quinta-feira, 25 de agosto de 2011

....lei das prisões – uma leitura da liberdade....

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Que lei é essa que atraiu a ira dos conservadores e o ceticismo dos garantistas?


Na última sexta-feira (19/08), atendendo a convite da Escola da Defensoria Pública de São Paulo, conversei com Defensores Públicos e estagiários no Fórum Criminal da Barra Funda, sobre a Lei 14203/11, que alterou dispositivos sobre prisão e liberdade no Código de Processo Penal.

Segue um breve resumo da exposição, com o agradecimento aos defensores pelo convite e mais ainda pela possibilidade de ouvir críticas que me ajudaram a entender a lei um pouco mais.

Lei das Prisões – uma leitura da liberdade

Não é fácil explicar algo que ainda não se entendeu muito bem. O cipoal de publicações incompletas e de alguma forma contraditórias resume bem o momento ainda de incompreensão. Mas se o STF demorou mais de vinte anos para perceber que havia uma nova Constituição, porque nós não poderíamos ter dúvidas?

Minha primeira impressão da lei foi de indiferença.

Para soltar furtador primário, não precisaríamos de tanto barulho.

Foi a reação a uma ofensiva conservadora na mídia (aquela que disse que duzentas mil pessoas seriam soltas imediatamente em razão da lei) que me chamou a atenção. A situação de ira dos conservadores e ceticismo dos garantistas, me fez lembrar das palavras de Fernando Collor ao assumir a presidência em 1990: “vou deixar a direita enraivecida e a esquerda perplexa”.

Que lei é essa, afinal?

A lei tem vários pontos positivos realmente, mas tudo depende dos óculos que nós usarmos para lê-la.

O professor Antonio Scarance, um dos formuladores do projeto original (desfigurado, como sói acontecer, no Congresso), diz que a edição da lei, com criação de inúmeras medidas alternativas, procurou “dar crédito” ao juiz.

Faço uma leitura um pouco distinta.

Com a avalanche de prisões provisórias, que em última instância, não deixam de ser responsabilidade dos juízes, a lei procurou impor restrições (à prisão preventiva), exigir obrigações (como a de decretar a prisão e fundamentá-la) e, por fim, enviou estímulos ao juiz (com as medidas alternativas), para que a prisão provisória seja mais seletiva.

Não deixou livremente ao critério do juiz –mas age para que ele, em essência, não possa ou não deva utilizar a prisão provisória como “prima ratio”.

Os pontos que me chamam a atenção na lei, pelo propósito de mudar paradigmas, são os seguintes:

a-) superação da inércia

Lei pretende superar a “maldição da tarja vermelha”, evitando que réus permaneçam presos, pelo simples fato de que foram presos.

A inércia da prisão a transformou em regra no cotidiano: é preciso fazer esforços para soltar um réu que foi preso em flagrante (provar vinculação com o distrito da culpa, bons antecedentes e etc). Prova evidente é a ideia que herdamos do sistema de preventiva compulsória, na denominação “liberdade provisória”. Liberdade deve ser perene, prisão é que é provisória.

O que a lei faz, aqui, a bem da verdade, é apenas explicitar uma situação que já existia: toda prisão em flagrante se transforma em preventiva, no dia seguinte.

A lei determinou que essa conversão agora seja expressa, não mais implícita. Obriga que o juiz a decrete (conversão), inclusive explicando porque ela é necessária e outras medidas não são suficientes.

Para usar uma expressão corrente, tirou o juiz da “zona de conforto”.

Decretar a prisão preventiva sempre esteve associado a algo mais grave na nossa cultura processual –aqueles processos que vinham do cartório com esse pedido, que deixávamos para analisar mais tarde, com cuidado.

Se de um lado a lei impõe a fundamentação para a manutenção da decisão, de outro banaliza a prisão preventiva, tirando-lhe a cerimônia.

A má notícia é que quando mais cedo o juiz é instado a esclarecer todos os motivos pelos quais o réu deve ficar preso, explicitando porque são insuficientes todas as medidas cautelares, costuma ser menor a chance que ele mude de ideia em curto tempo.

Mas essa cultura também vem enfrentada pela lei, que estimula o caráter provisório e mutável da prisão, explicitando que as cautelares podem ser alteradas a qualquer tempo.

Ao final, a vantagem é tornar as coisas mais claras. Toda prisão, a partir da apresentação do flagrante, é de responsabilidade do juiz; ao mesmo tempo, a lei criou alguns obstáculos para que o juiz confirme a prisão, em especial a necessidade de fundamentar o afastamento das cautelares. Para justificar a prisão, os juízes devem agora explicitar um fundamento positivo (a necessidade da preventiva) e um fundamento negativo (a insuficiência das cautelares)

Os fundamentos da preventiva não se alteram, nem mesmo a discutível “ordem pública” vem mais explicitada. Razoável, todavia, a explicação de Juliana Belloque, que me sucedeu na palestra: a ideia de “reiteração de atos”, presente no art. 282 (critérios das cautelares), pode ser um referencial para o juiz, tal como vem acontecendo na legislação comparada (a vantagem é diminuir o espaço amplo do conceito, que abrangia gravidade do crime e comoção social numa mesma panela)

b-) resgate da proporcionalidade

Aqui a lei revela o triunfo da obviedade. Se crimes ensejam aplicação de penas em regime aberto ou em restritivas de direito, não há qualquer sentido em manter preso provisoriamente quem vai ser solto ao final.

A proporcionalidade é um princípio, mas a regra explícita pode nos ajudar a compreendê-lo melhor –até porque duas décadas trabalhando com o direito nos acostumando a entender que entre nós, o óbvio nunca é ululante.

A lei estipulou restrições à preventiva, em especial vedando sua decretação em crime com pena máxima inferior a quatro anos.

Mais importante do que a restrição em si da lei (pois é de fato incompreensível que ainda houvesse réus presos provisórios com penas tão baixas, sendo primários) é o estímulo da proporcionalidade, o ponto mais importante.

A proporcionalidade não deve se limitar apenas ao que exclui, mas servir de referencial para toda e qualquer prisão preventiva. Juiz deve se perguntar: a custódia é proporcional ao resultado?

Devemos observar aqui que a proibição da lei é tímida, porque trabalha com a ideia de pena máxima –muitos outros casos, podemos saber, com certa razoabilidade, que a pena concreta se situará abaixo de quatro anos.

É justo antecipar esse prognóstico? Mas por acaso, não o fazemos, em regra, ao manter a prisão, uma prognose de condenação?

A má notícia é que a “proporcionalidade invertida” pode se transformar em fundamento da prisão cautelar: todo crime com pena superior a 4 anos máxima passa a ser grave.

Descobrimos que estelionato e furto qualificado são chamados crimes “de preventiva”. Roubo e tráfico, então, com penas de até 10 ou 15 são insuperáveis (mas onde fica a proporcionalidade se aos primários do roubo simples, sem emprego de armas, podem ser aplicadas penas em regime aberto e ao pequeno traficante, a restritiva de direitos)?

Proporcionalidade, quando falamos em direito penal, é um dos princípios a que se deve ter muita cautela. É um dos mais malferidos, funcionando quase como um falso cognato.

A ideia formadora do princípio é a proibição do desproporcional e tem em si um sentido de contenção do poder, limitação da ação do Estado.

Traduz-se na “proibição do excesso”: Estado não deve agir de modo a usar força desproporcional, mais do que o necessário, mais do que o razoável.

Mas em muitas situações é usada para fazer fins justificarem meios, como uma grande corrente que discutia exceções na proibição da prova ilícita, ou mesmo em argumentos frequentes sobre aplicação de pena consideradas insuficientes.

É preciso depurar a ideia de proporcionalidade (proibição da sanção desproporcional) para que o princípio não seja utilizada com fins inidôneos.

Proporcionalidade deve ser um vetor de liberdade, não de prisão.

Significa que a penas de até 4 anos não podemos decretar prisão preventiva e assim também , em todos os outros casos em que, por analogia, a prisão processual não seja proporcional

Proporcionalidade foi estimulada como regra de interpretação da necessidade da prisão; não significa que em todos os outros crimes a prisão seja automática.

A reincidência insere-se como exceção a esta regra, por uma dupla justificativa. Pode representar um “perigo na frustração da aplicação da lei” e atua na proporcionalidade, pois interfere no tamanho e na qualidade da pena a ser aplicada.

Mas aqui também é preciso fazer vingar a semente da proporcionalidade: nem todas as reincidências são iguais. Não é o fato de que o réu já tenha sido condenado por qualquer crime, anos antes, que tornará reiteradamente a delinquir.

Na questão da proporcionalidade, deve ser cotejada com cautela, pois, nem todas as reincidências impedem a aplicação de pena restritiva de direitos na segunda pena.

Em especial afastar-se a incidência da microrreincidência, reincidência com pena de multa fixada pelo juiz anterior (que considerou a outra conduta irrisória) ou, por exemplo, em que houve condenação por crime de porte de entorpecente, a que a lei nem mais aplica pena privativa de liberdade.

A proporcionalidade na aplicação da reincidência é, aliás, tema que vem me preocupa faz tempo. A desproporção provoca verdadeiros absurdos.

Tenho, por exemplo, entendido que ofende o princípio da proporcionalidade a proibição de redução do parágrafo 4º do art. 33, da Lei de Tóxicos, quando o único óbice é a reincidência. Aplicando-se, o que fazemos é dar ao pequeno traficante, uma pena de 20 meses pelo tráfico e mais 40 meses por seu passado, num típico direito penal do autor (explico melhor aqui).

Um exagero contundente que já vi, por exemplo, foi a fixação de pena a um traficante reincidente em 5 anos e 10 meses, justificados por uma anterior condenação por “porte de entorpecente” –crime que, atualmente, não comina mais pena privativa (comento aqui este caso).


Não se pode esquecer, todavia, que: a regra da proporcionalidade é excludente, para afastar a preventiva, mas a decretação/conversão da preventiva exigem ainda os requisitos da cautelaridade.

c-) superação do duplo-binário, prisão x liberdade


A novidade da lei é não exigir mais do juiz que escolha entre prisão e liberdade, dada a opção das cautelares.

Mas as cautelares, medidas alternativas, são alternativas a que, exatamente?

O espírito da lei parece claro: são alternativas à prisão preventiva (medidas descarceirizadoras). Devem ser aplicadas, quando presentes os requisitos de cautelaridade, sempre que sejam “suficientes”.

Estímulos do legislador para que o juiz não se sinta obrigado a manter uma prisão desnecessária, inclusive contando-se com as estatísticas que apontam que nos últimos 20 anos, o número de presos pulou de 100 mil para 500 mil e o quociente de provisórios de 18% para 44%.

A má notícia é que elas podem ser usadas como alternativas à soltura, forma de tarifar a liberdade (torná-la menos acessível ou mais fácil de ser perdida).

O exemplo mais rotineiro é a fiança, mas o mais contundente (se aplicável) é a monitoração eletrônica.

Monitoração, aliás, parece ser o maior retrocesso da lei –caminhando na estigmatização de quem nem sequer foi condenado.

Quanto às restrições ao uso da “tornozeleira”, leia aqui minha opinião. Se já é discutível para condenados, que dirá, então, para meros processados?

O primeiro perigo deste “ativismo cautelar” é formatar uma liberdade mais cara; o segundo é burlar a proibição da preventiva com pena de até 4 anos, por intermédio da frustração de alguma cautelar, em uma “interpretação integradora”.

Recentemente me deparei com a seguinte decisão: réu preso por uma tentativa de furto qualificado tentado, é solto com aplicação das cautelares de monitoramento eletrônico e recolhimento noturno. Não seria claramente proporcional?

A variedade das cautelares e existência de cautelares bem simples, podem levar à consideração de que não é preciso sequer a “necessidade” para a aplicação da cautelar, sendo ela sempre obrigatória na liberdade.

Mas, se o “duplo binário” morreu, ele ainda não foi devidamente enterrado:

O art. 310 impõe ao juiz, quando se trata de prisão em flagrante legal, duas opções: decretar prisão (se insuficientes as cautelares); conceder liberdade provisória (com, ou sem fiança)

Neste momento, percebe-se que permanece a distinção:

i.. presentes os fundamentos do 312 : decretar preventiva, se insuficientes as cautelares

ii.. ausentes fundamentos do 312: conceder liberdade provisória com ou sem fiança

É verdade que o art. 321 veio para confundir um pouco as coisas, estipulando que, não estando presentes os requisitos da prisão preventiva, permite-se a concessão da liberdade provisória, impondo, se o caso, medida cautelar.

A dúvida seria, então, quanto à aplicação das cautelares, aplicando quando presentes os requisitos (no lugar da preventiva) e ao mesmo quando ausentes os requisitos (ao lado da liberdade provisória).

Parece que a lei convida o juiz a uma certa graduação, trabalhando com os conceitos de necessidade, adequação e suficiência.

Prisão preventiva quando for imprescindível; medida cautelar, quando for necessária para garantir processo, liberdade provisória quando ausente o requisito de necessidade.

Manteve-se, pois, a figura da liberdade provisória sem fiança e sem cautelar, igualando caso de réu que não foi preso ao que foi, mas não houve fundamento para cautelar.

d-) ampliação da fiança

Nítido avanço ao ampliar os casos em que a fiança pode ser concedida pela autoridade policial, ainda que o valor mínimo a ser fixado seja extremamente exagerado para quem não tem condições.

Também agiu bem adequando a fiançabilidade à regra constitucional (proibindo-a apenas nos caso em que a Constituição proibiu.

A má notícia é que a lei estimula -ao invés de desestimular a prisão, pode acabar por desestimular a liberdade.

Há uma certa excitação da imprensa com a possibilidade de aplicação em valores estratosféricos da fiança –quase como se estivéssemos, enfim, chegando ao primeiro mundo.

Mas no horizonte do direito penal, quantos réus presos têm condições de pagá-la?

Penso que fiança não acautela nada; ninguém que tenha condições financeiras deixa de fugir pelo fato de que depositou fiança em juízo.

Cotidiano deve aumentar aplicação da fiança em casos em que liberdade provisória é possível, seja para vedá-la, seja pelo desconhecimento da realidade em que vive o réu.

O excesso de aplicação da fiança pode, enfim, sepultar o objetivo de contenção da prisão provisória.

Verdade é que aumentando a incidência da fiança, aumenta a chance de reparação de pequenos danos. Mas se a fiança serve para reparar o dano (e é preciso pagá-la antecipadamente para evitar a prisão), não estaríamos de forma indireta burlando a proibição de “prisão por dívida”?

Tenho fundadas dúvidas quanto ao merecimento deste estímulo à fiança e ao que ela representa: a ideia de que dinheiro compra liberdade.

e-) contraditório

Incluiu-se previsão que não existia expressamente na decretação da prisão preventiva. A decretação da prisão era um assunto mais ou menos restrito a tríade delegado-promotor-juiz, na concepção tradicional que o réu é objeto da ação estatal, não sujeito do processo.

O contraditório, todavia, não só pode ser superado na urgência como ainda se mantém a decretação de prisão preventiva de ofício, no curso do processo, sem aderir plenamente ao sistema acusatório (inclusive no que concerne a não prever manifestação da acusação antes da “conversão da prisão em preventiva).

O legislador foi extremamente tímido, quase envergonhado, na criação de prisão domiciliar cautelar, impondo restrições de certa forma draconianas, como a de que o réu tenha mais de oitenta anos (não me recordo de nem um só processo com réu preso com mais de 80 anos que tenha julgado em 21 anos de carreira), mas abriu uma importante possibilidade para diminuir a monstruosidade que uma criança gerada na penitenciária, ao conceder a prisão para gestante de sétimo mês.

(Leia aqui, um interessante comentário sobre a prisão domiciliar para cuidado de filho menor)

Deixou, entretanto, de cuidar de duas questões importantes: o tempo das medidas cautelares e a detração posterior, em caso de condenação.

Não se pode conceber a ideia de uma cautelar sem prazo, mais ainda aquelas de maior constrição, como prisão preventiva, recolhimento domiciliar, monitoração eletrônica, suspensão de exercício de cargo público. A questão vai pesar aos tribunais, ao longo do tempo.


E, ao menos quando se trata de cautelares invasivas, como o caso do recolhimento domiciliar noturno ou monitoração eletrônica (que equivalem a formas de cumprimento de penas em regime aberto ou semiaberto), deverá ser considerada para efeitos de cumprimento de pena, com a detração.

Toda vez que nos deparamos com uma lei confusa (e esta sem dúvida é, com criação de várias prisões preventiva, várias liberdades provisórias e medidas cautelares espalhadas), intérpretes doutrinários se preparam para por em prática as tradicionais lições de hermenêutica (lei não tem palavras inócuas; quando legislador quis restringir fez especialmente; lei deve ser interpretada no sentido de não criar contradições e outros tantos brocardos).

Mais importante a meu ver é o sentido da hermenêutica: entender o que é a lei, para que ela veio e em que lugar ela se insere.
Primeiro ponto é o princípio de não-retrocesso.

Lei não pode ser interpretada no sentido de esvaziar presunção de inocência que é um princípio constitucional (não pode ser diminuída, cláusula pétrea)
Ao revés, lei veio para estabelecer, no patamar infraconstitucional, aquilo que o princípio da presunção de inocência faz no patamar constitucional: liberdade é a regra, prisão exceção.

A ideia básica da lei é diminuir o excesso de prisão provisória desnecessária, cuja gordura acaba por atingir a mais de 40% dos processos. Não pode ser empregada como forma de impedir a liberdade.

A interpretação deve privilegiar esse espírito:

a-) prisão deve ser utilizada como ultima ratio (necessidade, adequação e insuficiência das cautelares alternativas);

b-) cautelar não pode ser usada para impedir por via indireta a liberdade;

c-) cautelar também deve ser necessária (não automática), preservando-se a liberdade “provisória” sem condições nos demais casos.

Divirjo assim da lição de Gulherme Nucci (Prisão e Liberdade, RT): “Se por comodidade, continuarem vários magistrados a conceder a liberdade provisória sem fiança e sem nenhuma outra medida cautelar, toda a reforma terá sido em vão”.

Penso que a lei terá sido em vão se os juízes justamente usarem em demasia as cautelares como forma de constranger a liberdade.

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