terça-feira, 16 de novembro de 2010

Corpos sem Cabeça

Depois da rebelião, muita gente pergunta, com curiosidade, como suportamos o choque de ver tantos cadáveres, alguns deles sem cabeça.

Realmente, a rebelião do presídio São Luís, foi sem dúvida, a mais sangrenta da história dos presídios no Maranhão.

Da posição que eu estava, era um espectador privilegiado, para não dizer azarado. Eu podia ver o que as pessoas que estavam no pavilhão do alto não viam. Do lado esquerdo do portão, havia uma janela de vidro à prova de balas. As janelas da fachada deste prédio estavam bloqueadas por colchões, colocados de propósito pelos presos rebeldes.

No entando, havia esta outra janela, no recuo da parede onde está o portão, de frente para o lugar onde estavam os negociadores. Ali, como num filme de horror, aparecia de vez em quando um preso, por apelido Serec, exibindo uma das cabeças. Parecia brincar com ela, exibindo-a como se fosse um troféu. Ele olhava nos olhos da gente, talvez para medir o tamanho do nosso pavor.

Depois, apareceu novamente, com um celular no ouvido. Falava despreocupadamente. Nesse momento, exibia um peça de automóvel nas mãos, que eu acredito que seja um amortecedor de carro. Depois de conversar demoradamente no celular, olhou para a gente e disse que ia entrar para "matar outro". Ouvimos baques surdos e gritos, logo em seguida. Será?? Nos olhávamos uns aos outros.

Desconfiei que o massacre podia ainda estar em curso. Fiz um esforço para apressar as negociações da pauta de reivindicações.  Os líderes pediram a presença da imprensa, para que a negociação fosse fechada publicamente. Eu estava ao lado da grade da janela, repetindo tudo o que fora negociado. À frente, o juiz, o promotor e o adjunto de Administração Penitenciária. Major Vaz sempre ao meu lado.

Pediram tempo para discutirem entre si o fim da rebelião. No final da tarde, reunimos a comissão para nova rodada de negociação. Serec entra na jogada, novamente. Roney Boy e "Diferente" haviam sumido. A princípio, pensei que estivessem sido exterminados também. Serec, falando com a costumeira tranquilidade, avisa que a pauta tinha sido negociada, mas a rebelião somente encerraria no final da manhã do dia seguinte.

Recuamos, insatisfeitos. De repente, três presos conseguem abrir o portão e saem em disparada, rumo ao pavilhão, onde o restante das autoridades aguardavam, juntamente com a tropa de choque. Todos correram. Eu me vi, como num flash, percebendo que estavam desarmados e eram apenas três. Pensei na possibilidade de que os rebelados disparassem contra eles e aí estávamos realmente em risco. Gritávamos pedindo calma. Eram apenas três presos marcados para morrer, que escapavam da fúria dos seus algozes, no chamado "cavalo doido".

O colchão da janela caiu. Vi um preso, por trâs da janela do pavilhão rebelde, de braços erguidos, como se tivesse pedindo ajuda. Havia outros presos atrás dele. Tive a ligeira impressão de que estavam o atingindo com chuçadas. A gritaria se generalizou.


Passado o susto, do portão entreaberto, jogaram as cabeças. Uma após a outra, no gramado. Três. Reiniciamos naquele mesmo momento as negociações, agora novamente com Roney Boy e Diferente, que resolveram aparecer. Pedi para ver um monitor. Ele veio. Estava bem. Falou comigo. Não demonstrava desespero. Pediu apenas para a polícia não invadir o pavilhão. Os líderes garantiram que nada aconteceria com os reféns, mas que não o liberariam naquele dia.

Eu pedi, então os corpos. Na comissão, havia quem não quisesse negociar corpos. Afinal, segundo um deles, já estavam mortos. Insisti com Roney Boy, que parecia me conhecer, me tratando pelo nome. Ele preferia falar com os advogados, Eduardo Calado e eu. Falamos na mesma língua um bom tempo. Pedimos tempo para falarmos em separado. Demorou um pouco, Roney Boy acenou para a liberação de nove corpos, em troca de comida para os monitores reféns. Insisti, lembrei que já começariam a feder, incomodando todo o pavilhão.

Pediram para nos afastar um pouco. O espetáculo dos horrores reiniciou. Do portão entreaberto, um após outro, os corpos eram colocados no chão, quase aos nossos pés. Os presos nos olhavam novamente, como se sentissem orgulho da própria obra. Esperavam reações de medo, de horror.

As pessoas me perguntam se eu senti medo, naquele momento. Não sei bem qual o sentimento. Um misto de nojo e pena, com certeza. O odor dos corpos, empilhados, como se fossem bonecos. Não estavam ainda erigecidos. Sangue, sangue nos corpos. Alguém confundiu um plástico, com um pênis decepado, Não era. Vi bem. Fui lá, para ter certeza. Toquei com a ponta do sapato, porque estava escurecendo.

Havia, sim, uma falange de três dedos, decepada, ao lado dos corpos, em frente ao portão. Um gesto desesperado de defesa, por certo. Havia facões no pavilhão, concluí, pensando. Daí as cabeças. O odor subiu, em lufadas contra nosso rosto.  Localizei o dono da falange. Estava em cima da pilha de corpos.

Nada me causou mais horror do que os corpos sem cabeça. Os ligamentos do pescoço, tendões, músculos e veias, expostos. Eles queriam o espetáculo, tiveram. A miséria humana não tem limites...

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