terça-feira, 21 de setembro de 2010

A história e seus ardis: O lulismo posto à prova em 2010

ANDRÉ SINGER


CONTA-SE QUE CERTA VEZ o engenheiro Leonel Brizola teria levado ometalúrgico Lula ao túmulo de Getúlio Vargas em São Borja (RS). Láchegando, o gaúcho pôs-se a conversar com o ex-presidente. Depois dealgumas palavras introdutórias, apresentou o líder do PT ao homem queliderou a Revolução de 1930: "Doutor Getúlio, este é o Lula", disse, oualgo parecido. Em seguida, pediu que Lula cumprimentasse o morto. Não sesabe a reação do petista. Será que algum dos personagens do encontro pressentiu que, naquela hora,estavam sendo reatados fios interrompidos da história brasileira?Desconfio que não. Os tempos eram de furiosa desmontagem neoliberal da herança populista dosanos 1940/50. Mesmo aliados, em 1998 PT e PDT -praticamente tudo o querestava de esquerda eleitoralmente relevante- perderiam para FernandoHenrique Cardoso no primeiro turno. O consulado tucano parecia destinado adurar pelo menos 20 anos e trazer em definitivo o neoliberalismo para oBrasil. BRECHA Foi por uma brecha imprevista, aberta pelo aumento do desemprego nosegundo mandato de FHC, que Lula encontrou o caminho para a Presidência daRepública. Para aproveitá-la, fez substanciais concessões ao capital,pois a ameaça de radicalização teria afastado o eleitorado debaixíssima renda, o qual deseja que as mudanças se deem sem ameaça àordem.1 Apesar da pacificação conquistada com a "Carta ao Povo Brasileiro" tersido suficiente para vencer, o subproletariado não aderiu em bloco. Haviamais apoio entre os que tinham renda familiar acima de cinco saláriosmínimos do que entre os que ganhavam menos do que isso, como, aliás,sempre acontecera desde 1989. Ainda que as diferenças pudessem serpequenas, elas expressavam a persistente desconfiança do "povão" emrelação ao radicalismo do PT. Depois de 2002, tudo iria mudar. A vitória levaria ao poder talvez o maisvarguista dos sucessores do dr. Getúlio. Não em aspectos superficiais,pois nestes são expressivas as diferenças entre o latifundiário do Sul eo retirante do Nordeste. Tampouco no sentido de arbitrar, desde o alto, ointeresse de inúmeras frações de classe, fazendo um governo que atendedo banqueiro ao morador de rua. Dadas as condições, todos os presidentestentam o mesmo milagre. O que há de especificamente varguista é a ligação com setores popularesantes desarticulados. Ao constituir, desde o alto, o povo em atorpolítico, o lulismo retoma a combinação de autoridade e proteção aospobres que Getúlio encarnou. BURGUESIA EM CALMA Mas em 1º de janeiro de 2003 ninguém poderia prever oenredo urdido pela história. Para manter em calma a burguesia, o mandatoinicial de Lula, como se recorda, foi marcado pela condução conservadoranos três principais itens da macroeconomia: altos superavits primários,juros elevados e câmbio flutuante. Na aparência, o governo seguia o rumode FHC e seria levado à impopularidade pelas mesmas boas razões.De fato, 2003 foi um ano recessivo e causou desconforto nos setoresprogressistas. Ao final, parte da esquerda deixou o PT para formar o PSOL.Mesmo com a retomada econômica no horizonte de 2004, Brizola deve termorrido em desacordo com Lula, por ter transigido com o adversário.Ocorre que, de maneira discreta, outro tripé de medidas punha em marcha umaumento do consumo popular, na contramão da ortodoxia. No final de 2003,dois programas, aparentemente marginais, foram lançados sem estardalhaço:o Bolsa Família e o crédito consignado. Um era visto como mera junçãodas iniciativas de FHC. O segundo, como paliativo para os altíssimos jurospraticados pelo Banco Central. Em 2004, o salário mínimo começa a se recuperar, movimento acelerado em2005. Comendo o mingau pela borda, os três aportes juntos começaram asurtir um efeito tão poderoso quanto subestimado: o mercado interno demassa se mexia, apesar do conservadorismo macroeconômico. Nas pequenas localidades do interior nordestino, na vasta regiãoamazônica, nos lugares onde a aposentadoria representava o único meio devida, havia um verdadeiro espetáculo de crescimento, o qual passavadespercebido para os "formadores de opinião". PASSO DECISIVO Quando sobrevém a tempestade do "mensalão" em 2005 -e,despertado do sono eterno pela reedição do cerco midiático de que foravítima meio século antes no Catete, o espectro do dr. Getúlio começa arondar o Planalto-, já estavam dadas as condições para o passo decisivo.Em 3 de agosto -sempre agosto-, em Garanhuns (PE), perante milhares decamponeses pobres da região em que nascera, Lula desafiou os que lhemoviam a guerra de notícias: "Se eu for [candidato], com ódio ou semódio, eles vão ter que me engolir outra vez".Até então, a ligação entre Lula e os setores populares era virtual.Chegara ao topo cavalgando uma onda de insatisfação puxada pela classemédia. Optou por não confrontar os donos do dinheiro. Perdeu parte daesquerda. Na margem, acionou mecanismos quase invisíveis de ajuda aos maisnecessitados, cujo efeito ninguém conhecia bem. Foi só então que, empurrados pelas circunstâncias, o líder e sua basese encontraram: um presidente que precisava do povo e um povo queidentificou nele o propósito de redistribuir a renda sem confronto. PLACAS TECTÔNICAS Os setores mais sensíveis da oposição perceberam quefora dada a ignição a uma fagulha de alta potência e decidiram recuar. Ahipótese de impedimento foi arquivada, para decepção dos que não haviamentendido que placas tectônicas do Brasil profundo estavam em movimento.Em 25 de agosto, um dia depois do aniversário do suicídio de Vargas, Lulapodia declarar perante o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Socialque a página fora virada: "Nem farei o que fez o Getúlio Vargas, nemfarei o que fez o Jânio Quadros, nem farei o que fez o João Goulart. Omeu comportamento será o comportamento que teve o Juscelino Kubitschek:paciência, paciência e paciência". Uma onda vinda de baixo sustentava abonomia presidencial. O Lula que emerge nos braços do povo, depois da crise, depende menos dobeneplácito do capital. Daí a entrada de Dilma Rousseff e Guido Mantegaem postos estratégicos, o que mudou aspectos relevantes da políticamacroeconômica. Os investimentos públicos, contidos por uma execuçãoorçamentária contracionista, foram descongelados no final de 2005. Osalário mínimo tem um aumento real de 14% em 2006. POLARIZAÇÃO Para o público informado, a constatação do que ocorreraainda demoraria a chegar. Foi preciso atingir o segundo turno de 2006 paraque ficasse claro que o povo tinha tomado partido, ainda que em certosambientes de classe média "ninguém" votasse em Lula.A distribuição dos votos por renda mostra a intensa polarização socialpor ocasião do pleito de 2006. Pela primeira vez, o andar de baixo tinhafechado com o PT, antes forte na classe média, numa inversão que define orealinhamento iniciado quatro anos antes.Embora, do ponto de vista quantitativo, a mudança relevante tenha se dadoem 2002, o que define o período é o duplo movimento de afastamento daclasse média e aproximação dos mais pobres. Por isso, o mais correto épensar que o realinhamento começa em 2002, mas só adquire a feiçãodefinitiva em 2006. Como, por sinal, aconteceu com Roosevelt entre 1932 e1936. SEGUNDO MANDATO Assentado sobre uma correlação de forças com menorpendência para o capital, o segundo mandato permitirá a Lula maiordesenvoltura. Com o lançamento do PAC, fruto de um orçamento menosengessado, aumentam as obras públicas, as quais vão absorver mão deobra, além de induzir ao investimento privado. Em 2007, foi gerado 1,6 milhão de empregos, 30% a mais do que no anoanterior. A recuperação do salário mínimo é acelerada, com aumentoreal de 31% de 2007 a 2010, contra 19% no primeiro mandato, conformeestimativa de um dos diretores do IPEA (Instituto de Pesquisa EconômicaAplicada)2. A geração de emprego e renda explica os 70% de aprovação dogoverno desde então. Nem mesmo a derrubada da CPMF, com a qual a burguesia mostrou os dentes nofinal de 2007, reduziu o ritmo dos projetos governamentais. Atransferência de renda continuou a crescer. Foi só ao encontrar a parededo tsunami financeiro, no último trimestre de 2008, que se interrompeu ociclo ascendente de produção e consumo. Teria chegado, então, segundoalguns, a hora da verdade. Com as exportações em baixa, o lulismo iriadefinhar. COMPRAR SEM MEDO Mas o lulismo já contava com um mercado interno de massaativado, capaz de contrabalançar o impacto da crise no comércio exterior.A ideia, difundida pelo presidente, de que a população podia comprar semmedo de quebrar, ajudou a conter o que poderia ser um choque recessivo e arelançar a economia em tempo curto e velocidade alta. Além da desoneração fiscal estratégica, como a do IPI sobre osautomóveis e os eletrodomésticos da linha branca, o papel dos bancospúblicos -em particular o do BNDES- na sustentação das empresas aumentoua capacidade do Estado para conduzir a economia. Numa manobra que lembra ade Vargas na Segunda Guerra, Lula utilizou a situação externa paraimpulsionar a produção local. Surge uma camada de empresários -Eike Batista parece ser figuraemblemática, como notava dias atrás um economista-, dispostos a seguir asorientações do governo. A principal delas é puxar o crescimento por meiode grandes obras, como as de Itaboraí -o novel polo petroquímico noEstado do Rio-, as de Suape (PE) e de Belo Monte, na Amazônia. Cada umadelas alavancará regiões inteiras. Por fim, a aliança entre a burguesia e o povo, relíquia de tempospassados que ninguém mais achava que pudesse funcionar, se materializadiante dos olhos. Que o estádio do Corinthians em Itaquera não nos deixementir. PROJETO PLURICLASSISTA A candidatura Dilma representa o arco que o lulismoconstruiu. A ex-ministra, por sua biografia, é talhada para levar adianteum projeto nacional pluriclassista. O fato de ter sido do PDT até poucotempo atrás não é casual. A mãe do PAC tem uma visão dos setoresestratégicos em que a burguesia terá que investir, com o BNDES. O povo lulista, que deseja distribuição da renda sem radicalizaçãopolítica, já dá sinais de que o alinhamento fechado em 2006 está emvigor. Em duas semanas de propaganda eleitoral na TV, Dilma subiu 9 pontospercentuais e Serra caiu 5. À medida que os mais pobres adquirem ainformação de que ela é a candidata de Lula, o perfil do seu eleitoradose aproxima do que foi o de Lula em 2006. Ou seja, o voto em Dilma cresceconforme cai a renda, a escolaridade e a prosperidade regional. A classe média tradicional, em que pese aprovar o governo, continuará avotar na oposição, como demonstram a dianteira de Serra em Curitiba e ovirtual empate em São Paulo, municípios em que o peso numérico dascamadas intermediárias é significativo. Parte delas, sobretudo entre os jovens universitários, deverá optar porMarina Silva. Isso explica por que os que têm renda familiar mensal acimade cinco salários mínimos dão 12 pontos percentuais de vantagem para asoma de Serra e Marina sobre Dilma na pesquisa Datafolha concluída em 3/9.O problema da oposição é que esse segmento reúne apenas 14% doeleitorado, de acordo com a amostra utilizada pelo Datafolha, enquanto osmais pobres (até dois salários mínimos de renda familiar mensal) são48% do eleitorado. Nesse segmento, Dilma possui uma diferença de 22 pontospercentuais sobre Serra e Marina somados! Se vier a ganhar no primeiroturno, será graças ao apoio, sobretudo, dos eleitores de baixíssimarenda, como ocorreu com Lula na eleição passada. REALINHAMENTO A feição popular da provável vitória de Dilma confirma,assim, a hipótese que sugerimos no ano passado a respeito da novidade queemergiu em 2006. Se estivermos certos, por um bom tempo o PSDB precisaráaprender a falar a linguagem do lulismo para ter chances eleitorais. Nãose trata de mexicanização, mas de realinhamento, o qual significa menos avitória reiterada de um mesmo grupo e mais a definição de uma agenda quedecorre do vínculo entre certas camadas e partidos ou candidatos. Quando um governo põe em marcha mecanismos de ascensão social como os quese deram no New Deal, e como estamos a assistir hoje no Brasil, determina oandamento da política por um longo período. Num primeiro momento,trata-se da adesão dos setores beneficiados aos partidos envolvidos namudança -o Partido Democrata nos EUA, o PT no Brasil. Com o passar do tempo e as oscilações da conjuntura, os aderentes menosentusiastas podem votar em outro partido, mesmo sem romper o alinhamentoinicial. Foi o que aconteceu com as vitórias do republicano Eisenhower(1952 e 1956) e dos democratas Kennedy (1960) e Johnson (1964).Mas para isso a oposição não pode ser extremada, como bem o percebeu ahábil Marina Silva. Até certa altura da sua campanha, José Serraigualmente trilhou esse caminho. Foi a fase em que propôs cortar juros eduplicar a abrangência do Bolsa Família. Depois, tragado pela lógica do escândalo, retornou ao caminho udenista dadenúncia moral, que só garante os votos de classe média -o que, noBrasil, não ganha eleição. Convém lembrar que no ciclo dominado peloalinhamento varguista, a UDN só conseguiu vencer com um candidato: JânioQuadros, que falava a linguagem populista. Fora disso, resta o golpe,sombra da qual estamos livres. DURAÇÃO Qual será a duração do ciclo aberto em 2002, completado em2006, e, aparentemente, a ser confirmado em 2010? O realinhamento abrange,por definição, um período longo. O último que vivemos, dominado pelooposicionismo do MDB/PMDB, durou 12 anos (1974-86) e foi sepultado, quemsabe antes do tempo, pelo fracasso em controlar a inflação. A respostapara o atual momento também deve contemplar a economia. Por isso, as condições de manter, pelo menos, o ritmo de crescimentomédio alcançado no segundo mandato de Lula, algo como 4,5% de elevaçãoanual do PIB, estarão no centro das preocupações do novo presidente. Semele, as premissas do lulismo ficam ameaçadas. Recados criptografados sobrea necessidade de reduzir a rapidez do crescimento e de fazer um ajustefiscal duro já apareceram na imprensa, dirigidos a Dilma, provávelvencedora. O capital financeiro -apelidado na mídia de "os mercados"- vai lhe cobraro tradicional pedágio de quem ainda não "provou" ser confiável. Caso osreclamos de pisar no freio não sejam atendidos, sempre haverá o recursode o BC -cuja direção deverá continuar com alguém como HenriqueMeirelles, senão o próprio- aumentar os juros. O aumento real do saláriomínimo no primeiro ano de governo, que dependerá da presidente, pois oPIB ficou estagnado em 2009, será outro teste relevante. CABO DE GUERRA Convém notar que, no segundo mandato de Lula, ainda que demodo relutante, o BC foi obrigado a trabalhar com juros mais baixos. Mas ocabo de guerra será reiniciado no dia 3 de janeiro de 2011. Com osjogadores em posse de um estoque de fichas renovados pela eleição, unsapostarão em uma recuperação do espaço perdido, outros numaaceleração do caminho trilhado no segundo mandato. O PMDB, elevado à posição de sócio importante da vitória, atribuiu-se,na campanha, o papel de interlocutor com o empresariado. O PT,possivelmente fortalecido por uma bancada maior, deverá, pela lógica,fazer-lhe o contraponto do ângulo popular. A escolha dos presidentes daCâmara e do Senado, em fevereiro, servirá de termômetro para o balançodas respectivas forças. O futuro do lulismo dependerá de continuar incorporando, com saláriosmelhores, os pobres ao mundo do trabalho formal. Em torno desse ponto éque se darão os principais conflitos e se definirá a extensão do ciclo.Alguns analistas da oposição alertam para a proximidade de um índice deemprego que começará a encarecer a mão de obra e gerar inflação. Comomostra Stiglitz,3 é a conversa habitual dos conservadores para brecar aexpansão econômica. Por fim, não se deve esquecer que uma palavra decisiva sobre esses embatesvirá de São Bernardo, onde residirá o ex-presidente, bem mais perto dacapital do que foi, no passado, São Borja. Aguardam-se os conselhos de Vargas e Brizola, dos quais poderemos tomarconhecimento naquelas mensagens psicografadas por Elio Gaspari.________________________________________Notas1. Ver André Singer. "Raízes Sociais e Ideológicas do Lulismo", "NovosEstudos", 85, nov 2009. Link para o artigo em folha.com/ilustríssima2. Ver João Sicsú. "Dois Projetos em Disputa". "Teoria e Debate", 88,mai/jun 2010.3. Ver Joseph Stiglitz, "Os Exuberantes Anos 90", Companhia das Letras,2003.

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