terça-feira, 7 de fevereiro de 2017

Segurança pública para humanos direitos?

Não é novidade que a onda conservadora que toma conta do país construa seus discursos de legitimação.

Também não é novidade que esses discursos sejam aceitos e difundidos amplamente pelos segmentos conservadores da sociedade.

O pensamento conservador elabora em todos os espaços da vida discursos de justificação ideológica. Tem seus inspiradores e seus adeptos. 

No campo da segurança pública, o discurso neofacista é especialmente perigoso. Ele tenta recriar a realidade em que pese um consenso universal acerca de determinados dados sobre a violência.

O pensamento conservador nessa área faz de conta que tais dados inexistem e continua sua cruzada insana lutando contra o óbvio. 

E encontra eco não apenas na falta de informação, mas na rejeição absoluta à informação. É uma espécie de negação da realidade. Nesse aspecto, o conservadorismo na fase aguda,  é autista.

A juventude neonazista nega a existência do holocausto. Os coxinhas negam a morte de Marisa, ex-primeira dama da República, esposa de Lula.

O discurso da direita em segurança pública tem sua caixa de ressonância não apenas na "bancada de bala", mas na voz de determinados operadores do sistema. 

Por ocasião do enterro da policial civil, Iran Santos, no cemitério Parque da Saudade, no bairro do Vinhais, ouvimos o discurso do Secretário de Segurança, uma gravação que se propagou em vários grupos de whatsapp.

Não retratou a fala de um militante do histórico PCdoB, partido que se considera de esquerda no Brasil. Lembrou o discurso do fanático da direita, Jair Bolsonaro, porque o populismo penal de direita e de esquerda são na verdade irmãos siameses.

A  nova onda conservadora parece que arrasta parte da esquerda nos seus discursos legitimadores.

Será impossível reformular a política de segurança, enquanto refém do discurso punitivista, na contramão da realidade.

O fundamento desse discurso pode ser identificado pelos seguintes lugares comuns:

a) que as leis são frouxas e não permitem que os "bandidos" permaneçam presos - desconhecendo que a estrutura prisional do país ruiu e nestas condições a prisão é a universidade do crime. Ou seja, se prender cada vez mais trouxesse segurança, nós já seríamos um dos países mais seguros do mundo, uma vez que já estamos quase alcançando a terceira população carcerária do planeta.

b) que a polícia prende e a justiça solta.

I -  desconhecendo que se a justiça mantivesse no cárcere todas as pessoas presas pela polícia o sistema penitenciário implodiria mais rapidamente. Desconhecendo ainda que quanto mais rígidas forem as leis mais tempo na prisão permanecerão os infratores, incrementando o recrutamento pelas facções num círculo vicioso que ameaça a segurança dos cidadão fora dos muros das cadeias.

II - reforça o descrédito no Poder Judiciário como instituição fundamental para assegurar garantias individuais do cidadão e alimenta a crença de que a polícia é a vingadora da sociedade, ocultando os mecanismos de funcionamento do próprio sistema de justiça, que não apenas concebem a participação de outras instituições,como também apresentam defeitos e falhas que remontam ao próprios procedimentos policiais.

c) que as entidades de direitos humanos se importam mais com a morte dos criminosos do que com a morte dos "cidadãos de bem" ou dos policiais.

I - desvirtuando o fato de que as entidades de direitos humanos denunciam a arbitrariedade policial e a violação dos direitos humanos no contexto onde as operações policiais implicam em ilegalidades, como o extermínio e letalidade fora dos parâmetros legais. Polícia cumprindo a lei e respeitando garantias individuais de TODOS é um pressuposto dos Estados de Direito. Até porque à polícia não é dado JULGAR e, portanto, a ela não se confere a última palavra na taxação de quem é ou não é culpado.

II - que as entidades da sociedade civil de direitos humanos não se confundem com órgãos estatais de defesa dos direitos humanos, tais como as comissões de direitos humanos e as secretarias de direitos humanos. O cidadão comum deve ser atendido pelo Estado nos seus direitos de vítimas da violência. O país alcança a cifra de quase 60 mil homicídios por ano, sem falar nos crimes de menor gravidade. Cada uma dessas vítimas tem o direito de provocar o Poder Judiciário para reivindicar as reparações previstas no ordenamento jurídico e existem as instituições estatais com a incumbência de fazer esse atendimento específico. Embora o senso comum diga o contrário, as entidades de direitos humanos não visitam os infratores da lei e nem dispõem de orçamento para visitar todas as vítimas da violência, mas podem orientar as que buscam apoio nesse sentido.

III - o monitoramento do sistema carcerário não se confunde com a assistência jurídica ao detento individualmente falando. Esse atendimento jurídico é levado a efeito por órgãos estatais, como a Defensoria Pública e, até determinado ponto, pelo próprio Ministério Público. O monitoramento das condições do sistema carcerário é efetuado pelas entidades de direitos humanos e tem em vista principalmente a defesa da sociedade, que tem o direito a um sistema penitenciário que não contribua para o agravamento da segurança pública, tornando os egressos do sistema mais violentos pela falência da tarefa de ressocialização, pelo recrutamento das facções e pelo tratamento cruel e degradante no ambiente prisional.

d) que policiais e defensores de direitos humanos são coisas diferentes

 I- quando na verdade não existe segurança pública sem respeito aos direitos humanos, sob pena de afronta à nossa própria Constituição Federal e à Lei vigente. Os policiais são tão responsáveis pelo cumprimento dos direitos humanos como qualquer outra entidade, com a agravante de que são verdadeiramente o "braço armado do Estado", enquanto que o cidadão comum é parte vulnerável dessa relação que implica a garantia da preservação da sua integridade física e psicológica nas abordagens e nos procedimentos policiais, porque, como já dito, a polícia não julga e existe o direito de presunção de inocência.

II- que as entidades de direitos humanos deveriam garantir assistência material aos familiares dos policiais mortos em confronto com a criminalidade, ocultando o fato de que as corporações policiais não são vulneráveis e, como "braço armado do Estado", dispõem de condições para exigir esses direitos do próprio aparelho do Estado, com muito maior eficiência do que as entidades da sociedade civil de direitos humanos. Essas entidades têm como foco a assistência e a orientação de pessoas e coletividades hipossuficientes e excluídas do sistema de justiça e de desenvolvimento.

f) bandido bom é bandido morto - desconsiderando que o sistema de justiça e de segurança é seletivo, voltado especialmente para a prisão da criminalidade de rua, praticada especialmente pelos mais pobres, negros, jovens e moradores de periferia, maiores vítimas da exclusão social e da desigualdade. Enquanto isso, esse mesmo sistema é falho para apurar e punir os crimes praticados pelas elites, na maioria dos casos fora do alcance dos procedimentos policiais, cuja estrutura não está voltada para investigação científica dos crimes de maior complexidade. Bandido morto é bandido pobre!

g) Direitos humanos para humanos direitos - o que é a mesma coisa que dizer que é a polícia é que define quem tem garantias fundamentais e quem não tem, desconhecendo que a clientela do sistema penal é selecionada majoritariamente entre os mais pobres, sendo estes comumente apontados como os responsáveis por excelência pela violência e pela criminalidade, numa lógica que obscurece os fatores sociais que condicionam a criminalização e o estereótipo criminal. Usurpando o lugar de JULGAR o infrator, a polícia não apenas descumpre a lei como também nega a universalidade dos direitos humanos, à luz dos quais garantias mínimas de preservação de integridade física e psíquica não significam em absoluto a desresponsabilização criminal.

Em suma, é de admirar que um gestor do sistema - que sabe de tudo isso (ou não?) - continue a disseminar lugares comuns que calham muito bem na boca dos leigos e dos desinformados.

E quando se constata que esse tipo de discurso encontra eco profundo numa ambiência coletiva formada especialmente por operadores do sistema - coroada por um rotundo amém cristão - é de fazer pasmar.

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