terça-feira, 13 de setembro de 2011

TERRITÓRIOS NEGROS DO MARANHÃO: O CASO DE ALCÂNTARA

Por Luis Antonio Câmara Pedrosa

Desde Frechal, com desfecho vitorioso em 1992, a luta dos quilombos compõe oficialmente a realidade fundiária do Estado do Maranhão. A presença de um segmento peculiar no campo, com características distintas da sociedade nacional não deveria surpreender planejadores da burocracia estatal e nem tampouco os operadores do direito.

De fato, quilombolas, ribeirinhos, quebradeiras de côco, antigos posseiros, e outros grupos diversos, são segmentos representativos de uma estratégia de apropriação dos recursos naturais, para além dos mecanismos oficiais e excludentes de acesso à propriedade fundiária.

No Brasil, por razões históricas, convencionou-se tratativas para esses grupos étnicos, distintas da reforma agrária. Enquanto seus movimentos representativos tentam afirmar a especificidade dos direitos, o Estado brasileiro cria entraves burocráticos maiores do que os já existentes para reforma agrária convencional.

Ocorre que, a exemplos das demandas por terra, apresentadas por outros grupos sociais campesinos, os quilombolas sempre pressionaram os órgãos fundiários, para a resolução dos seus problemas, envolvendo a garantia do território.

No Maranhão, os quilombolas estão presentes em quase todas as lutas históricas por terra. Desde as lutas pela liberação dos campos naturais dos búfalos, na década de setenta, passando pela resistência aos processos de expulsão dos criadores de gado, até chegar às modernas ofensivas do agronegócio.

Portanto, o processo de reconhecimento do direito ao território quilombola é posterior a um longo período de resistência, que remonta aos primórdios do processo de institucionalização do sistema de imobilização da mão-de-obra escrava.

A radicalidade do processo de resistência na terra refere-se a uma identidade, assentada sobre um determinado espaço físico e geográfico, com profundos significados no campo da cultura, da religiosidade e da afetividade. Não raras vezes esse espaço é disputado por agentes externos, porque conheceu repentina valorização imobiliária, em função da conjuntura atual de mercado que invade o campo ou mesmo foi adotado como local privilegiado para a implantação de um grande projeto econômico.

Do ponto de vista da justiça social, estranha-se porque titulares de posses tão antigas, com origens no período escravista, tenham tantas dificuldades para obter o reconhecimento de seus direitos. A explicação reside na extraordinária concentração fundiária reinante no país, acentuada pelo avanço do agronegócio no campo. Com efeito, de 1985 para 2006, o índice de GINI brasileiro oscilou em apenas 0,015, segundo o IBGE. No Maranhão, a oscilação ficou em 0,059.

Se levarmos em consideração os dados da territorialização da agricultura familiar, teremos uma ligeira amostra desse padrão de concentração fundiária no Estado do Maranhão. Segundo o IBGE (2006), o Estado dispõe de 262.089 estabelecimentos da agricultura familiar, numa área de 4.519.305 hectares. A agricultura patronal dispõe de 24.948 estabelecimentos para uma área de 8.472.143 hectares.

Em grande parte, a territorialização quilombola não é dinâmica, não compreendendo um determinado espaço que precisaria ser dominado. O território quilombola é posse, anciã. O embate que se trava a partir dele reside na função estatal reguladora da posse, que a transforma em propriedade, no palco da resistência dos grandes interesses econômicos em jogo.

Alcântara, por exemplo, é um dos casos mais emblemáticos, onde a tradição se confronta com a modernidade. O projeto aeroespacial brasileiro, aqui, idealizado, foi moldado por uma visão de desenvolvimento onde as comunidades tradicionais são vistas como empecilho ao progresso tecnológico.

O local onde foi implantado o Centro de Lançamento foi imaginado como vazio demográfico – delírio típico de planejadores conservadores, para quem os mais pobres são invisíveis. Do início da década de oitenta até os dias atuais, os quilombolas de Alcântara não sabem se realmente ficarão no território.

O cronograma desse desespero pode ser assim descrito:

12 de Setembro de 1980 - publicado decreto estadual de desapropriação, assinado pelo então governador João Castelo, que garantiu ao Ministério da Aeronáutica uma área de cinqüenta e dois mil hectares para a instalação da Base Espacial.

1º de Março de 1983 - o Decreto Federal nº 88.136 criou o Centro de Lançamento de Alcântara (CLA).

18 de Abril de 1986 - o então Presidente José Sarney editou o decreto n.º 92.571/86, reduzindo o módulo rural de Alcântara de 35 ha para 15 ha.

1986/1987 - operacionalização da I e II Fase dos deslocamentos, transferindo quinhentas e vinte pessoas para cinco agrovilas e, depois, oitocentos e trinta pessoas para duas agrovilas.

8 de Agosto de 1991 - A União Federal publica decretos de desapropriação do território étnico, substituindo o Estado do Maranhão, ampliando a área desapropriada em mais dez mil hectares.

1996 - o CLA e o Ministério da Aeronáutica assinaram um acordo com a INFRAERO, que passou a ser responsável pela exploração comercial e pelo desenvolvimento das atividades gerenciais do aeroporto e do Centro de Lançamentos.

11,12,13 e 14 de maio de 1999 – realizado o Seminário “Alcântara: A Base Espacial e os impasses sociais”, organizado pela FETAEMA, CONTAG, STTR, com o apoio da Prefeitura Municipal de Alcântara.

1999 - Ação Civil Pública no 1999.37.00.007382-0, distribuída para a 3a Vara Federal de São Luis, Maranhão, questionando o licenciamento ambiental do CLA.

18 de abril de 2000 - foi firmado o Acordo entre o governo da República Federativa do Brasil e o governo dos Estados Unidos da América sobre salvaguardas tecnológicas.

2000 - a Fundação Palmares reconheceu o território étnico de Alcântara, integrado por mais de 150 comunidades, onde residem e trabalham cerca de 17 mil pessoas.

28 de agosto de 2001 – comunidades Samacanaua, Iririzal, Ladeira, Só Assim, Santa Maria, Canelatiua, Itapera e Mamuninha, Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, Centro de Justiça Global, Centro de Cultura Negra do Maranhão, Associação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas do Maranhão (ACONERUQ), a Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Maranhão (FETAEMA) e a Global Exchange – apresentaram petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos visando à reparação dos direitos violados.

23 a 26 de abril de 2003 – visita da Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada à Alcântara.

Agosto de 2003 – O MPF propõe ACP no 2003.7826-3, tramitando também na 5a Vara Federal de São Luis, Maranhão, contra a União Federal, para obrigá-la a titular o território étnico de Alcântara.

5 e 6 de junho de 2004 – visita a Alcântara de Miloon Kothari, relator especial da Organização das Nações Unidas (ONU) para a Moradia.

27 de agosto de 2004 - Instituição por decreto do Grupo Executivo Interministerial para articular, viabilizar e acompanhar as ações necessárias ao desenvolvimento sustentável do Município de Alcântara.

9 de novembro de 2004 - o presidente Luis Inácio Lula da Silva assinou o Decreto nº 5.266/2004, que promulga acordo de salvaguardas tecnológicas entre o Brasil e a Ucrânia.

7 de dezembro de 2.005 – publicado Termo de Cooperação Técnica, onde consta o compromisso dos diversos ministérios em executar nada menos do que 66 ações para o Município de Alcântara, envolvendo 27 milhões de reais.

26 de setembro de 2006 - Acordo Judicial firmado no qual o Juiz Dr. Carlos Madeira, da 5ª Vara Federal, determina que o INCRA titule o território quilombola de acordo com o laudo antropológico, nos autos do processo nº 2003.37.00.008868-2 (Ação Civil Pública), no prazo de 180 dias.

18 de Fevereiro de 2008 – A comunidade de Mamuna bloqueia a estrada de acesso ao povoado, para impedir os trabalhos da ATECH, empresa contratada da ACS.

15 de maio de 2008 – o MPF propõe Ação Cautelar Inominada, no âmbito da Ação Civil Pública n.º 2003.37.00.008868-2, contra a Agência Espacial Brasileira, Alcântara Cyclone Space e Fundação Aplicações de Tecnologias Críticas – ATECH, para impedir a intrusão do território quilombola.

26.09.2008 – Novo Acordo judicial homologado na 5ª Vara da Seção Judiciária Federal de São Luís, nos autos do processo n.º 2003.37.00.008868-2, onde ATECH, representantes de vários órgãos do governo federal se comprometem a respeitar os limites do território quilombola, conforme o RTID, publicado pelo governo federal.

04 de Novembro de 2008 – o INCRA publica o RTID do território étnico de Alcântara, atribuindo-o 78 mil hectares ao quilombolas, dele excluindo a área efetivamente ocupada pelo CLA (8.713 hectares) e 543 hectares para a instalação da área institucional da Agência Espacial Brasileira.

02 de Dezembro de 2008 – O Ministro de Defesa solicita a instauração da Câmara de Conciliação, na AGU, contestando o RTID.

Apesar das decisões judiciais, o procedimento no INCRA (n.° 54230.002401/2006-13), que visa a titulação do território étnico de Alcântara encontra-se suspenso, em razão da instauração da câmara de conciliação.

Em nosso entendimento, a decisão que instaura a Câmara de Conciliação não tem força para desconstituir as decisões judiciais que obrigam a conclusão do procedimento administrativo de titulação, junto ao INCRA.

Em suma, o caso de Alcântara ressalta o conflito existente entre quilombolas e interesses nacionais relacionados ao desenvolvimento tecnológico. No caso em apreço, patente está que a área pretendida pelo Ministério da Defesa terá como destino a implantação de sítios para comercialização, no âmbito de interesses privados.

Nesse contexto, impõe-se considerar o território étnico como direito fundamental, relacionando-o com os arts. 215 e 216 da Constituição Federal, bem como com a Convenção 169, da OIT. Esta última incorporou-se ao ordenamento jurídico brasileiro na condição de norma supralegal – porque é um tratado de direitos humanos.

Por último, convém mencionar o decreto 6.040/2007, expresso ao assegurar os direitos dos povos e das comunidades tradicionais afetadas direta ou indiretamente por projetos, obras e empreendimentos (art.3º, IV).

Pela luta dos quilombolas de Alcântara teremos um indicador acerca da força da institucionalidade que protege os direitos humanos no país.

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