17 de fevereiro de 2016, 20h01
O Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quarta-feira (17/2) que é possível a execução da pena depois de condenação confirmada em segunda instância. A mudança na jurisprudência da corte, por 7 votos a 4, ocorreu no julgamento do HC 126.292, que discute a legitimidade de ato do TJ-SP que, ao negar provimento ao recurso exclusivo da defesa, determinou o início da execução da pena.
Antes houve, porém, várias tentativas de aniquilar o sagrado princípio constitucional da presunção de inocência.
Em 2011, o ministro Cezar Peluso apresentou a chamada PEC dos Recursos, com o objetivo de reduzir o número de recursos ao Supremo e ao STJ e dar mais agilidade às execuções de segunda instância. Na época, a OAB e vários juristas se manifestaram contra a proposta. A Ordem destacou que a PEC feria “de morte” o direito à ampla defesa e prejudicaria “o acesso da defesa de um cidadão a todos os graus de jurisdição".
O presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Antonio Cesar Bochonek, aliado ao juiz Sergio Moro — Projeto de Lei do Senado 402/2015 —, defendeu a proposta estarrecedora de “atribuir à sentença condenatória, para crimes graves em concreto, como grandes desvios de dinheiro público, uma eficácia imediata, independente do cabimento de recursos”.
Em seu voto nesta quarta, acompanhando o voto divergente proferido pela ministra Rosa Weber, o ministro Marco Aurélio lembrou a PEC e pontuou que a proposta não prosperou no Legislativo, mas que hoje no Supremo ela iria, lamentavelmente, prosperar. Votaram, ainda, contra a mudança da jurisprudência e, consequentemente, a favor da Constituição da República, da democracia e do Estado de Direito, o decano do STF, ministro Celso de Mello e o presidente da corte, ministro Ricardo Lewandowski.
O princípio da presunção de inocência remonta ao Direito Romano. Na Idade Média, o referido princípio foi afrontado em razão, principalmente, dos procedimentos inquisitoriais que vigoravam na época, chegando mesmo a ser invertido, já que a dúvida poderia levar a condenação. Contudo, o princípio da presunção de inocência foi consagrado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, refletindo uma nova concepção do Direito Processual Penal. Uma reação dos pensadores iluministas ao sistema persecutório que marcava o antigo regime, no qual a confissão — “rainha das provas” — era obtida por meio da tortura, de tormentos e da prisão.
Segundo Lugi Ferrajoli, o princípio da presunção de inocência é correlato do princípio da jurisdicionalidade (jurisdição necessária). Para Ferrajoli, “se é atividade necessária para obter a prova de que um sujeito cometeu um crime, desde que tal prova não tenha sido encontrada mediante um juízo regular, nenhum delito pode ser considerado cometido e nenhum sujeito pode ser reputado culpado nem submetido a pena”.
Mais adiante, o respeitável jurista italiano assevera que o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental de civilidade, “fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado”[1]. Na Itália, informa ainda Ferrajoli, com o advento do fascismo, a presunção de inocência entrou em profunda crise. Os freios contra os abusos da prisão preventiva deixaram de existir em nome da “segurança processual” e da “defesa social”, sendo considerada a mesma indispensável sempre que o crime tenha suscitado “clamor público”[2].
No Estado de Direito, é inadmissível, intolerável e inaceitável flexibilizar direitos e garantias individuais em nome do combate deste ou daquele delito. A investigação, a acusação e o julgamento devem ser orientados pelos princípios do devido processo legal, do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, do juiz imparcial, da proibição de prova ilícita, da proporcionalidade etc.
Para aqueles que ainda se satisfazem com a ilusão de que o Direito Penal é uma panaceia para todos os males da sociedade, inclusive a corrupção, de que o processo penal deve retroceder ao período medieval e que, ainda, acreditam em tantos outros mitos, vale a lição de Rubens R. R. Casara[3] de que “de todos os mitos que integram no universo processual penal, há um sempre presente em regimes autoritários que se apresentam como Estados de Direito: o de que o processo penal é instrumento de segurança pública/pacificação social. Esse mito surge em meio a um discurso de viés repressivo, no qual se identifica perspectiva utilitarista, reforçadora do caráter instrumental/formal do processo penal...”.
A decisão do STF atingiu o coração do princípio da presunção de inocência, mas, oxalá, permita que ele sobreviva como princípio, como princípio constitucional, como princípio do Estado Democrático de Direito. Estado Democrático de Direito, que não se satisfaz simplesmente com a democracia formal, mas sobretudo um verdadeiro Estado Democrático de Direito que efetivamente garanta os direitos fundamentais e onde prevaleça a maximização da liberdade e a minimização do poder punitivo estatal.
[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[2] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[3] CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
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