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Por racismoambiental, 28/10/2010 11:35
Carlos Eduardo Mazzetto Silva* – Outubro/2010
Desde 1500, quando se começou a inventar o Brasil, os povos que tem apego à terra são expropriados dela, tratados como gente menor. Os primeiros foram os índios que tinham este espaço como seu habitat. Felizmente para a humanidade, alguns resistiram e conseguiram conquistar, recentemente, algum direito a viver em seu território. Mas, a expropriação, o genocídio e o espistemicídio foi de grande monta.
Mas, existe um ator social invisível no Brasil, meio parente dos indígenas pela herançado apego à terra. Seu nome sociológico e antropológico é campesinato. Já foi e é chamado de pequeno produtor/agricultor, trabalhador rural e mais recentemente vem sendo chamado de agricultor familiar. Em alguns casos, seus grupos recebem hoje o nome de comunidades tradicionais e, nesse caso, se referem a identidades específicas: quilombolas, seringueiros, caiçaras, pantaneiros, geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, beiradeiros, quebradeiras de coco… Seu destino para a sociedade moderna parece estar traçado: não existir, ser invisível, não ter direitos, habitar “espaços vazios”, dar lugar ao desenvolvimento e seus mega-projetos gulosos de territórios e recursos naturais (barragens, monoculturas, complexos industriais, minerações)… Assim como a natureza, essas comunidades são erradicadas para deixar o progresso seguir sua rota cega. Não é à toa, sua vida é conectada com a Mãe-natureza, é seu habitat e sua base de sobrevivência. Não são pouca gente, alguns estudiosos estimam essas comunidades tradicionais em 25 milhões de pessoas!!
Recentemente, conheci as comunidades “apanhadoras de flor”. Estão aqui, perto do centro de Minas Gerais (região de Diamantina, alto-Jequtinhonha), onde a história minerária fortemente se deu. São milhares de famílias que vivem na Serra do Espinhaço coletando sempre-vivas e uma infinidade de espécies de flor das campinas e carrascos, fazendo pequena sroças de subsistência, criando algum gado solto da serra e nos cerrados do sertão que a rodeiam, garimpando artesanalmente (a chamada faiscagem). Tem múltiplas habilidades e praticam a economia diversificada. Conhecem tudo da vida da Serra: bichos, caças, plantas, lapas, minérios, clima, solos … São os mestres da natureza do lugar. Algumas comunidades tem 300anos de história de vida na Serra. Entretanto, contraditoriamente, sua vida está sendo impedida por uma política que tem (ou diz ter) o objetivo de preservar a natureza!!! Descaminhos da modernidade e de um ambientalismo que reproduz o artificialismo da separação homem/natureza ou, se quisermos, sociedade/natureza. Essa separação, instituída pela modernidade ocidental, se reproduz na concepção dos “parques sem gente”. Querem instituir as chamadas Unidades de Conservação Ambiental de proteção integral em áreas onde ainda existe a biodiversidade característica dos diversos biomas e ecossistemas. Esquecem, ignoram ou não querem ver que essa biodiversidade remanesce ali porque há um modo de vida (sociodiversidade) que se adaptou, convive, maneja e até ritualiza esses ambientes que os preservacionistas da cidade querem proteger.
Essas comunidades e seus ecossistemas formam um só quadro, uma só paisagem: humana e natural. Os biólogos preservacionistas ao sobrevoarem essas regiões e vê-las na distância das imagens de satélite, crêem que são paisagens meramente “naturais”, não descem à escala da vida humana, ignoram-na. Não percebem que o que remanesce ali é uma sociobiodiversidade oriunda da co-evolução social e natural. Não há nesses lugares a dicotomia entre natureza e cultura – a natureza é culturalmente apropriada e transformada/conservada; a cultura é produto do processo de adaptação e convivência com a mãe-natureza. A vida se articula aos fluxos e ciclos ecológicos.
A implantação dessas Unidades de Conservação de proteção integral (na região, a maior é o Parque Nacional das Sempre Vivas, mas existem ainda o Parque Estadual do Rio Preto e a Estação Ecológica do Pico do Itambé) a partir desses sobrevôos (sem um estudo local aprofundado) se tornam uma tragédia humana, um atentado sócio-cultural, uma afronta aos direitos humanos, um tiro exterminador no que resta de interação sustentável entre sociedade e natureza. O conflito se instala, as comunidades têm que resistir, afinal esse é o seu lugar, seu território, sua vida. Contraditoriamente, o objetivo da conservação da natureza fica ameaçado, pois aqueles que são os mais aptos e dispostos a defendê-la no seu dia a dia, se transformam emvítimas e inimigos das Unidades de Conservação que as oprimem e expropriam. Não podem mais coletar flores, não podem mais criar gado, não podem mais usar o fogo como elemento de manejo em hipótese nenhuma, não podem coletar um fruto da Serra para se alimentar (tem que deixar para os outros animais que as UCs querem preservar), não podem circular nos caminhos que sempre circularam. Não podem nem mais morar onde moraram por mais de século, pois seu lugar virou parque – um invasor que virou suas vidas de cabeça para baixo. Para onde vão? Já sabemos o enredo, as periferias e favelas urbanas estão aí para nos esclarecer sobre esse repetitivo processo histórico: uma outra paisagem é claro, não mais fruto da co-evolução entre comunidade e natureza, mas da perversidade moderna de sua separação, da eterna expropriação camponesa, os perdedores de sempre. Depois, os governos e seus órgãos organizam seminários sobre o desenvolvimento sustentável…
* Eng. Agrônomo, doutor em Geografia (Ordenamento Territorial e Ambiental/UFF), professor adjunto da Faculdade de Educação da UFMG, autor de “O Cerrado em Disputa: apropriação global e resistências locais” (Ed. CONFEA, 2009), entre outros trabalhos.
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