terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Entrevista com Videla, uma obscenidade

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DEBATE ABERTO


O susto com a matéria da revista espanhola com o genocida Videla se deu porque na Argentina há muito que os próprios familiares de militares deixaram de fazer as reuniões públicas para tentar afirmar a ditadura. Há muito que mesmo as mídias que tiveram ligação com líderes do golpe militar não expressam abertamente ou tentam disfarçar sua opinião.

Maurício Colares

Já não estamos no drama da alienação, mas no êxtase comunicacional. E este êxtase sim é obsceno. (Jean Baudrillard)

A Argentina, na América do Sul, e seria injusto não dizer que em todo o mundo, é um dos países que mais tem contribuído na última década para a consolidação dos avanços democráticos no que diz respeito aos direitos humanos, e isso porque é um dos poucos países que levou a sério uma investigação, uma demonstração e, principalmente, por colocar sob juízo os crimes perpetrados na última ditadura (1976 – 1983) no País.

A nação vizinha vê de longe os retrocessos que estão ocorrendo no Chile de Piñera quanto ao aclaramento dos fatos escabrosos ocorridos na ditadura de Pinochet e serve de paradigma para entidades de direitos humanos para países como o Brasil, que ainda não conseguiu abrir os arquivos da ditadura e que vai encaminhando aos poucos via Secretaria dos Direitos Humanos (SEDH) uma agenda nessa direção.

Sempre na dianteira, foi prorrogada ontem (17) a detenção do genocida Jorge Rafael Videla em sela comum, onde está desde 2008, pelos crimes perpetrados no Plano Condor. Mas essa notícia quase nem foi divulgada pela mídia e foi pouco discutida pela população, principalmente porque ainda estava sob o impacto que causou uma entrevista que o ditador concedeu na quinta feira (15) à revista espanhola Cambio 16, que dividiu as opiniões dos argentinos entre aqueles que veem nas palavras do ditador uma espécie de estudo psiquiátrico e aqueles que veem a entrevista como uma terrível concessão a um genocida.

Das obviedades transparentes da ditadura

Seguindo a linha de pensamento do filósofo francês Jean Baudrillard (1929 – 2007), para quem “quando tudo é visível já nada mais o é”, uma entrevista que um genocida concede é na verdade uma entrevista concedida a ele para preencher, numa velocidade massacrante, o mundo com suas amenidades escabrosas. Nada de novo na manipulação norte-americana (uma vez que os Estados Unidos consubstanciaram em todos os sentidos as últimas ditaduras na América Latina) que o ditador continua fazendo do termo “terrorista” e sua abrangência a outros como “subversivo”, “anarquista”, “revolucionário”, “marxista”, “comunista”, “socialista”, “libertário”, “montonero”, “esquerdista”, entre outros, todos misturados sem critério nenhum a não ser caracterizar tudo que se colocava contrário e/ou diferente do Estado autoritário-despótico, “sem métodos e sem regras” (Deleuze e Guattari), que se instalou nesse continente nas décadas de 60 e 70 do século passado.

Esperar o que de Videla? Um arrependimento? Um pedido de perdão? Quando ele afirma que houve um apoio da sociedade civil, não traz nada de novo à caracterização que várias entidades estão fazendo de que a ditadura não foi meramente militar, mas cívico-militar. É sabido até dos minerais, como diria o jornalista ítalo-brasileiro Mino Carta, que, não na ante-sala, mas na mesma sala de Videla estavam Martínez de Hoz e Ernestina Herrera de Noble e tantos outros. Sendo que muitos, mesmo não tendo participado diretamente das atrocidades da ditadura, entraram numa relação obscena com a política e congratularam o ditador, como Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato num famoso almoço. E é claro que muito mais gente – o que não lhes torna assassinos, a não ser que se comprove que participaram diretamente de crimes cometidos – apoiou o golpe de Videla, mas isso não o inocenta. Seria mesmo que inocentar Hitler pelo fato de a massa alemã tê-lo referendado. Ademais um pedido de perdão, ainda que o fizesse com suas próprias palavras, um ditador nunca se arrepende, é sempre uma linha dura de ódio, um bloco compacto de crueldade.

Videla é um vazio. O que passa por ele é uma subjetividade assassina, que por demais estava em consonância com muitos por quais passava a mesma subjetividade, entre estes muitos da alta cúpula da Igreja Católica, por isso não surpreende quando ele diz que “a Igreja cumpriu com seu dever, foi prudente”. É sabido que muitos, não apenas no catolicismo, usam a religião como um filtro para ver de forma mais distinta a realidade; mas há também muitos que aproveitam a condenação ao sexo para se distanciar do real e, mais ainda, da vida.

Como Hitler fez com as Olimpíadas, resta a Videla tentar fazer crer em um balanço positivo do período hediondo a partir da organização da Copa do Mundo de 78. O que Videla não fala é que inicialmente o montante estimado para o evento era de 70 milhões de dólares, mas ao final foi contabilizado um gasto que ultrapassou a cifra de 700 milhões. Ou seja, a corrupção não ceifava apenas vidas, ocorria em todas as esferas, era totalitária.

Todo ditador – aliás, como todos os tiranos – é vazio, e seu discurso é apenas o estertor tanático do que é mau, no sentido do filósofo holandês Spinoza (1632 – 1677), como aquilo que diminui ou aniquila a potência de agir dos corpos no mundo. Para Videla, fazer Justiça em uma sociedade Republicana seria calar o canto de Horacio Guarani e Mercedes Sosa, queimar as obras de Mario Benedetti, Paulo Freire e Saint-Exupéry, matar impunemente a Paco Urondo e banir em masmorras palavras como “marxismo” e “liberdade”. Portanto, nada de novo, apenas tentativas de afirmação, no caso de Videla, de seus crimes de lesa-humanidade.

Los Kirchner, uma consolidação democrática

Mesmo a análise da “leitura” que Videla faz sobre os governos de Nestor Kirchner e agora de Cristina Fernández Kirchner não passa de uma nulidade: “Nosso momento pior, falo para os militares, é com a chegada dos Kirchner ao governo”. Quase dá para ver a bílis escorrendo na afirmativa de Videla. Como bem observou Luis Bruschtein no Página 12, “Videla é contemplativo com Alfonsín (ainda que se possa deixar de notar o desgosto) e com Menem (a quem verdadeiramente valora), mas é furiosamente antikirchnerista”, aos quais acusa de levar a cabo uma vingança.

E como não ser um ditador como Videla contrário a quem tem levado centenas de militares a julgamento por crimes praticados na ditadura, com o próprio maior responsável, ele mesmo, Videla, encerrado em uma prisão comum? Como disse o deputado da província de Santa Fé Leandro Busatto ao portal Sin Mordaza, "quando Videla fala de vingança, nós dizemos ‘Memória, Verdade e Justiça'". Ou como se pronunciou o grupo HIJOS: “Nossa única vingança é ser felizes.”

O ódio sanguinário de Videla se dá porque os Kirchner têm ousado o que ninguém tem conseguido fazer em toda a América Latina. Além dos julgamentos por torturas, mortes e desaparecimentos, há julgamentos de muitos processos por corrupção e abuso de poder. Nestor foi capaz de investigar até a forma da adoção dos filhos de Hernestina Herrera de Noble, e Cristina levou adiante a denúncia de extorsão da Papel Prensa por Clarín e La Nación durante a ditadura.

Em sua covardia e seu embotamento da vida, os tiranos sempre viram a democracia e a liberdade como pior; por isso quando tenta ironizar (nada a ver com a ironia diluidora dos afetos tristes) o governo de María Estela Martínez de Perón se contrapondo a ele, além do machismo que transparece em sua fala, os distancia em visão de mundo e de governo. E quando diz que hoje está “muito pior” que na época dela não faz mais que se contorcer com a dor que advém a um genocida por ver a liberdade e a democracia consolidadas, por ver a vida em movimento.

Mas o tirano não vê. Videla apenas pressente que não pode levar a cabo aquilo que o filósofo Baudrillard chama de “crime perfeito”, aquele em que não se encontra nem a vítima nem o autor. Por obra dos Kirchner Videla foi reconhecido, julgado e condenado, e quanto mais tenta se justificar, mas demonstra que seus crimes são de uma ordem patológica e hedionda, ainda que se queira racional.

Da concessão à obscenidade genocida

Mas a questão fundamental a ser discutida, para qual atentou acertadamente grande parte da população argentina é a possibilidade justamente de querer racionalizar a crueldade, a “transparência do mal” (Baudrillard). O susto com a matéria da revista espanhola se deu porque na Argentina, principalmente em Buenos Aires, há muito que os próprios familiares de militares deixaram de fazer as reuniões públicas para tentar afirmar a ditadura. Há muito que mesmo as mídias que tiveram ligação com líderes do golpe militar não expressam abertamente ou tentam disfarçar, ainda que deixem transparecer em sua linha editorial, sua tendência e não têm dado voz aos militares egressos da ditadura.

A notícia, e de onde partiu, chamou a atenção do assessor da Secretaria de Direitos Humanos da Nação, Guido L. Croxatto: “Videla falou muito poucas vezes desde a recuperação da democracia, faz mais de 28 anos, por isso se dizia que estava nas fossas comuns. Por que voltou a dar declarações públicas? Por que para um meio espanhol?” Ele compara a concessão a Videla com anverso ocorrido há poucos dias na Justiça espanhola: “Jorge Rafael Videla reivindicou a ditadura. A Justiça espanhola inabilitou a Baltasar Garzón”. E, entre vários pontos do seu lúcido e belo texto ao Página 12, pede uma tomada de posição filosófica: “Como dizia Adorno em Mínima Moral, ‘o mínimo que se espera da filosofia (depois de Auschwitz) é responsabilizar-se’. O que é também o dilema da filosofia argentina. E em realidade é o dilema de toda filosofia e de toda pessoa: o compromisso.”

Foi essa preocupação de Croxatto com a mídia e esse chamado filosófico que impulsionou trazer para esse evento o conceito de Baudrillard de obscenidade: “Se tudo fosse certo, viveríamos realmente na obscenidade, quer dizer, na verdade nua, na insensata pretensão das coisas a expressar sua verdade”. Há coisas que não devem passar pela transparência da razão instrumental e ser racionalizados pelo entendimento mais rasteiro; ou seja, banalizados e, portanto, aceitáveis ou suportáveis. Assim é que certa está Hebe de Bonafini, da Associação Mães da Praça de Maio, que não quis dar declarações sobre a superexposição das insanidades de Videla.

“Todos os acontecimentos, os espaços e as memórias subsumidos na única dimensão da informação: é a obscenidade” (Baudrillard). A partir da hiperexposição obscena há uma anulação realmente racional a partir da recorrência apresentada como verdade e como algo novo – todo esse discurso de Videla é redundante – e à qual não é possível desmontar uma vez que estamos na era da velocidade e, principalmente, velocidade da informação. Dessa forma, mais do que rechaçar os ditos de Videla, é necessário também tomar uma posição a um meio de comunicação que os explora, posição que pode ser vista na posição do deputado da província de Buenos Aires Alfredo Antonuccio: “A mim me parece mais que uma reportagem como essa é um insulto a todas suas vítimas, às mães e avós da Praça de Maio, a nossa triste história recente dos anos mais obscuros que vivemos. Mas também nos deixa perplexos os fundamentos expostos por este periodista que faz de sua profissão um cinismo mórbido, como dizem em sua Espanha, de ‘mala leche’”.

A expressão “de mala leche” em espanhol pode ser traduzido ao português como “de mau agouro”. A origem etimológica do termo ob-sceno, como o emprega Baudrillard, significa “fora de cena” e, estendendo seu uso prático medieval, referia-se justamente a isso; ou seja, àquilo que é trazido forçosamente à cena e é “de mau agouro” ou, como queira, “de mala leche”.

A revista Cambio 16, em outra nota, lamentou o ocorrido na Argentina e afirmou seu trabalho em “defesa da liberdade e dos direitos humanos e a denúncia de ditadores e genocidas”. O lamento não minimiza a prática da censura praticada à inteligência por esse meio, que fere os estatutos de ética, de jornalismo e, principalmente, de democracia ao dar voz às escabrosidades da lógica genocida de um Videla.

(*) Estudante de cinema e literatura em Buenos Aires.

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