segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Filme "Hannah Arendt" reconstitui episódio crucial não só da vida da filósofa alemã, mas da história das ideias

Zero Hora

Os psicanalistas Lucia Serrano Pereira e Robson de Freitas Pereira apresentam uma reflexão sobre o longa-metragem

Filme "Hannah Arendt" reconstitui episódio crucial não só da vida da filósofa alemã, mas da história das ideias hannah arendt/Divulgação
Barbara Sukowa como Hannah Arendt no filme de mesmo nome dirigido por Margarethe von Trotta, em cartaz na Capital Foto: hannah arendt / Divulgação
LUCIA SERRANO PEREIRA E ROBSON DE FREITAS PEREIRA
Hannah Arendt, o filme, retoma desde as primeiras cenas temas cruciais ao nosso tempo, ao mostrar cinematograficamente os efeitos de seu texto publicado pela revista New Yorker entre fevereiro e março de 1963 e que se transformou no livro Eichmann em Jerusalém – Um Estudo sobre a Banalidade do Mal. A obra tornou-se um clássico na interpretação de nossa cultura. Não imediatamente, como a diretora Margarethe von Trotta nos revela.
Cena por cena, a produção evidencia com a linguagem do cinema o processo paradoxal que envolve a elaboração de uma obra profundamente mergulhada em seu tempo e, simultaneamente, crítica. Sua produção necessitou de certo "exílio", na solidão, na penumbra solitária em que Hannah, recostada no divã de seu apartamento, fuma, atravessa um tempo denso, escreve. Levados pelo olhar da câmera, acompanhamos o pensar, o tempo flutuante entre o que se decanta do que a personagem está testemunhando e a irrupção das lembranças que a fazem atualizar as experiências do horror e, ainda, algo do amor. Este percurso nos é mostrado com fineza ao longo da trama, pela criação da atriz Barbara Sukowa – enquanto ela se movimenta no cotidiano cozinhando, recolhendo os copos, olhando através da janela, junto ao evanescente do cigarro sempre ali, sempre apontando o enlaçamento, a sequência de uma matéria dura e volátil.
O diálogo de abertura é suficiente para que Margarethe von Trotta nos mostre o que é ser uma pensadora – no melhor sentido que a palavra possa ter, mesmo que isto implicasse ir contra a opinião de seus próximos, ou os ideais de seu grupo. Hannah conversa com a amiga e escritora Mary McCarthy sobre amor, poder e a dificuldade de aceitar as separações. E é com isto que ela vai ter que lidar no recorte que o filme situa. Como suportar a diferença, as descontinuidades, as contradições que se impõem como efeito de algo que testemunhou e que precisa compartilhar.
O roteiro enfoca o período em que Hannah acompanhou o julgamento de Eichmann, em Jerusalém, e seus efeitos inesperados. Ela vivia há 20 anos em Nova York e lecionava na New School of Social Research. Propôs ao editor da revista New Yorker fazer a cobertura do processo ainda sob o impacto da notícia do sequestro do coronel nazista pelo Mossad. Durante a produção do texto, abre-se a constelação da história e das memórias. Como a elaboração de sua relação amorosa com Heidegger, seu professor e, posteriormente, amante. Hannah não nega este paradoxo em sua vida e, para analisá-lo, tem que reconhecê-lo como algo impossível de ser escondido.
Para nós, que nascemos intelectualmente considerando as teses da banalidade do mal e dos crimes contra a humanidade algo já estabelecido – sempre perturbador, mas nomeado, situável, ainda que fale do insuportável – , o filme tem a propriedade de nos lançar na polêmica cruenta que se criou na época. Pois lá nada disto estava formulado, e Arendt foi injuriada, acusada de estar defendendo um criminoso nazista ao dizer que, para sua própria surpresa e ao contrário do senso comum, não estávamos diante de um monstro, mas de um burocrata eficiente que se recusava a pensar sobre seus atos, mesmo que eles resultassem na morte de milhões de pessoas. Isto o fazia perverso. O mais espantoso é que se tratava de um sujeito comum, medíocre, que nas circunstâncias adequadas à sua subjetividade transformava-se num criminoso. Humano, demasiado humano, parafraseando o filósofo. Hannah também foi acusada de trair as vítimas e o sionismo ao situar o mal em qualquer ser humano e criticar o colaboracionismo, mesmo que reconhecesse que sob aquelas condições ninguém poderia ser acusado por não haver reagido. Afinal, a lógica da "solução final" necessitava que suas vítimas estivessem impotentes antes mesmo de morrer. Com tais interpretações, perdeu colegas intelectuais e amigos que considerava sua família. Temeu a expulsão dos EUA, lugar que a acolheu, e que amou.
Tentando entender as reações extremadas, podemos especular: o Estado de Israel – recém 15 anos de fundação –, precisava se consolidar, as feridas da guerra estavam abertas. Curiosamente, e interessante para pensar os dias atuais, Hannah foi escutada pelos jovens. Talvez porque aquela geração que não tinha sofrido diretamente os horrores da guerra podia suportar a revelação de uma verdade que para muitos deveria ficar na sombra, recalcada.
Sigmund Freud, também pensador da cultura, já havia demonstrado que o bem e o mal fazem parte do homem, divisão sem remédio, há que se virar com ela. Reafirma isto a partir de sua produção dos anos 1920, em Além do Princípio do Prazer, com a noção de repetição e pulsão de morte, e mais adiante, em O Mal-Estar na Cultura. O homem não é um ser pacífico que só demonstra crueldade ou agressividade quando é atacado e trata de se defender. Para conseguir algum avanço de civilidade, a luta contra os próprios impulsos violentos é árdua. Mas atenção: suportar, se virar com essa divisão implica poder se responsabilizar. A excepcional análise que Arendt faz da subjetividade de Adolf Eichmann não o faz menos criminoso. Ao contrário, aproxima-se da contribuição de Freud: o homem "não é senhor em sua própria casa", está determinado pelo inconsciente; porém é responsável por seus atos. Disto não pode abrir mão, mesmo sob alegação de estar conforme aos ideais de sua época ou aos mandatos de seu grupo. Não pode se transformar num burocrata que abdica de pensar.
Giorgio Agamben, quando nos coloca a pergunta "o que é o contemporâneo?", vai aportar a ideia de que o contemporâneo vem – e ele escolhe a voz do poeta, esta que é transversal, desencaixada do olhar comum, desfocada – através daquele que, mantendo fixo o olhar na atualidade, pode perceber não as luzes, mas o escuro de seu tempo. Uma voz que, com a atividade e uma habilidade singular, consegue neutralizar as luzes ofuscantes que são vigentes em sua época, para tocar esta obscuridade. Hannah Arendt, desde seu campo, sem dúvida o fez. Marcada também por suas contradições, como o filme aponta. Mas com a "banalidade do mal", seu achado em Eichmann em Jerusalém, interpreta as trevas de seu tempo alcançando o nosso. E se acompanhamos a última cena, da imponente Manhattan vista do Brooklin, percebemos uma ponte, corajosa, na noite iluminada.

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