domingo, 4 de setembro de 2011

Antropólogo defende menos prisão e divisão de responsabilidades


http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/970250-antropologo-defende-menos-prisao-e-divisao-de-responsabilidades.shtml


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RODRIGO RÖTZSCH

DO RIO

Desnaturalizar a prisão como punição natural para qualquer tipo de crime e corresponsabilizar governos por delitos que de alguma maneira são estimulados pelo próprio Estado _como homicídios cometidos por policiais no exercício de sua atividade.

São essas algumas das principais ideias defendidas pelo antropólogo Luiz Eduardo Soares em "Justiça - Pensando Alto sobre Violência, Crime e Castigo", livro que está lançando pela editora Nova Fronteira.

Ex-secretário de Segurança Pública nacional e do Rio, Soares, 57, elege os adolescentes e jovens como público prioritário do seu novo livro.

"A cabeça não está feita ainda, e é muito interessante que eles possam abordar esse tema complexo com os olhos da curiosidade e não os olhos do preconceito. A sociedade acha que punição é prisão. Esse automatismo começa a se combinar com preconceito e vai gerando um senso comum refratário à reflexão."

Coautor de "Elite da Tropa", que inspirou o filme "Tropa de Elite", Soares conversou com a Folha por telefone.

Folha - O sr. defende no livro uma Justiça mais restaurativa do que retribuitiva. Como funcionaria na prática?

Luiz Eduardo Soares - O que sustenta os argumentos do livro é sugerir que a Justiça olhe mais para a frente do que para trás, mais para o futuro do que para o passado, e se torne mais corresponsável pela construção de um futuro melhor do que instrumento de vingança inócua e improdutiva.

Como isso funciona na prática? Tomando a polícia como referência, no caso do Rio de Janeiro nós estamos diante de recordes mundiais de brutalidade policial letal. De 2003 a 2010, 8.708 pessoas foram mortas por ações policiais. É um número incomparável. Como o Ministério Público trata disso? Como trata da criminalidade em geral, identificando responsabilidades individuais, punindo, acusando e denunciando os policiais. Os poucos que são identificados são submetidos ao procedimento judicial e alguns são condenados.

Muitos desses policiais que matam são egressos das mesmas áreas sociais das suas vítimas, são rapazes pobres, de baixa escolaridade, que tiveram poucas oportunidades. Chegaram à polícia com a disposição séria de se tornar bons profissionais, mas foram treinados e preparados para enfrentar uma guerra, assimilaram conceitos sobre a sua função institucional que nada têm a ver com os mandamentos constitucionais, mas com uma certa cultura corporativa que se congelou e tem se reproduzido.

Eles assimilam aquilo, arriscam suas vidas e se sentem heróis. Praticam o crime sem ter a noção clara de que estão praticando um crime. Há um padrão: mais de mil ocorrências quase iguais por ano. É evidente que a instituição é responsável por algum tipo de conduta que está gerando esse resultado.

O que seria mais conveniente para a sociedade? Continuar caçando desvios de conduta individuais ou analisar o quadro mais amplo e convocar os responsáveis pelas instituições envolvidas --além do indivíduo, não vamos ser paternalistas e dizer que ele não tem nenhuma responsabilidade. Mas essa responsabilidade tem que ser compartilhada pela instituição que o apoiou nesse tipo de prática, com o governo que está há anos tolerando e estimulando em certo sentido esse tipo de coisa.

O juiz chama essas instituições, através dos seus responsáveis, e diz: vamos distribuir as responsabilidades, essa pena não vai ficar só com esse indivíduo, vai se pagar dessa e dessa maneira, e através da celebração de um termo de ajustamento de conduta em que o governo, a secretaria e a polícia assumem a responsabilidade de adotar procedimentos que possam reduzir esse tipo de prática.

Como esse policial poderia ser mais útil? Ficando recluso e privado de liberdade ou trabalhando na transformação desse quadro dentro da polícia, sem prejuízo de pagar sua pena de forma tradicional de alguma medida? Isso dá à Justiça uma responsabilidade maior.

O sr. acha que a punição apenas por prisão é um modelo ultrapassado?

Nós naturalizamos a prisão, como se não houvesse alternativas a ela. Nós desqualificamos todas as penas alternativas, porque seriam pouco severas e não prestam para a retribuição, que seria o papel da pena.

Essa maneira de pensar é muito ruim. A privação da liberdade não é a única maneira de lidar com a responsabilização. Ela não transforma ninguém positivamente.

No passado havia torturas públicas, penas de morte espetaculares. As punições corporais cederam espaço à privação de liberdade. Isso foi um avanço, mas nós não devemos nos satisfazer com esse avanço como se tivéssemos chegado ao fim da história no mundo da Justiça.

Isso é apenas uma etapa, muito problemática, não é uma solução inteligente, civilizada nem produtiva. É uma solução muito cara para transformar as pessoas em pessoas piores.

O que o sr. tem a dizer sobre dados como os de São Paulo, onde o número de prisões aumentou exponencialmente ao mesmo tempo em que caíram os índices de criminalidade?

O fato de nós termos ao mesmo tempo dois fenômenos não os torna mutuamente relacionados. Essa é uma associação muito atraente aos ideólogos do encarceramento. A correlação que se verifica é uma política de repressão às armas e aperfeiçoamento da gestão policial, um elenco de variáveis.

Nós hoje somos campeões mundiais em aceleração de encarceramento. Passamos de 160 mil presos nos anos 90 para 500 mil hoje. A prisão pode ser eficiente quando ela tira de circulação criminosos violentos.Mas no Brasil nós temos 8% de esclarecimento dos homicídios dolosos e só 2% de condenados. É uma impunidade de 98%.

Entretanto, o encarceramento cresce velozmente. Quem está sendo preso? Os que se envolvem com o comércio de drogas ilícitas sem recursos à violência ou a armas. Um grupo não violento. O preso violento tem de ir para a cadeia? Sim. Mas para todos os outros nós podemos conceber formas muito mais inteligentes de punição. Mais baratas, inclusive.

O sr. diz no livro que falta uma porta de saída concreta para aqueles que se envolvem no tráfico, já que a prisão não seria uma alternativa. Como oferecer essa porta de saída?

Nem todo traficante é o traficante armado, violento, perigoso que nós geralmente associamos a este nome. Há milhares de jovens que fazem esse comércio ilegal sem envolvimento com armas. E quando o nosso procedimento em relação a eles é trancafiá-los, considerá-los responsáveis por um crime hediondo e os jogarmos nesse inferno que são as nossas prisões, nós estamos quase impondo a eles uma carreira criminal.

Se você, ao invés disso, abre portas de saída e oferece alternativas, se nós competirmos com esse grupo de criminosos que oferece oportunidades oferecendo oportunidades positivas, construtivas, nós teremos chance de recrutar muitos desses jovens que de outro modo poderiam ir numa outra direção.

O sr. é crítico da cultura proibicionista e seus efeitos, como esse boom nas prisões. Como vê uma voz como a do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso se somando à sua, ainda que anos depois de sair do governo?

Nunca é tarde demais. A gente tem que saudar que isso tenha acontecido. Isso é corajoso da parte dele, importante.

Traficante no Brasil passou a ser nome da barbárie, da monstruosidade. Não é assim. Há pessoas que traficam uísque importado, DVDs piratas, roupas. Misturar aquele que é capaz de usar a arma de fogo e matar com aquele que está praticando um crime de outra natureza é desastroso.

Estamos colocando no mesmo universo realidades absolutamente distintas. Precisamos olhar o que nós estamos fazendo, porque o resultado prático disso tem sido a criminalização da pobreza. A privação de liberdade não é a resposta adequada da sociedade para esse tipo de prática.

No livro, o sr. critica a desigualdade no acesso à Justiça. Como abordar esse problema?

Essa é uma das manifestações mais dramáticas das desigualdades no Brasil. É uma forma de desigualdade muito cruel, que começa na rua, na abordagem policial.

Quando a polícia age distintamente de acordo com a cor da pele, a classe social e o território do abordado, está dando um recado muito claro: o Estado que nós representamos trata desigualmente os cidadãos. Isso vai depois se confirmar nas outras esferas da Justiça.

O resultado disso é a própria população prisional. Não são só os pobres que praticam crimes, mas só eles estão presos. Para mudar esse quadro, nós temos de trabalhar cada um desses desafios. As polícias podem agir de outra maneira? Claro que podem.

No início do livro, o sr. frisa que gostaria de ser entendido pelos adolescentes e jovens. Por que focar esse público?

Porque a cabeça não está feita ainda, eles estão querendo conhecer o mundo, começando a travar contato com as realidades, e é muito interessante que eles possam usar toda essa criatividade para abordar esse tema complexo com os olhos da curiosidade e não os olhos do preconceito.

A sociedade acha que punição é prisão. Esse automatismo começa a se combinar com preconceito e vai gerando um senso comum refratário à reflexão. A eles [os jovens] o futuro, eles têm a responsabilidade de suceder a nossa geração.

O sr. dedica o livro à juíza Patricia Acioli. Como avalia o crime contra ela, e o que fazer para evitar que se torne uma rotina?

A juíza Patricia Acioli era dos pouquíssimos magistrados no Rio de Janeiro dedicados a enfrentar o crime instalado no Estado, o crime organizado.

Ela era muito corajosa no enfrentamento dos autos de resistência, as máfias das vans, os milicianos. Ela não aceitava fingir que nada estava acontecendo. Ela pagou no final um preço altíssimo por essa atitude.

O assassinato dela foi muito duro, e a resposta que se vai dar a isso vai apontar para as novas possibilidades do desafio do crime organizado ao Estado do Rio de Janeiro.

O maior problema nessa área são as polícias, porque como existe uma atuação muito problemática de setores mais numerosos qualquer enfrentamento ao crime fica comprometido, porque a própria máquina do Estado está marcada por vínculos promíscuos com o crime.

Cerca de 20% dos homicídios dolosos cometidos no Rio são os autos de resistência. Além da brutalidade, há o domínio territorial, as máfias de transportes.

Se nós não passarmos a limpo profundamente essas instituições, e isso não pode se dar só com a caça às bruxas individuais, se isso não for prioridade, todas as boas iniciativas, como as UPPs, tem um futuro incerto, com muito poucas chances de preservação.

Os gargalos das UPPs começam a aparecer, como mostrou o adiamento da saída do Exército do Complexo do Alemão. Como lidar com isso?

A ideia das UPPs é excelente, porque ela decreta o fim das incursões bélicas, de uma política de enfrentamento que só levava à reiteração do que já se conhecia, mortes de todos os lados, irresponsáveis e inconsequentes.

Em vez disso, há a provisão de um serviço público, o policiamento 24h, que sempre esteve disponível nas áreas mais nobres da cidade. Apenas isso.

Se, além disso, esse policiamento puder ser qualificado, ter aspectos distintos, o policiamento comunitário, mais inteligente, voltado à prevenção, tanto melhor. É claro que, com isso, é possível que os outros serviços públicos --educação, saúde-- que não eram garantidos sob a justificativa de que não havia segurança, possam ser oferecidos.

O projeto tem dois desafios: ele precisa ser universal e tem de ser sustentável. Tem que se estender no espaço e no tempo, e para isso precisa se tornar uma política pública, e não apenas um projeto. E para isso não vai ser possível ficar contratando e treinando policiais especificamente para essa iniciativa.

A Polícia Militar é responsável pelo policiamento ostensivo, então tem que dar continuidade a esse programa e estendê-lo. Ela pode fazer isso? Não. E aí nós chegamos ao grande gargalo. A UPP não pode ter futuro se não se transformar numa política pública, e não pode se transformar numa política pública com essa polícia.

Porque a nossa polícia está atravessada por segmentos muitos numerosos vinculados ao crime de todas as formas. Se nós entregarmos à polícia, nós vamos condenar ao fracasso esse projeto. Mas nós precisamos entregar à polícia, porque senão não vai haver mais do que um pequeno projeto. Nós temos é que fazer com que toda a polícia seja a polícia de elite, a polícia que funciona.
O grande desafio é refundar a polícia do Rio de Janeiro, para que o programa saia do seu casulo.

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