segunda-feira, 26 de março de 2012

Por detrás da revolta fardada


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Fatores históricos, políticos e econômicos explicam a recorrência no país de movimentos reivindicatórios por salários e melhores condições de trabalho da categoria dos profissionais de segurança pública. Volta e meia há greves, paralisações, operações-padrão ou a ameaça de que ocorram
por Marcelo Freixo
(Policiais em greve na Bahia: fato é que a polícia nunca foi bem remunerada no Brasil)
A recente eclosão de manifestações de servidores da segurança pública, no Ceará, na Bahia e no Rio de Janeiro, por melhores salários e condições de trabalho não ocorreu por acaso. Um fator circunstancial acendeu o rastilho: a resistência governamental em promover a votação da proposta de emenda constitucional (PEC) 300, que prevê, entre outras medidas, um piso único nacional. Isso não significa, no entanto, que tenha havido algum planejamento prévio articulado entre as categorias em movimento, embora as chances de que novas revoltas fardadas venham a acontecer em outros estados sejam reais. A insatisfação, afinal, não vem de hoje e só aumenta.
Há outros fatores circunstanciais por detrás dos recentes episódios de luta da categoria da segurança pública. Por exemplo, o relativo sucesso da recente movimentação dos bombeiros do Rio de Janeiro, a partir de meados de 2011. Certamente pesa também na indignação desses profissionais uma notória contradição entre a propaganda oficial de prosperidade econômica nacional e estadual e a progressiva depreciação salarial da categoria, que, por sinal, sempre cumpriu seu papel a serviço dos interesses do Estado. Mas, por detrás do problema, há questões mais profundas e estruturais que precisam ser analisadas.
Fatores históricos, políticos e econômicos explicam a recorrência no país de movimentos reivindicatórios por salários e melhores condições de trabalho da categoria dos profissionais de segurança pública. Volta e meia há greves, paralisações, operações-padrão ou a ameaça de que ocorram. A Bahia, por mais de uma vez, sediou algum tipo de manifestação desse gênero na última década, assim como o Ceará e o Rio de Janeiro. Houve também em Alagoas, em 1997. Em Minas Gerais, os movimentos eclodem com razoável frequência desde o início dos anos 1990, mas já em 1988 o coronel reformado Felisberto de Resende alertava: “A polícia é disciplinada e sempre respeitou seus governantes, mas disciplina não casa com fome. Onde há fome, não pode haver disciplina”. À acusação de quebra da hierarquia e da disciplina, a categoria policial militar, em especial, responde com indignação perante a histórica resistência oficial em cumprir leis e até mesmo decisões judiciais relacionadas a reajustes salariais.
Fato é que a polícia nunca foi bem remunerada no Brasil. E o principal argumento governista sempre foi o da incapacidade orçamentária para atender a essa demanda. Há motivos de sobra para suspeitar da veracidade dessa justificativa. Tal política orçamentária sinaliza a opção dos últimos governos por um determinado modelo de Estado, que privilegia o mercado em detrimento da cidadania.
No caso do Rio de Janeiro, por exemplo, o governo fala da inviabilidade de conceder reajustes que resultariam em um impacto de R$ 1 bilhão no orçamento anual de R$ 61,96 bilhões em 2012. Mas esse mesmo governo concordou em conceder mais de R$ 50 bilhões em quatro anos (2007-2010) em isenções fiscais para empresas instaladas no estado. Carece de credibilidade o argumento orçamentário apresentado por um governo afetado gravemente pela corrupção e pela incompetência na gestão dos recursos públicos.
O histórico de salários baixos para a polícia é um dado relevante relacionado ao fenômeno dos movimentos reivindicatórios. Tais salários resultam de uma decisão política, não de contingência financeira. Têm muito mais a ver com as próprias condições militarizadas da origem e o propósito funcional das polícias.
Ranço autoritário
O governo federal e o Congresso perdem, neste momento, a grande oportunidade de realizar um debate mais sério e profundo sobre a necessidade de reforma completa das nossas polícias, a começar pela possibilidade de elas conviverem com a democracia interna. Não há como a polícia garantir a democracia nas ruas se, dentro da corporação, não há democracia. A polícia não pode garantir um regime democrático se não convive com a democracia. Os códigos de obediência, os códigos de conduta a que responde até hoje, ainda são oriundos da ditadura militar. Enquanto essa realidade persistir, os movimentos reivindicatórios dos servidores da segurança pública carregarão também traços dessa cultura militar. E o debate que precisa ser feito sobre a democratização da polícia não se limita ao direito de greve. Este, por sinal, é muito mais complexo. De qualquer forma, o que essa categoria não pode é perder o apoio da população em sua luta por dignidade.
Como não houve a transição para a democracia na área de segurança pública, isso se traduz na falta de uma cultura sindical, de representatividade, de participação. É indefensável essa concepção de polícia militarizada em pleno século XXI, em um Estado democrático de direito.
No final do século XX, o viés conservador do processo de transição política do regime ditatorial para o Estado de direito culminou com a vitória do autoritarismo no Brasil. Apesar de a Constituição de 1988 ter alterado as premissas gerais da ordem republicana com a normatização de uma série de princípios inovadores, o país manteve viva a mesma cultura militar que, desde os tempos da Corte portuguesa, designa as instituições de controle social. Cultura que foi aperfeiçoada durante o período do Estado Novo e consolidada ao longo dos “anos de chumbo”. Apesar de todos os esforços empreendidos durante a década de 1980, o movimento de democratização do país não conseguiu atingir nem o fetiche pela hierarquia nem a vocação bélica das agências de segurança pública do Brasil.
Essa visão militarizada de segurança pública promoveu no setor policial e penitenciário uma pauta de ações de controle dos espaços populares com o fim de neutralizar distúrbios públicos, gerir riscos disciplinares da pobreza e reafirmar a autoridade do Estado (em um momento em que sua legitimidade é questionada em todas as outras esferas), tendo como base a sustentação de certos “mitos científicos” relacionados à política de segurança pública (entre os quais se destacam a teoria das janelas quebradas, a tese da tolerância zero, o discurso moralista da impunidade e a doutrina da guerra contra as drogas).
Sob a lógica de que a todo Estado mínimo corresponde um Estado penal, o governo passa a cumprir a função de controle penal do “refugo humano” descartado pelo projeto político hegemônico. No Brasil, de um legado bélico e autoritário construído durante a ditadura militar, o imaginário político brasileiro evoluiu para sonhos hiperbólicos de ordem pública, gerados por seus novos anseios governamentais.
Mesmo que purificados por outro vocabulário, os fantasmas da antiga Doutrina da Segurança Nacional continuaram a mobilizar as instituições de segurança pública. O alvo preferencial é jovem, negro e pobre, e a ação policial se traduz em uma estatística mórbida. De acordo com o Mapa da Violência 2012, do Instituto Sangari, as taxas de homicídio no Brasil de 2010 foram em média duas vezes maiores para vítimas de cor negra, em comparação com os homicídios de brancos. Batizada de Choque de Ordem, a mesma política justifica ainda a repressão dos trabalhadores informais, como ambulantes, e a internação compulsória da população de rua.
A flexibilização das garantias legais, somada à privatização de serviços e setores fundamentais e à mutilação das redes de amparo social e assistencialismo público, permitiu ao Estado brasileiro assumir, paralelamente a seu “não intervencionismo” econômico, um papel de governo cujo principal sintoma é a “expansão hipertrofiada” do setor penal-policial.
A atual política criminal brasileirasurgiu, assim, de um berço cultural que havia herdado a violenta tradição militar desenvolvida durante os “anos de chumbo”, mas que agora também desejava uma renovada militarização das estratégias de controle social. No final das contas, essa lógica produziu um modelo de Estado que funciona em estranha contradição. De um lado, impera a vontade expressa de ampliar a potência de seus braços militares e, do outro, predomina um desprezo crônico pelos direitos dos servidores da segurança pública. Com isso, a cada dia que passa, as consequências políticas desse perigoso regime ficam cada vez mais evidentes.

Sociedade em situação de guerra?
O reajuste salarial que os servidores da segurança conseguiram obter com as recentes manifestações ainda está muito distante do grau de responsabilidade de suas funções públicas. Não há um plano de carreira, muito menos uma base salarial digna. Em geral, os governos estaduais continuam investindo em políticas de gratificações que servem apenas para dividir os setores e diluir as tentativas de coletivizar as demandas trabalhistas. É preciso que os governos avancem nas negociações com os sindicatos e as associações para tentar solucionar esse vão que separa a realidade salarial da verdadeira importância dessas instituições.
Acima das questões salariais, o momento pede uma reflexão mais profunda. É preciso aproveitar essa oportunidade para repensar a formação, a capacitação e o treinamento das agências de segurança. Pois além de uma remuneração indigna, essas instituições são mal preparadas para defender a ordem democrática.
A lógica que impera é a da necessidade de proteção da sociedade em situação de guerra, o que gera, logo de cara, três efeitos imediatos. Primeiro, um efeito político de gerenciamento da alteridade que se dá na produção do inimigo público e na difusão do medo popular em relação ao grupo social criminalizado. Em seguida, um efeito legal de reafirmação da soberania do Estado que, porém, coincide com a suspensão dos direitos e o estancamento das liberdades para reassegurar a “segurança” e legitimar a militarização das ações governamentais. E, finalmente, um efeito estético de naturalização da violência gerado pela construção do olhar bélico que prega a urgência da defesa da sociedade acuada e é seduzido pelos espólios da vitória sobre o adversário.
Ou seja, a formação militar das agências de segurança pública fundou um olhar que se baliza na produção dos “territórios de risco” e na glorificação do combate armado contra o “inimigo”. Dessa forma, calcula-se que os despojos de “guerra” – as armas, a morte do inimigo, o território – encontram-se muito acima, como supostos resultados, da proteção da vida. Precisamos desnaturalizar essa visão ultrapassada de segurança e reinventar a formação dos policiais, bombeiros e agentes prisionais a partir de uma cultura pautada no marco dos direitos humanos.
Da mesma forma, os governos estaduais precisam garantir uma maior autonomia e independência administrativa das corregedorias e ouvidorias das agências de segurança pública. O controle externo dessas instituições é imprescindível para fortalecer o caráter republicano do Estado. Só assim poderemos avançar no aperfeiçoamento democrático de nosso país.
Mas, acima de tudo, é necessário haver uma mudança de paradigma. Segurança pública não pode ser compreendida como sinônimo de polícia. A polícia é um capítulo no debate da segurança pública, nada mais do que isso. Sociedade segura não é a que tem muita polícia, mas a que garante perspectiva de vida a seus cidadãos. Uma sociedade segura não é a que tem muita gente presa. Se fosse assim, o Brasil já seria “um mar de segurança”, já que tem a terceira maior população prisional do mundo, com cerca de meio milhão de pessoas encarceradas. Uma sociedade segura é aquela que promove e garante os direitos humanos. E isso não se faz com armas, não se faz com instrumentos de controle, pelo contrário, quanto mais se investe nisso, mais se perde liberdade, que é o grande desafio que esse modelo dominante de desenvolvimento nos impõe.
Qual é nossa escolha entre segurança e liberdade? Até que ponto vamos continuar opondo esses dois conceitos como se fossem inconciliáveis? Então, são reflexões do que levou a sociedade a estar mais desmobilizada, e os efeitos que isso tem sobre a segurança pública de hoje são visíveis: grades, câmeras, instrumentos de proteção particular em número e diversidade cada vez maiores. Tudo isso se transformando na ideia de que a segurança pública se faz de forma privada. Esse, evidentemente, é um grande equívoco de nossa parte.
Outra reflexão necessária se refere ao papel que os setores progressistas desempenham. Hoje, o debate sobre segurança pública é muito forte nos setores mais progressistas, mas isso ocorre há pouco tempo. Na época da própria Constituinte, dos grandes avanços legais que o Brasil teve, havia muito pouca gente dos setores mais progressistas que priorizava o debate sobre segurança.
Temos de encerrar esse ciclo. Além de reinventar as instituições de segurança pública, é necessário investir em políticas públicas para a juventude, educação de qualidade, saúde, lazer, enfim, criar novas oportunidades. É preciso construir, agora mesmo, outro futuro para o Brasil. Não podemos desperdiçar este importante momento histórico. É preciso fazer, agora, os encaminhamentos estruturais necessários para essa mudança. Afinal, como disse Brecht, “nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”.

Marcelo Freixo é professor de História, deputado estadual (PSOL-RJ) e presidente da CPI das Milícias.

Ilustração: Gregg Newton / reuters

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