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Condenação do célebre juiz reabre na Espanha o que nunca foi de fato investigado: os crimes da era do ‘generalíssimo’
11 de fevereiro de 2012 | 17h 58
Jamil Chade, de O Estado de S. Paulo
Dor que fica. Manifestante pró-Garzón carrega fotos de parentes mortos na Guerra Civil espanhola
GENEBRA - Nesta semana, a Corte Suprema da Espanha condenou o juiz Baltasar Garzón e desestruturou sua carreira. O motivo oficial eram as escutas que o juiz ordenou de forma ilegal em um caso de corrupção. Mas instituições de defesa dos direitos humanos e personalidades de todo o mundo insistem em que a razão da condenação seja outra: um castigo à tentativa de Garzón de investigar os crimes do regime de Franco, assunto tabu na Espanha. A Anistia Internacional, por exemplo, ironizou. "Finalmente, depois de décadas, alguém é condenado pelos crimes do franquismo", dizia a nota emitida pela entidade. "O problema é que a pessoa condenada era o juiz que tentava investigar esses mesmos crimes."
Sem jamais ter tido um julgamento dos responsáveis pelos crimes nem mesmo um pedido de desculpas por parte dos herdeiros de Franco, a sociedade espanhola ainda não conseguiu superar o trauma da Guerra Civil dos anos 30 e os anos da ditadura. Nesta semana, esteve cara a cara com sua história não resolvida em uma comissão da Verdade improvisada, mas não menos dramática.
Para tentar se defender da acusação de que violou as leis de anistia do país, a defesa de Garzón levou ao tribunal as famílias das vítimas para contar suas histórias às câmeras de todo o mundo. Garzón não mais poderá investigar essas alegações e os criminosos talvez nunca sejam responsabilizados. Mas o juiz conseguiu o que aparentemente a lei o proibia de fazer: obrigar que a Justiça escutasse essas testemunhas e levar o sofrimento de vítimas para dentro da casa de cada espanhol, em horário nobre.
Cópias dos depoimentos mostram que não foram os sobreviventes da tortura franquista nem seus filhos que tomaram a iniciativa de se expor. Foram os netos, nascidos já quando Franco estava morto. Eles coletaram informações por meses e chegaram à constatação de que o regime havia deixado como herança o desaparecimento de 110 mil pessoas, jogadas em fossas comuns por todo o território espanhol.
Josefina Musulén Jiménez foi uma das testemunhas. Contou que, no dia 13 de agosto de 1936, um falangista entrou em sua casa e levou seus avós, ambos republicanos. A avó estava grávida na época, o que poderia significar que seria poupada. Mas, ao procurá-la num quartel da Falange, um de seus irmãos saiu arrasado. Disseram-lhe que o ventre da irmã havia sido aberto e ela estava morta.
Quarenta anos depois, já com Franco sepultado, Josefina teria encontrado amigos do avô. Eles revelaram que, na verdade, sua avó havia sido levada a um hospital e dado à luz um bebê que foi tirado dela. "Essa criança sumiu para sempre", disse. "Por 33 anos buscamos essa menina, a irmã de meu pai."
Não resta dúvida de que os crimes foram cometidos de ambos os lados durante a Guerra Civil, mas as ligas de defesa dos direitos humanos lembram que, enquanto os órfãos dos republicanos foram abandonados pelo Estado, os filhos das vítimas do campo franquista tiveram amplo apoio do governo com a vitória de Franco. Por décadas receberam uma espécie de salário como reconhecimento pelo heroísmo dos pais. Tiveram facilidades para estudar e ainda ganharam apartamentos que pertenceram aos "vermelhos", os comunistas.
De uma família "vermelha", Maria Antonia Oliver Paris estava no julgamento de Garzón. "Minha mãe levou comida na prisão a meu avô e meu tio, irmão dele, durante seis meses", relatou. "Um dia, na primavera de 1937, disseram que eles haviam sido liberados, mas todos sabem que foram levados de mãos atadas a uma força armada da Falange." Ela continua: "Minha avó e minha mãe nunca os viram mortos. Ouviram que meu avô era um covarde que havia fugido com outra mulher para Barcelona ou Menorca. Meu avô morreu e quero que minha mãe, com 87 anos, possa fechar as feridas com a verdade e a justiça. Um delito como esse não prescreve, a dor é permanente."
Olga Alcega também é da geração de netos de desaparecidos da Guerra Civil. "Não quero vingança, mas tenho o direito de saber quem matou e por quê", declarou em relação ao assassinato de seu avô em setembro de 1936. Carteiro, ele teria sido sequestrado pela Guarda Civil. Depois de torturado, foi levado a um cemitério da cidade de Magallón, onde recebeu uma bala na cabeça. Seu corpo seria identificado apenas em março de 2011. "Foram 75 anos de esquecimento. Nesse período, nem minha avó foi viúva nem meu pai foi órfão", disse.
Alcega foi uma das que mais utilizaram o cenário da Corte Suprema para acusar o governo: "Nossos familiares estão jogados em campos como cães. A sociedade e a administração decidiram olhar para o outro lado cada vez que o tema aparecia. Para a Justiça, isso nunca foi um tema". Em Navarra, de onde vem, nenhum juiz jamais aceitou abrir uma investigação diante do que parentes apontam como mais de 3,4 mil desaparecidos apenas nos anos da Guerra Civil.
Diversas entidades também acusam a Justiça espanhola de se recusar a escutar as vítimas. Para o presidente da Associação para a Recuperação da Memória Histórica da Catalunha, Manuel Perona, "nenhum juiz jamais quis ouvir as denúncias das famílias de 1,9 mil desaparecidos na região".
Oficialmente, o argumento é sempre o mesmo. A lei de anistia, aprovada em 1977, impede qualquer ação. De fato, essa foi a acusação que as entidades ultradireitistas Manos Limpias e Associação Liberdade e Identidade apresentaram ao Supremo espanhol contra Garzón, reivindicando outros 20 anos de suspensão do juiz. Mas nem sequer o promotor do Estado espanhol acatou a denúncia das entidades, considerando que Garzón não cometera delito algum nesse sentido. Tanto a ONU como tribunais em diversos países deixaram claro que, para crimes contra a humanidade, não há anistia que se sobreponha, porém Garzón teve o cuidado extra de abrir investigações contra líderes do regime de Franco que já estivessem mortos, inclusive o ditador, para deixar claro que não se tratava de uma caça às bruxas.
Do lado daqueles que tímida ou explicitamente o atacam, outro argumento levantado para impedir a investigação é o fato de que o juiz não abriu um caso sequer contra os republicanos pelo assassinato de civis aliados à Falange. Durante a audiência, Garzón deixou claro que nunca considerou que esses atos deveriam passar impunes.
Fraturada. O comportamento da Justiça reflete a divisão que o tema causa na Espanha. Cerca de 88% dos eleitores do Partido Socialista consideram que crimes da ditadura devem ser investigados. Entre os eleitores do Partido Popular, de direita e no poder, 50% dos eleitores são contra a abertura de processos.
Nessa semana, aliás, a cúpula do PP foi uma das poucas a não sair em defesa de Garzón ou lamentar a condenação. Apenas insistiu em que as decisões do Judiciário não se discutem e que devem ser plenamente respeitadas. Para as vítimas do regime, essas declarações eram um sorriso cínico de um grupo ávido por ver o fim daquele que havia investigado a corrupção no partido e que se aventurou no terreno proibido de escarafunchar a história política do país.
"Uma sociedade, para olhar para seu futuro, precisa resolver seu passado", insiste a Alta Comissária de Direitos Humanos da ONU, Navi Pillay. Reed Brody, da entidade Human Rights Watch, está convencido de que Garzón foi alvo de uma represália. "Os inimigos dele atingiram seu objetivo", declarou, chegando a colocar em questão a maturidade democrática da Espanha. "Governantes antidemocráticos não costumam perder a oportunidade de aplicar sanções penais para silenciar juízes cujo trabalho se opõe aos seus interesses", disse. "Hoje, estão em festa os narcotraficantes, os terroristas e a extrema-direita", disse Javier Álvarez, catedrático de Direito Penal da Universidade Carlos III de Madri.
Coube à filha de Garzón, Maria, escancarar a preocupação com o destino democrático da Espanha em uma carta aberta aos juízes da Corte enviada no dia da condenação do pai. "Sobretudo, desejo que este golpe, que vocês planejaram há vários anos, não se volte contra a nossa sociedade, pelas graves consequências que a jurisprudência semeada pode ter", escreveu. Maria também alerta que, pelo menos para um grupo da sociedade, a decisão dessa semana não vai fazê-los abandonar suas convicções. "A todos vocês (juízes) digo que jamais nos farão abaixar a cabeça, que nunca derramaremos uma só lágrima por sua culpa. Não daremos a vocês esse gosto", declarou.
Baltasar Garzón anunciou na sexta-feira que vai recorrer da decisão nos tribunais europeus, ciente de que fora da Espanha a resistência em olhar para as entranhas do franquismo é mínima. Mas já afirmou que pensa em deixar seu país se de fato nunca mais for autorizado a exercer sua profissão. Segundo seus advogados, ele está disposto a manter o debate sobre a ditadura, ainda que de outra forma: transformando-se no último exilado de Francisco Franco.
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