quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Militarização da polícia vai na contramão dos direitos humanos - Por Marcela Reis

Abong

Índice de mortes de civis pela PM é alto e são raras as investigações de casos envolvendo agentes do Estado

Há um mês, o uso dos termos ‘auto de resistência’ e ‘resistência seguida de morte’ foram proibidos e, agora, em seus lugares deve ser usado ‘lesão corporal (ou morte) decorrente de oposição à intervenção policial’. A resolução conjunta do Conselho Superior de Polícia, órgão da Polícia Federal, e do Conselho Nacional dos Chefes da Polícia Civil foi baseada em decisão aprovada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos, em 2012. Na época, Organizações da Sociedade Civil (OSCs) reivindicaram o fim das expressões para garantir maior transparência nas investigações de lesões corporais e mortes ocorridas durante ações dos agentes do Estado.

Rafael Custódio, coordenador do programa de Justiça da ONG Conectas, explica que a modificação na nomenclatura, no entanto, não é suficiente e que sua efetividade é limitada. “A resolução determina que todo o emprego da força em que haja ofensa à integridade corporal ou à vida da vítima deverá gerar inquérito policial. Hoje, na maioria dos casos, há, no máximo, procedimento investigatório sigiloso nas corregedorias internas”. Ele acredita que só uma reestruturação completa das forças de segurança dará efetividade para a resolução.

Dados da ONG Fórum Brasileiro de Segurança Pública apontam que 3.022 pessoas foram mortas por policiais no Brasil em 2014, um total de oito vítimas por dia – o que representa um aumento de 37,2% em relação a 2013. Entre 2008 e 2013, foram contabilizadas 11.197 mortes em confrontos policiais em todo o País.

Em relação ao ano de 2015, só há dados da Secretaria de Segurança Pública de São Paulo: um total de 532 mortes em situação de confronto com a Polícia Militar (PM) foram registradas entre janeiro e novembro.

A PM é responsável pela preservação da ordem pública e policiamento ostensivo. Já a Polícia Civil é a polícia judiciária. A divisão do trabalho policial foi determinada durante a ditadura militar e se manteve na Constituição de 1988, que ainda está em vigor. Até hoje, são as Forças Armadas que fazem o contato direto com os/as cidadãos/ãs.

Petronella Boonen (Nelly), educadora do Centro de Direitos Humanos e Educação Popular de Campo Limpo e especialista em Justiça Restaurativa, argumenta que o contato dos/as agentes do Estado com a sociedade civil não deve ser de segurança, mas de ação social. “A PM é treinada para combater o inimigo, mas essa não deve ser a função da polícia, ela tem que ser treinada para os cidadãos, para a cocidadania”, defende.

Opinião reforçada por Custódio. “As forças militarizadas atuam na lógica de neutralização do inimigo. isso é inerente à sua natureza. A função constitucional de garantir a segurança pública exige a garantia dos direitos do cidadão em primeiro lugar.”

Desmilitarização

Um relatório (que faz parte do Exame Periódico Universal) divulgado pelo Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) em 2012 mostra que países-membros da Organização fazem um apelo ao Brasil por medidas mais eficazes para reduzir a incidência de execuções extrajudiciais e combater a atividade dos “esquadrões da morte”.

Custódio explica que desmilitarizar é conferir maior transparência à atuação da polícia. “A atividade policial deve ser objeto de controle externo por instituições independentes da polícia, tais como Ouvidorias e Corregedorias externas, com equipe própria e poder real de investigação, para que suspeitas de abuso possam ser apuradas sem conflitos de interesses.”

Em São Paulo, no ano de 2010, 25 policiais foram mortos/as, enquanto a polícia matou 510 civis (20,4 vezes mais). Já em 2011, esses números foram 28 contra 460 — uma média de 16,4 civis assassinados/as para cada agente do Estado. Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.

Menos de 10% dos crimes são solucionados no País, o que, segundo Custódio, prova que o modelo focado na repressão não contribui para a segurança pública.

Para o coordenador, o regime militar da polícia afeta seu trato com o/a cidadão/ã que deveria proteger, mas também as condições de trabalho dos/as próprios/as policiais. Em pesquisa de 2009, na opinião de 64.120 profissionais da segurança pública em todo o País, 70% são contrários/as ao modelo policial fixado pelo artigo 144 da Constituição.

A PEC 51/2013, de autoria do senador Lindbergh Farias (PT-RJ), está em trâmite no Congresso Nacional e um dos pontos da proposta é desmilitarizar a polícia. Além disso, prevê carreira única para os órgãos policiais, ou seja, as atuais Polícias Civil e Militar seriam dissolvidas em uma polícia só, que teria função ostensiva e faria investigação, tudo sem ser militarizada.

Racismo

A pesquisa Desigualdade racial e segurança pública em São Paulo: letalidade policial e prisões em flagrante, realizada em 2014 pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCAR), concluiu que o número de negros/as mortos/as em decorrência de ações policiais para cada 100 mil habitantes em São Paulo é três vezes maior que o registrado para a população branca.

Os dados mostram que as maiores vítimas das execuções policiais são os jovens negros: 61% das vítimas da polícia no Estado são negras, 97% são homens e 77% têm de 15 a 29 anos.

“A brutalidade com que a PM reprime protestos populares à frente das câmeras é uma mera dica de como age diuturnamente nas periferias, onde não há interesse midiático”, observa Custódio.

Nelly é testemunha de que os dados não são meras estatísticas: “Eu moro no Capão Redondo> Nos últimos anos, eu paro para olhar como as abordagens policiais são e testemunho a violência. Os abordados não são brancos, são negros; o inimigo é bem determinado.”

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