quarta-feira, 11 de abril de 2012

Min. Marco Aurélio, um liberal coerente


http://brasiledesenvolvimento.wordpress.com/2012/04/11/min-marco-aurelio-um-liberal-coerente/

Por João Telésforo Medeiros Filho
O Min. Marco Aurélio, do STF, acaba de votar, na ADPF 54, contra a criminalização da interrupção de gravidez de feto anencéfalo. A íntegra de seu consistente voto já está disponível online, aqui.
Se todos os supostos liberais do Brasil fossem como o Min. Marco Aurélio, que, de modo coerente com seu liberalismo, também já votou, por exemplo, contra a extradição do refugiado político Cesare Battisti e pelo direito de ocupação de terras improdutivas, teríamos um país muito melhor. O seu voto, no caso Battisti, foi fiel, em especial, aos princípios liberais do devido processo legal e do refúgio político. Já no caso do direito de ocupação de terras improdutivas, desdobramento de sua visão liberal da propriedade – sim, de todo coerente com a teoria de propriedade de John Locke, conforme você pode entender lendo esta dissertação de Mestrado, pp. 50-63*.
A propósito do voto de Marco Aurélio em defesa da reforma agrária, é surpreendente, para mim, o quanto ele é pouco conhecido, mesmo entre advogados dessa área. Em 2000, o governo FHC editou uma Medida Provisória que dispunha que imóveis rurais ocupados (ou “invadidos”) por movimentos sociais do campo só poderiam ser objeto de vistoria para fins de reforma agrária a partir de dois anos depois da desocupação da propriedade, e que qualquer espécie de entidade envolvida direta ou indiretamente com “invasão” de imóveis rurais não poderia receber recursos públicos. Ou seja, além de punir as entidades (inclusive as “indiretamente envolvidas”), premiava o proprietário da terra improdutiva e punia toda a sociedade, conforme observou o Ministro Sepúlveda Pertence em seu voto, segundo quem tal sanção seria “uma estranha sanção: é uma sanção difusa, uma sanção por classe social. Não se sancionam os partícipes da invasão. Sancionam-se todos os excluídos da propriedade rural, que reivindicam o acesso à terra, mediante um prêmio ao proprietário, por menos que a sua propriedade seja produtiva, por mais distante esteja essa propriedade do cumprimento de sua função social, condição constitucional da proteção. Premia-se o proprietário com a imunidade e se pune difusamente a quem quer que possa ter a expectativa de expropriação desta propriedade morta, socialmente morta, para fins de reforma agrária“.
O Min. Marco Aurélio foi além de Sepúlveda: para ele, a ocupação de latifúndios improdutivos é um “direito natural”, e portanto não há que se falar em “invasões ilegais” nesses casos. Por conseguinte, a proibição do repasse de recursos a entidades envolvidas com esses atos: “(…) encerra uma indesejável coerção política: de um lado, o Estado não implementa o que quis o legislador constituinte de 1988, não providencia, com a largueza suficiente, a reforma agrária; de outro, para evitar certo exercício – que considero como um direito natural – de ocupar terras improdutivas, os latifúndios –, impõe uma coerção política, obstaculizando, portanto, o fluxo de numerários que visem a este ou àquele benefício inicialmente de cunho social (…)”.
Em seguida, Marco Aurélio faz um apelo à reforma agrária: “Há de avançar-se no campo da reforma agrária. Há de avançar-se no campo das ações afirmativas, considerada a Carta que Ulysses Guimarães apontou como ‘carta cidadã’, voltada a atender, acima de tudo, à dignidade da pessoa humana. O quadro relativo às propriedades rurais não se harmoniza com o fundamento do Estado Democrático de Direito concernente à preservação da dignidade do homem.
Não digo que Marco Aurélio seja o Ministro dos nossos sonhos, tenho diferenças políticas e teóricas com ele e acredito que é preciso pensar para além do liberalismo (em outro post, posso entrar nos méritos das contradições do próprio Locke, que era acionista de companhia que fazia tráfico de escravos). Mas, ah se o liberalismo brasileiro fosse sério e coerente como aquele manifestado pelo Ministro Marco Aurélio (nesses votos, ao menos)…
*“Mas se a relva dentro de seu cercado apodrecesse no solo, ou se o fruto de seu plantio perecesse sem ser colhido e armazenado, esse pedaço de terra, não obstante sua cercadura, seria ainda visto como abandonado, e poderia ser a posse de qualquer outro” John LOCKE, Dois Tratados sobre o Governo, citado por João Paulo SANTOS (2008, p. 60).
PS: um amigo (o professor Enzo Bello) lembrou que Marco Aurélio também entra em contradição com seu liberalismo em alguns temas muito importantes. Por exemplo, ao ter declarado, em entrevista, que a ditadura de 1964-85 teria sido “um mal necessário”. Então, vale dizer: ah se o Marco Aurélio fosse coerente com o seu liberalismo também em outros temas… Aliás, nesse tema da ditadura, talvez mais do que incoerente com o liberalismo, ele tenha exposto o caráter intrinsecamente contraditório do pensamento liberal. Lembro-me de Nietzsche, no Crepúsculo dos Ídolos: “As instituições liberais deixam de ser liberais logo que são alcançadas; não há, depois, nada de tão radicalmente prejudicial à liberdade quanto as instituições liberais”. Mas, esse é um assunto para outro post. Por ora, fica apenas a provocação.

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