externa, compensando a insuficiência da nacional. Apesar das lições históricas, não são poucos os adversários do atual governo que repetem esse argumento disparatado ainda hoje. Alegava-se também que a compra de reservas cambiais em grandes quantidades teria sido um erro do Governo Lula em razão de seu custo fiscal, já que a remuneração das reservas é inferior à dos títulos públicos. (Os críticos das reservas, curiosamente, sumiram depois de setembro de 2008, quando a crise internacional irrompeu. Eram tão atuantes até esse mês…)
Quanto às políticas sociais, com maior razão não cabe falar de momento econômico. Era só implantá-las. Não só não as implantaram, como resistiram a sua concretização no governo Lula sob o argumento, de novo, do custo fiscal. Não foi questão de tempo, mas de escolha política. Foram as medidas deste governo que nos protegeram da crise: reservas vastas, desnecessidade de capital externo, bancos públicos atuantes e mercado interno amplo.
Ignorar todos esses fatos e insistir em que o governo Lula é continuidade do de FHC revela total incompreensão de aspectos elementares de política econômica. Ou será que a compreensão existe, mas o interesse político em desqualificar o atual governo e ajudar o candidato tucano justifica o argumento? De minha parte, tenho calafrios ao imaginar como estaríamos hoje se houvéssemos mantido a política anterior.
* Rafael Dubeux, bacharel em Direito pela UFPE e mestre em Relações Internacionais pela UnB, é Advogado da União e Chefe Substituto da Assessoria Jurídica da Controladoria-Geral da União. (Este artigo foi publicado inicialmente no site do Instituto Alvorada, em fev/10, e reproduzido no Amálgama com autorização do autor.)
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