quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Contra uma política externa subserviente

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27 outubro 2010
Por Marcos Rogério de Souza e Ricardo Leite Ribeiro
A volta do PSDB à presidência representaria um retrocesso histórico diante dos avanços logrados, nos últimos 8 anos, na política externa brasileira (PEB). Nos anos em que Luiz Felipe Lampreia e Celso Lafer foram os Chanceleres de FHC, a PEB ficou marcada pelo seu caráter subserviente em relação aos países centrais e pelo seu rivalismo infantil diante dos outros países do Sul. Alguns momentos dessa política:
1. SIVAM e a insegurança nacional
Apesar de o governo ter dispensado licitação pública para o SIVAM – Sistema de Vigilância da Amazônia, no valor de US$ 1,4 bilhão -, invocando a segurança nacional, o tenente-brigadeiro Marco Antônio de Oliveira, coordenador do projeto, ofereceu aos Estados Unidos acesso total aos dados produzidos pelo sistema (fato relatado em telegrama de 28/06/94 ao Departamento de Estado americano por David Zweifel, cônsul dos EUA no Rio de Janeiro). O americano Alexander F. Watson, secretário de Estado assistente, declarou: “We are pleased that Raytheon Corporation won the contract to construct SIVAM – the largest commercial contract for a US firm in Brazil in many years”. FHC autorizou a assinatura do contrato com a Raytheon em 27 de maio de 1995.
2. CIA e Polícia Federal
No dia 12/04/95, quatro meses depois da chegada do tucano à presidência, foi celebrado o “Acordo de Cooperação Mútua Brasil-Estados Unidos para a Redução da Demanda, Prevenção do Uso Indevido e Combate à Produção e ao Tráfico Ilícito de Entorpecentes”. Esse acordo oficializou a presença do Drug Enforcement Administration (DEA) e da CIA no Brasil. Desde então, os EUA aumentaram o fornecimento de recurso e “investigative equipment such as tape recorders, video camcorders and digital still cameras”, bem como o treinamento de agentes da Polícia Federal. No dia 18/11/97, o delegado da PF Luiz Zubcov disse que a “CIA se valia do programa de cooperação com a Polícia Federal para manter sua base de coleta de informações no Brasil” – dando origem à sindicância 1414/97 na Corregedoria da Polícia Federal.
3. O tucano e Fujimori
No dia 22/07/99, Fernando Henrique Cardoso condecorou, em Lima (Peru) seu colega peruano Alberto Fujimori com a Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul, a mais importante comenda brasileira (Agência Folha, 22/07/99). Além da medalha, o presidente brasileiro intermediou o asilo político de Vladimiro Montesinos, que recebia da CIA US$ 5 milhões ao ano sob o pretexto de combater o tráfico de drogas. O tucano foi, ainda, o primeiro presidente do planeta a reconhecer a eleição fraudulenta de Fujimori e a apoiar seu terceiro mandato, que acabou desaguando em sua deposição e fuga para o Japão.
4. ALCA
O projeto de formação de uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) visava a possibilitar que os EUA incrementassem suas exportações, penetrando nos mercados latino-americanos, bem como garantir o acesso aos recursos naturais da região, como o petróleo, o minério, a água e a biodiversidade da Amazônia. Ao mesmo tempo, os EUA buscavam resguardar os setores menos competitivos de sua economia, preservando os instrumentos não tarifários como os subsídios agrícolas. Esse projeto prejudicaria enormemente os países da região pois significaria o estabelecimento de uma área preferencial hemisférica em detrimento da autonomia na formulação de suas políticas econômicas – além de, politicamente, garantir a hegemonia dos EUA sobre a América Latina.
Apesar da resistência do Itamaraty em relação ao projeto, fortes setores dentro do executivo federal o defendiam. Após o Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães denunciar publicamente a ALCA como parte da estratégia de manutenção da hegemonia econômica e política dos Estados Unidos, no dia 26/03/2000, o Chanceler de FHC, Celso Lafer, exonerou-o da direção do IPRI. A ALCA foi descartada apenas no Governo Lula.
5. África? Onde Mesmo?
Em junho de 1998, após um jantar na casa de campo da presidência dos EUA, o intelectual-príncipe FHC mostrou-se impressionado com os conhecimentos da então primeira-dama americana Hillary Clinton e comentou com um diplomata: “Ela conhece o assunto. Fala de líderes africanos que eu não sei nem quem são” (VEJA, 17/06/98). O fato de o Presidente do Brasil conhecer menos líderes africanos que a primeira-dama americana não é um acaso: em suas viagens, FHC permaneceu 170 dias entre os Estados Unidos e a Europa e visitou apenas quatro países africanos, onde cumpriu agenda de míseros 13 dias. Ademais, durante seu governo, algumas embaixadas em países africanos foram fechadas. Em seus 8 anos de mandato, Lula visitou 29 países (alguns mais de uma vez), totalizando mais visitas ao Continente do que a somatória das visitas de todos os presidentes anteriores, além de dobrar o número de Embaixadas brasileiras na região (Estado de São Paulo, 08/07/10).
6. Do pelourinho para o tronco
Em 1993, ainda no Governo Itamar Franco, FHC foi responsável, primeiro como chanceler e depois como ministro da Fazenda, por renegociar a dívida externa brasileira, que naquele momento era de aproximadamente US$ 55 bilhões. Um fracasso: as negociações levaram a um agravamento da dependência brasileira em relação aos financiamentos externos. Segundo o Embaixador Rubens Ricupero, o Brasil trocou “de dívida, mas não de canga, passando do pelourinho para o tronco”, subordinando-se mais e mais às políticas de Washington e do FMI (Ricupero, Rubens – Folha de São Paulo, 05/10/2003). Em 2008, durante o Governo do PT, Brasil tornou-se, pela primeira vez, credor internacional.
7. Desvalorização do Real e, de novo, a Dívida Externa
Em 1998, apesar do consenso entre grande parte dos economista sobre a sobrevalorização do Real, FHC rechaçava a ideia de uma desvalorização da moeda, com o argumento de que tal medida”assustaria o mercado”. Na verdade, sua resistência vinha do receio de prejudicar sua reeleição, em 03/10/98. No dia 13/11 do mesmo ano, o FMI e os Estados Unidos – sempre do lado de FHC – concederam ao tucano uma ajuda de US$ 41,5 bilhões, novamente “para acalmar o mercado”. Esse dinheiro, nas palavras do economista Joseph Stiglitz, ex-diretor do Banco Mundial, foi para o bolso de financistas, que lucravam especulando com a moeda sobrevalorizada. Em cerca de um mês, o Brasil perdeu 2/3 de suas reservas internacionais. A dívida externa saltava de US$ 126 bilhões, em 1990, para US$ 236 bilhões, em 2000 – aumentando quase 100%.
8. Diplomacia “pé-no-chão”
Sintomaticamente, no dia 31/01/02, Celso Lafer, Ministro de Estado das Relações Exteriores do Brasil, sujeitou-se, apesar de toda a legislação internacional, a tirar os sapatos e ficar descalço, a fim de ser revistado por seguranças do aeroporto de Miami. Tirou o sapato novamente antes de tomar o avião para Washington e – pela terceira vez – ao embarcar para Nova York, desonrando mais uma vez seu cargo de ministro de Estado e o País ao qual servia (ou deveria estar servindo). O chanceler britânico, Jack Straw, que estava nos EUA no mesmo período, não se submeteu ao mesmo tratamento (Revista Época, 04/03/2002). Já no Governo do PT, Lula pode afirmar: “Quando inventaram a história de tirar o sapato eu disse para o Celso (Amorim): “ministro meu que tirar o sapato deixará de ser ministro. Se tiver que tirar o sapato, volte para o Brasil, porque não exigimos que ninguém tire o sapato aqui” (Discurso de Lula na Formatura dos Diplomatas do IRBr, 21/04/2010).
9. Guerra do Iraque, Bush e controle de armas
Em 2002, a permanência do embaixador brasileiro José Maurício Bustani no cargo de Diretor-Geral da Organização para a Proibição das Armas Química (OPAQ) representava um obstáculo aos preparativos para a guerra contra o Iraque – George W. Bush acusava o Iraque de possuir armas químicas, biológicas e nucleares de destruição em massa. Hoje, 2010, é consensual que essas armas nunca existiriam e que essa acusação não passou de um pretexto para se levar adiante a guerra. Na época, o Embaixador Bustani se recusou a isentar os EUA do regime de inspeção existente e empenhava-se, de igual modo, a convencer o Iraque a aceitar a vistoria internacional por parte de inspetores independentes.
Uma solução pacífica, como a proposta pelo Embaixador Bustani, não convinha a Bush: eliminaria o principal pretexto para guerra contra o Iraque. Em janeiro de 2002, o subsecretário do Departamento de Estado dos EUA, John Bolton, comunicou ao Embaixador do Brasil em Washington que os EUA estavam descontentes com a atuação de Bustani. Apesar do apoio de setores do Itamaraty a Bustani, após reunião com o secretário de Estado Collin Powel, no dia 31/01/2002, Celso Lafer prometeu que não resistiria à decisão do governo americano. Em entrevista, Lafer admitiu que não era “fora de propósito imaginar” que os EUA quisessem uma “pessoa mais leve nessa função” (Valor, 11/04/2002). O Embaixador Bustani, sem suporte de Lafer, foi destituído do cargo em 21/04/2002.
10. Diplomacia à la Galvão Bueno
O Mercosul foi esvaziado de política pela dupla FHC-Menem com a ajuda de Domingo Cavallo, o ministro argentino que adorava as áreas de livre comércio, como Serra. Em 1999, por exemplo, no marco das sérias dificuldades geradas em diferentes setores produtivos argentinos derivados da crise internacional de 1997-1998 e da desvalorização brasileira de janeiro de 1999, o Brasil reagiu com dureza frente a medidas de proteção do setor de Têxteis tomadas pela Argentina. Apesar de parceiro no Mercosul, o Brasil recorreu à OMC contra a Argentina, gerando um evidente mal-estar entre os dois principais países do bloco (Informe-MERCOSUL, 1999-2000). A falta de sensibilidade política do Governo Tucano é ainda hoje lembrada pelos argentinos. Como afirmou o tradicional jornal argentino Clarín, em matéria de 21/04/2010, Serra “Puede desde luego conquistar el desprestigio regional”. Não é pouca coisa.
* Marcos Rogério de Souza é mestre em direito pela UNESP, Professor de Direito Constitucional e Assessor Jurídico no Senado Federal (mrogeriodh@gmail.com).
** Ricardo Leito Ribeiro é mestrando em direito pela USP e Assessor Jurídico no Senado Federal (ricardoleiteribeiro@gmail.com).

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