sábado, 2 de julho de 2011

Lei n.º 12.403/2011 aliviará o problema da superlotação prisional

Ninguém, minimamente informado, tem mais dúvida de que a justiça criminal brasileira é disfuncional.  Em novembro de 2009, o CNJ já havia anunciado de que um em cada cinco presos provisórios estava irregularmente encarcerado. Há uma tendência geral no sistema de condenar à prisão um número maior de acusados do que a quantidade de pessoas que são postas em liberdade. Daí que o número de presos detidos provisoriamente está crescendo vertiginosamente no país. São 44% do total da população carcerária.

De acordo com o Departamento Penitenciário Nacional do governo Brasileiro (DEPEN), em junho de 2008 o número de pessoas sendo encarceradas excedeu em 40 por cento a capacidade projetada das prisões do Brasil, e o número de presos estava aumentando em aproximadamente 3.000 por mês.

Os mutirões do CNJ são uma tentativa de mitigar essa crise disfuncional. Em resumo, é difícil explicar porque é mais rápido condenar a prisão do que soltar. O mutirão do CNJ de 2009, por exemplo, conseguiu soltar cerca de 20% dos casos examinados. Significa dizer que um cada cinco estavam presos irregularmente.

A depender da região do país, o índice de encarceramento por crimes de menor gravidade muda substancialmente. Por exemplo, em Porto Alegre apenas 30% dos presos são acusados pelo crime de furto. Em Belém, a cifra sobe para 90%.

A sensação de impunidade pressiona os juízes a abandonarem o princípio da presunção da inocência. A lentidão dos julgamentos definitivos, as ansiedades e preconceitos da sociedade contra determinados tipos de crimes, praticados especialmente pelas classes menos abastadas, incentivam os juízes a adotarem o instituto da prisão provisória. Dos que são presos, cerca de 80% não dispõem de condições para contratar um advogado particular.

Dentre os preconceitos, a afirmação de que a polícia prende e a justiça solta. Uma espécie de senha para os altos índices de matanças de suspeitos, praticados pela polícia. E também para a grande incidência de maus tratos nas prisões e carceragens de delegacias. Na verdade, existem cerca de 300 mil mandados de prisão em aberto no país. Enquanto muitas pessoas que não deveria estar detidas continuam nas prisões, a Justiça também falha ao não assegurar a prisão dos que de fato foram condenados. Se neste último aspecto, o sistema de justiça criminal fosse eficiente, as prisões explodiriam.

Manter pessoas pessoas presas custa muito dinheiro. E quando estas pessoas, que deveriam na verdade estar soltas, apenas aumentam as fileiras das organizações criminosas, reforçam-se as razões utilitárias para a redução do número de pessoas presas e a utilização da prisão como um recurso excepcional. Nesse caminho já se posicionava o STF, quando chegamos à atual reforma do Código de Processo Penal.

No bojo dessa reforma, entra em vigor a Lei n.º 12.403/2011, a partir da segunda-feira (dia 04 de julho). A nova lei cria novos critérios par a prisão em flagrante e para a prisão preventiva, orientando o encarceramento para os crimes punidos com penas mais graves.

As prisões em flagrante ou provisórias que não se enquadrarem nos critérios da lei nova deverão ser relaxadas. Estima-se que cerca de 200 mil prisões em flagrante deverão ser revistas a partir de segunda-feira. Lembremos que cerca de 90% dos presos provisórios do país o são em função da prisão em flagrante. Outros presos primários ou não perigosos também serão colocados em liberdade.

A seguir,  artigo esclarecedor de Luiz Flávio Gomes sobre o tema:


O efeito mais bombástico da nova lei de prisões é o seguinte:


LUIZ FLÁVIO GOMES*

Cerca de 200 mil prisões em flagrante devem ser revistas prontamente, a partir do dia 04 de julho. Os presos não comprovadamente perigosos e/ou primários, poderão ter liberdade, com ou sem medidas cautelares alternativas.

Dos mais de 500 mil presos no Brasil (cf. nossa pesquisa no www.ipclfg.com.br) , 44% deles não têm sentença definitiva (são presos provisórios ou cautelares). Desses, cerca de 90% estão presos em razão de prisão em flagrante. Milhares deles, desde que não apresentem periculosidade comprovada, deverão ser liberados se os juízes não fundamentarem a necessidade concreta do encarceramento cautelar.

Isso significa impunidade? Não. A lei nova não garante nenhuma impunidade, simplesmente está mandando os juízes cumprirem a constituição, em relação aos presumidos inocentes, para distinguir quem deve ficar preso (durante o processo) e quem não deve.

A nova lei (Lei 12.403/11), para além de prever 11 medidas cautelares alternativas, que devem ser analisadas pelo juiz, antes de decretar ou confirmar a prisão, acabou com a velha e inconstitucional praxe do “carimbão” que, simplesmente, dizia: “Flagrante em ordem”. Colocava-se o “carimbão” na papelada dos réus pobres e tudo prosseguia, sem percalços. Em relação aos ricos isso nunca jamais ocorreu impunemente.

De acordo com a praxe forense ainda em vigor a prisão em flagrante (são centenas todos os dias) é mantida pelos juízes sem nenhum tipo de fundamentação (há exceções honrosas, claro). No lugar de uma análise minuciosa para distinguir o joio do trigo (quem deve efetivamente ficar preso e quem não deve), reinava, para os pobres, a cultura do “carimbão”. A prisão em flagrante servia de título para manter o sujeito preso durante todo o processo. Isso acabou com a nova lei.

Por força do novo art. 310, com redação dada pela Lei 12.403/11, a prisão em flagrante, quando o caso, deve ser convertida em prisão preventiva, inclusive em relação aos pobres, em decisão fundamentada (tríplice é a fundamentação: quais fatos justificam a prisão, qual é seu fundamento jurídico e se ela é realmente necessária). Para os ricos essas exigências sempre foram cumpridas pelos juízes. A fiscalização deles é muito mais efetiva.

Doravante passamos a ter apenas duas espécies de prisão cautelar: a temporária e a preventiva. A prisão em flagrante ou é convertida em prisão preventiva ou é relaxada (quanto ilegal) ou é substituída pela liberdade provisória (com ou sem medidas cautelares alternativas).

Considerando-se que a pobreza informativa do auto de prisão em flagrante, a respeito da vida pregressa do preso, constitui a regra, dificilmente o juiz terá elementos para justificar, de plano, a prisão preventiva. Não lhe restará outro caminho senão conceder a liberdade provisória, aplicando-se, se o caso, uma ou mais de uma medida cautelar alternativa.

Claro que a velha praxe das fundamentações consideradas ilegais ou inconstitucionais vão prosseguir. Alguns juízes continuarão falando em clamor público, gravidade abstrata da infração etc. Mas tudo isso não é aceito pelo STF, como motivação válida para a prisão.

Na teoria, a nova lei acaba com o “direito penal do cadeião automático para os pobres ou equiparados”. Mas na prática a teoria é outra. Se não houver rigorosa fiscalização dos advogados e defensores públicos, a velha praxe das prisões infundadas dos pobres ou equiparados que são presumidos inocentes não vai morrer.

Todas as prisões em flagrante, concretizadas antes de 04.07.11, que não foram mantidas em decisão fundamentada (isso ocorria só em relação aos pobres, claro), devem ser reanalisadas (em razão da ilegalidade). Isso significa alguma coisa em torno de 200 mil em todo país. Cabe ao defensor postular ao juiz a devida revisão. Não encontrando motivo suficiente para a prisão, cabe ao juiz conceder liberdade provisória (com ou sem medidas cautelares alternativas). Havendo recusa do juiz ou decisão mal fundamentada contra o réu, só resta o caminho do habeas corpus.
Milhares de presos, que não ostentam periculosidade concreta, embora pobres, poderão responder ao processo em liberdade, cabendo ao juiz prestar atenção nas medidas cautelares alternativas. Se o réu tem condições econômicas suficientes, a fiança se apresenta como medida cautelar muito adequada, visto que ela existe para a reparação dos danos causados pelo delito às vítimas.

*LFG – Jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001).

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