quarta-feira, 3 de novembro de 2010

FLAVIANO PINTO NETO, morto.

Conheci FLAVIANO por volta do mês de agosto de 2009. Ele veio à Fetaema junto com mais dois representantes do STTR de São Vicente de Férrer, trazendo documentos referentes ao processo envolvendo a comunidade de Charco.

Ao ler as peças do processo, me daparei com um mandado de reintegração de posse, com pedido de reforço policial para execução. Não havia mais prazo para recurso. Nunca tinha ouvido falar naquela comunidade, mas achei peculiares as características físicas de FLAVIANO.

Na baixada maranhense, quase tudo é comunidade negra. Passei a conversar com FLAVIANO sobre as origens do povoado. Ele sequer sabia o que era um quilombo. Estava meio assustado, falava timidamente. Perguntei se tinha muita gente no povoado da mesma cor de pele dele. Brinquei, puxei conversa fiada. Ele relaxou um pouco e soltou que havia no povoado pessoas descendentes de escravos. Expliquei que era muito importante que estas pessoas figurassem no processo, aparecessem para o Poder Judiciário, visto que estavam sendo tratados como invasores da terra. A defesa da comunidade, apesar de boa, até então, não tocara no tema do quilombo.

Poucos dias depois, me chegam às mãos, por intermédio de FLAVIANO, documentos referentes a ANTONIA SILVA MENDES e MARIA DOMINGAS DA SILVA, filhas da ex-escrava ANCÂNGELA ÂNGELA DA SILVA. Batistérios, documentos sindicais e certidões de nascimento.A esta altura, já havia sido mobilizado um batalhão de cerca de 120 homens, que estavam aquartelados em Viana, para a execução do despejo. Informações do coordenador do Gabinete de Gestão Integrada da Secretaria de Segurança Pública.

FLAVIANO na minha frente, passei a teclar no computador, desesperadamente. Elaborei outra possessória, requeri a reunião dos processos conexos, aleguei, além das preliminares de sempre, a presença do território quilombola. Demoramos a terminar, Flaviano na minha frente, de vez em quando complementando alguma coisa. Perguntei se tinha pressa para voltar, ele disse, com um sorriso no rosto, que esperaria o que fosse necessário. Saímos da Fetaema, era noite.

FLAVIANO com o processo debaixo do braço, todas a informações necessárias para o ajuizamento da ação. Fui para os bastidores.Ganhar tempo com a polícia. Deu certo: a Juíza da Comarca concedeu a liminar para suspender o despejo. FLAVIANO, orientado, foi falar com ela. Desde então, era presença constante no Fórum, falando com a juíza e com o Promotor. Conseguiu levar o representante do MP ao local do litígio. Queria levar a juíza, quis me levar. Eu queria ir, junto com ele, não deu tempo.

Provocamos o INCRA,antes. O processo antigo foi extinto. Criaram outro, desta fez sob o fundamento da legislação quilombola. O antigo não ia dar certo, a área não podia ser desapropriada. FLAVIANO ia, vinha, era incansável. Conversava com o MPF, com os procuradores do INCRA, da Fundação Cultural Palmares.Trazia na bolsa muita papelada. Pedia para fazer ofícios, noticiar o acirramento do conflito nos autos. Chegava a incomodar com sua desinquietação. Brincava com ele, contava piadas, ele ria, com seu sorriso desdentado.

Um belo dia chegou um pato, dentro de um côfo. Era FLAVIANO. Sabia que eu gostava, resquícios genéticos de baixadeiro. Depois trouxe um saco de macaxeira, que distribuí na FETAEMA, ou melhor, deixei por lá. FLAVIANO ligava sempre. Onde estivesse, lá estava ele (Brasília, Rio Grande do Norte, Pernambuco,Minas Gerais). Fiquei com o registros das ligações no meu celular. Insistia para que eu fosse ao Charco. Marquei duas vezes e não fui. O destino emergencial me empurrava para outros lados.

Retornava de Pernambuco, comemorando o julgamento favorável do IDC, de Manoel Mattos, quando soube da notícia. Fui trabalhar no recesso da segunda para levar um murro no peito. FLAVIANO acabara-se.

Dois pistoleiro haviam disparado sete tiros de pistola contra ele, às margens da BR 014. Tinha acontecido na noite de sábado. Liguei para confirmar. Era verdade. Eu tinha estado com ele na semana anterior. Não existe mais FLAVIANO, mas a comunidade resiste.

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