segunda-feira, 13 de fevereiro de 2017

A crise no Espírito Santo e a desmilitarização das PMs

Depois da crise no Espírito Santo, o debate sobre a reformulação da segurança pública voltou à tona com um componente regressivo.

Dentro da onda conservadora, surgem os argumentos destorcidos, como o que associa a desmilitarização ao fim das polícias, por exemplo.

Ao lado deles, seus desdobramentos lógicos, tais como os que proclamam a imprescindibilidade das PMs, única detentora do título de protetora da sociedade.

É verdade que as coisas não andam bem. O abandono foi tão grande que boa parte do que ocorre no ES não dependeria da simples troca de fardas.

E esse é um cuidado que temos que ter para debater um tema complexo. Nada salvaria uma segurança pública sem investimento do Estado.

A desmilitarização é um debate que se enfrenta mirando a cultura do militarismo como herança da ditadura. Ela, por razões históricas, se impôs sobre um segmento das nossas forças policiais em que pese a abertura democrática.

A transição não feita, porque essa cultura serve muito bem a alguns interesses próprios que negam a polícia a missão de defender a cidadania e garantir direitos.

A herança da ditadura militar sobre as PMs é tão profunda que estão debaixo dos mesmos regulamentos. Só que a polícia, por definição, não faz a guerra e não defende a soberania nacional, tarefa específica e exclusiva das forças armadas regulares.

Mas essa aproximação - que não é apenas unidade de regulamentos, obviamente - tem efeitos simbólicos e doutrinários, por exemplo a missão de combater o inimigo interno e externo. Esse nebuloso postulado para os dias atuais ainda funciona como a força moral que condiciona a relação da polícia com as manifestações de protesto típicas das democracias.

As elites brasileiras também sabem que sem a polícia ostensiva nesses moldes seria impossível remediar pela força o colapso da representação política. O policial uniformizado na esquina simboliza a base da relação entre o Estado e a sociedade, cuja face mais tangível funciona como vigilância e repressão sobre a população mais pobre, naturalizando o comportamento abusivo, violador, racista, preconceituoso e brutal.

Resta patente que o militarismo projeta seus efeitos deletérios não apenas para a sociedade, mas também para dentro da corporação. As regras que definem a relação entre a base da tropa e o oficialato não encontram mais respaldo na Constituição. A arbitrariedade e o poder absoluto dos comandos ferem garantias mínimas de qualquer cidadão, escondidas no manto da princípio da hierarquia, um dogma que não dialoga com o interesse público subjacente a qualquer norma de organização dos servidores públicos.

No caso da greve dos PMs do Espírito Santo nem a terminologia equivocada das manchetes do jornais denuncia a distorção institucionalizada pelo militarismo. Os PMs são proibidos de fazer greves e suas associações não podem participar de negociações coletivas de trabalho porque ao PM não é permitido também a organização sindical.

A mente conservadora pode alegar que se fosse permitido aos PMs o direito de greve seria pior, porque não sobraria nenhuma força policial para socorrer a sociedade nos momentos de crise. Mas o exemplo do Espírito Santo é o suficiente para desmontar a fragilidade desse argumento.

Os PMs disfarçam a greve em motim, em revolta ou em aquartelamento, puro e simples.  Via de regra, utilizam seus familiares como biombo para o impedimento ao trabalho. E isso tudo ocorre porque não há institucionalização para reger as relações de trabalho entre a PM e o governo de plantão.  No caso de greve, um regulamento resolveria as condições e os requisitos para que ocorresse a dinâmica das negociações, sob o império do ordenamento jurídico, sem prejuízo para a sociedade.

Sem tais normativas legais, as greves das PMs resvalam para o crime militar, única forma de enquadramento atualmente existente para reger as reivindicações por melhores condições de trabalho da PM - via de regras justas e legítimas.

Por isso mesmo é que setenta por cento dos soldados, cabos, sargentos e subtenentes querem a desmilitarização e a mudança desse modelo. Entre os oficiais, por razões óbvias, o placar é mais apertado: 54%.

Por último, é preciso esclarecer: a desmilitarização não se faz instantaneamente. Demanda tempo, planejamento e regras de transição para proteção de direitos.





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