sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Hora do Pranto: por Warat

Por e-mail do grupo RENAP, recebo de Luiz Gustavo Assad Rupp, a seguintr mensagem:

"Ao receber a notícia da morte de Warat, corri para o primeiro livro que li dessa figura: A Ciência Jurídica e seus Dois Maridos ou, “fragmentos de uma expedição pelo direito, pela ciência e outros lugares de arrogância”. Este livro é o primeiro de uma trilogia, seguido pelo “Manifesto do Surrealismo Jurídico” e “O Amor Tomado pelo Amor”.

Nunca tive contato direto com Warat, mas há vinte anos convivo com ele. Sua leitura era uma terapia contra as aulas enfadonhas da faculdade. Esse sujeito conseguia na mesma obra escrever sobre direito, surrealismo e poesia, mergulhando em Cortazar, Breton, Barthes, Bakhtin... e nesse livro, é claro, Jorge Amado.
Repasso aos companheiros quatro páginas desse livro, onde ele descreve alguns personagens de Cortazar e, em seguida, é surpreendido pela notícia da morte do escritor argentino. Isso se passou em 1984. O que ele escreveu para Cortazar, certamente serve para ele.

Luiz Gustavo Assad Rupp
Joinville-SC"


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2.8. Algumas chaves para a semiologia Cortazariana:


*- Cronópios: Homens pluriformes e pluricromáticos de espantosa riqueza inventiva, estranha poesia e humor adstringente. Altamente sensíveis a tudo o que existe de raro e fantástico na vida cotidiana, vivem empenhados em redescobrir o amor pela vida, debochar do instituído e exercitar uma livre cormunicação dos desejos. Comunicam-se marginalmente, apelando a uma serniologia dissidente dos desejos.

A forma dos cronópios é a loucura.

Eles cantam como as cigarras, iadiferentes aos semio-suicidas coletivos do cotidiano e, quando cantam, esquecem tudo, até a conta dos dias.
0s cronópios levam as significações impressas sobre o corpo, pensam que as leis poderiam ceder terreno às excessões, acasos e improbabilidades.

Provavelmente sejam os sobreviventes, fragmentos esparsos de alguma horda angelical de antepassados do homem : que conseguiram perdurar nos corpos de alguns virus para tomar, às vezes o sangue de alguns homens, despertando-os para a vida. Esboços de um sonho de loucura.

Um cronópio possuído de uma imensa alegria por ver o sol é capaz de apertar o tubo da pasta de dentes desde a janela de seu banheiro. convertendo a rua num mar cor de rosa.

Os cronópios entendem que, apelando aos preconceitos, nunca se pode estar no novo.

Dono de um discurso desligado, vale-se dele para não ser militante de nada e nem de coisa alguma. Nem sequer é soldado de sua loucura. O cronópio é um marginal que não se socializa nem no dever e nem no pecado. Ele não aceita ficar preso a nenhuma teia de tiranias.

Se algum cronópio tomasse o poder, perdê-lo-ia instantaneamente.

-Famas: São seres cinzas, acomodados, prudentes, amantes do calculo, da semiologia dominante e dos desejos lícitos. Os famas sabem tudo da vida prãtica. Embalsamam suas recordações e podem dizer o que vai acontecer a cada instante, no passar das horas, porque para eles hoje é igual a ontem.

Os famas conseguem pôr um lugar em cada coisa e cada coisa em seu lugar. Se decidem participar de uma escola de samba, o fazem na comissão de frente.

Quando um cronópio enche a rua de sua casa com pasta de dentes, o fama organiza uma reunião de vizinhos para ir protestar de forma regular e oficial. Os famas não se apuram em mudar o mundo, e deixam que o mundo os dissolva.

Quando uma desigualdade social os toca, gritam com força: que vergonha, filhos de uma m i mãe, e vão para seu clube achando-se muito bem, e pensando na maneira como se comprometeram socialmente. Sua profissão predileta de serem advogados.

O fama, com diz meu amigo Lênio Çtreck, tem o cotidiano agendado. Se perde sua agenda, perde parte de sua vida. Quando os famas tomam o poder. militarizam o cotidiano.

Esperanças: As esperanças sedentárias deixam-se viajar pelas coisas e pelos homens, e são como as estátuas. É preciso ir vê-las, porque elas não vém até nós.

 As esperanças são cordiais e chamam verdades científicas ao junto de metáforas que os povos usam para viver sua própria história. A esperança é um pára-vidas que escuta aos outros como quem ouve chover. Uma esperança não aceita manejar abstrações se não são eurocêntricas e reconhecidas por um professor da Sorbonne.

As esperancas vivem graças ao espírito cartesiano, não suportam as ingerências, detestam os famas sem admitir que elas, quando fazem seus raciocínios analíticos, os copiam. Os esperanças constituem o direito do saber. Quando um esperança leciona em uma universidade, não conhece seus alunos e por isso os trata bem, no final nâo lhe importam nada.

Quando os esperanças tomam o poder, falam de democracia.

Ponto "vêlico": (de um navio). Lugar de convergência, ponto de intersecção misteriosa até para o construtor do navio. Nele somam-se as forças dispersas em todo o "velamen" desdobrado. Ponto "vêlico" do ar, lugar onde enxergamos o que todavia não sabemos ver. Ponto "vêlico" do fantástico, a grande surpresa que nos espera, onde aprendemos finalmente a não surprender-nos de nada. É a crosta aparencial do fantástico.

Piantado: Em italiano "mandar-se a mudar". Neologismo que define um tipo particular de louco, o maluco que não se crê normal se pensa muito nisto, pois os normais se parecem demais a um juiz de Para entender um louco convém ser psiquiatra, para entender um piantado basta o bom humor. A loucura é uma saída, piantar-se e ver chegar cronópios.

2.9. 13 de fevereiro. são dez tristes, chuvosas horas da manhã, em uma cidade que, quando lhe tiram o sol de verão, fica perdida. Estou escrevendo devagar e com torpor, com a ressaca de um resfriado que me embota as idéias. Minha irmá traz a noticia de que Cortázar morreu. Deixo este quebra-cabeças que estava tentando consertar, peço para comprarem os jornais e, enquanto espero, sinto a necessidade de
dizer por escrito adeus ao homem que me mostrou, com impecável perícia, como se deve viajar em direção ao fantãstico, para poder ter as realidades e evidências por enigmas; como poder transmutar em loucas as razões, para poder sobreviver socialmente a tantos monstros que, nobre, militar e sensatamente
nos governam.

Ainda adolescente aprendi em Cortázar a horrorizar-me das antinomias e a gostar dos textos que tanspirassem, por todos seus poros, uma vitalidade ardentemente exposta e comprometida. Durante todos estes anos, cada vez que, como nesta manhã, me sentia lento e entorpecido frente a uma folha de papel em branco, recorria a Cortázar, porque sabia que teria uma leitura inspiradora. Junto com Barthes,
é o autor m a anonimamente citado em meus trabalhos. Os dois são minha gramática do desejo.

Chegam os jornais. Júlio Cortãzar morreu ontem em Paris, ficando, desde agora, só Cortázar nos outros. Daqui em diante, unicamente de nós dependerá que seu modo de iluminar tudo o que olhava, descobrindo o que nós não víamos, ou víamos cheio de lugares-comuns, não se perca como um lugar
literário.

Acabamos de perder um grande cientista social que, como diz Vargas Llossa, soube combinar um tipo de literatura cotidiana, baseada na experiência comum das pessoas com elementos fantásticos, com o elemento imaginativo mais audaz e insólito. As palavras de Vargas Llossa encerram uma preciosa
definição do que é romanesco carnavalizado, como expressão do compromisso das linguagens com a democracia. A obra de Cortázarr esponde bastante ao ideal de linguagem política, tal como a pode ver um Barthes ou a vê Lefort, Eco e Morin.

Foi um cronista do caos, das imobilidades cotidianas, do fantástico e da ilusão. Foi um cronista do insólito.

Sinto um certo mal-estar nos ecos de sua morte. Borges, por exempio, fala mais dele e de sua irmã do que de Cortázar. O jornal "La Nacion" diz que é inaceitável para um homem de seu talento haver aderido ideologicamente aos movimentos esquerdistas da América Latina, sem medir as razões daqueles que exerceram o terrorismo. Aflorou muita raiva contida em uma nota que fala muito mais das infelicidades de
um jornal, para entender um homem que viveu fora dos "clichés", que precisamente, através de diários como esse, prepararam o terreno para muitas das pátrias militares que assolaram este continente. A este jornal, cabe-lhe direitinho este verso de Cortazar: "Sube cayendo hasta la nada".

Aa televisáo está passando uma entrevista que Cortázar concedeu em sua fugaz passagem por Buenos Aires (alguns dias antes da entrega do poder a Alfonsin). Neste momento ouço-o dizer que a democracia não pode ser uma palavra, e sim uma vivência. Pego outro fragmento da entrevista, onda Cortázar fala de nossos imobilismos, dos engarrafamentos de nossa vida, de como nossas ilusões, nossos costumes.
nossos lugaris-comuns nos paralisam, nos deixam atolados enquanto dura a vida. Por que não pensar então também em como as leis, como as verdades que escrevemos com "maiúscula" (para afirmá-las melhor), como o sentido adquirido da ordem é o uso juridicista da palavra democracia, imobiliza-nos e
deixa-nos politicamente atolados. Em um dia 13 que não é nem sexta-feira, está me chegando a noticia da morte de Cortizar. Lendo os jornais, sinto que eu também com Cortázar começo a morrer. Ele é uma de minhas mortes moleculares. Hoje todos os cronõpios estão chorando. Morreu um de seus grandes. Hoje, em algum lugar cotidiano do fantástico, um gato muito parecido a Teodoro W. Adorno tem um olhar perdido no ar, certamente porque haverá encontrado a imagem de um Júlio que, desde um domingo 12 de fevereiro, é definitivamente o "ponto vêlico" da narrativa latino-americana contemporânea.

Com tristeza , Júlio, ADEUS!

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