domingo, 2 de junho de 2013

Celso Sampaio


Conheci Celso já militando como assessor jurídico da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos, nos início da década de noventa. Vinha da turma de formandos do curso de direito na década anterior e ingressara na SMDH, a partir da experiência em um conhecido escritório de advocacia popular, denominado "Desacato", de onde emergiu politicamente o Deputado Domingos Dutra.
No movimento estudantil, era simpatizante do antigo Partido da Libertação Proletária (PLP), onde militavam Jeferson Portela, Marlon  Reis e Douglas de Melo (o primeiro Delegado, os dois últimos juízes). 
O "Desacato" foi a primeira experiência da advocacia popular no Estado, prestando assessoria para a grande maioria das entidades e movimentos sociais populares no Estado. Gradualmente, Celso foi se afastando do escritório, ao mesmo tempo em que mergulhava fundo na missão da SMDH, advogando para trabalhadores rurais em áreas de conflito pela posse da terra.
Nos idos de 1994, precisei do aval de um Celso desconfiado, para integrar a assessoria do Projeto de Assessoria  Jurídica (PAJ) da SMDH. Não sabíamos que nos transformaríamos em grandes amigos, ao longo da nossa trajetória, na mesma entidade.
Celso era um homem solitário e de poucos amigos, eu percebia. Naqueles anos, tinha um, por quem nutria especial devoção: Clausens Leopoldino, assessor jurídico da Cáritas Brasileira, e de um punhado de sindicatos de trabalhadores rurais. Era comum viajarem juntos, numa época em que as duas entidades tinham objetivos muito próximos. Clausens morreu ao vinte e seis anos, em acidente automobilístico. Celso mergulhou em profunda depressão. Jamais esqueceu essa perda.
Um outro amigo de Celso: o reverendo Francisco das Chagas, hoje pároco de Buriti. Era na companhia de Chagas que Celso preferia partilhar suas melhores alegrias. E muito partilhei dessas alegrias com os dois, pois nós três andávamos muito próximos, desde Clausens. Foi na paróquia de Tutóia, de volta de uma audiência em Araióses, que me confortei da notícia da morte de Clausens, ao lado de Chagas.



No episódio da "limpeza da estrela" (protesto pela influência do Grupo Sarney no PT).

Depois, perdemos juntos amigos e colegas comuns. Célia Linhares, Magno e Ivan, vítimas de câncer. Para Celso, o choque maior de todos, sem dúvida, foi a morte do pai, consequência de um tombo de bicicleta. A partir daí, vi seu definhar e envelhecer rapidamente, dentro de um período em que se aproxima cada vez mais de sua mãe.
Nos últimos anos, parecia se recompor do abalo emocional. Continuava trabalhando, e cultivando suas inúmeras manias, como a de lavar as mãos. Era excêntrico, não apenas por isso. Fazia questão de andar sempre alinhado e com os sapatos cuidadosamente engraxados.
Descobriu a doença no percurso de uma viajem, onde sentiu-se mal. A partir daí, a frequência do mal estar e a perda contínua e visível de peso denunciou o pior. Celso tinha um câncer no intestino, que viria a matá-lo, cerca de dez meses depois de sua descoberta.

 Em um seminário sobre quilombos, no município de Chapadinha.


 A geração de Celso tinha vivenciado período diferente da luta pela terra. Foi tempo de confrontos com mortes, de ambos os lados. A judicialização não era muito comum, embora ocorresse. Não se falava em direito alternativo, nem em positivismo de combate.  O advogado fazia o que era possível, sem grandes especulações teóricas, num ambiente onde a morte rondava. As entidades sindicais no campo não eram mediadoras das negociações por reforma agrária no Estado e sequer havia a legislação específica sobre essa política pública (a Lei 8.629 e a Lei Complementar n.º 76 são de 1993).


Em Santo Antônio dos Pretos, Codó.

Nos aproximamos inevitavelmente, por contraste de personalidade. A reserva de Celso conhecia limites na minha presença. Jamais deixei a tristeza invadir nossas conversas e gostava mesmo de arrancar gargalhadas do meu amigo.
No entanto, tive que segurar o choro, quando me deu a notícia da doença, numa pequena sala da SMDH, em volta de vários colegas de trabalho. Nos abraçamos e eu pude sentir nas lágrimas de Celso um pedido de ajuda.
Eu tentei, mas a história reservara destino diferente para ele.  Soube da notícia fatídica em Barreirinhas, num telefonema desesperado de Renata, da SMDH. Celso passara por uma intervenção cirúrgica no sábado e recebera visitas no dias seguintes. Conversava e estava otimista. Pretendia visitá-lo ao chegar de viagem. Cheguei com tempo apenas de ver meu amigo respirando artificialmente e inconsciente, na UTI do hospital. Queria abraçá-lo, mas não pude.
Na madrugada do dia seguinte, parti para um dos meus refúgios, no interior do Estado. Passara a noite procurando ar, cuja ausência confundia dor e asma, que carrego comigo, por provável herança genética da minha mãe.
Num determinado percurso da estrada, a tristeza me impediu de continuar dirigindo. Todas as lembranças de Celso vieram sobre mim, numa espécia de ciranda depressiva.
Antes de ontem, foi doloroso ouvir a Acauã, no começo da noite, próximo do local onde estava. Ela repetiu o canto na madrugada seguinte. Seria o começo do verão?
Hoje, ainda, próximo de São Luís, vi revoadas de papagaios, em direção ao mar. A excessiva liberdade que as aves sugerem me lembraram de Celso, que voou para longe de nós, deixando para trás o vácuo infinito.


Em Baracatatiua, Alcântara.

Um comentário:

Haroldo sabooia disse...

Caro Pedrosa,

Soube pelo tweet postado em seu blog da morte do Celso já no dia seguinte do enterro.O Marco Alberto tentou me avisar no feriado mas não me encontrou . Terrível . Sabia da sua doença mas acreditava francamente na sua recuperação.
O que mais me impressionava em Celso era o seu total despreendimento.Celso não tinha projetos pessoais ;transformou sua atividade profissional em exercício coletivo. Grande Celso !!!
Força a todos os seus
Haroldo Saboia