quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Os Narigadores de Palácios

Trajano Galvão de Carvalho foi poeta nascido na  velha cidade de Vitória do Mearim, no dia 19 de janeiro de 1830. Segundo Sílvio Romero, Trajano Galvão figura na “História da literatura brasileira”, no grupo dos 14 poetas românticos que pertencem à quarta fase desse estilo de época e são representativos do “sertanejismo dos poetas do Norte”.

Foi o primeiro a eleger o tema da raça negra e da escravidão em nossa poesia, dando voz efetiva aos escravos, antes mesmo de surgir o verbo veemente e o protesto inflamado de Castro Alves contra a escravidão.

Fiel à sua realidade histórica, Trajano Galvão entrou para a literatura brasileira cantando a dor e o sofrimento do negro escravo e também o heroísmo dos fugitivos aquilombados de Turiaçu, Guimarães, Alcântara e Viana, de onde sustentaram lutas acirradas contra as autoridades provinciais, pela posse da liberdade.

 Trajano morreu em 1864, depois de conquistar seu posto na Literatura Brasileira, aos 34 anos de idade, numa espécie de clausura espontânea, longe dos amigos, em sua fazenda no Alto Mearim, sem ter realizado talvez o grande sonho da sua vida: assistir a abolição da escravatura.

Da sua obra - assunto que motiva essa postagem - destaco o poema "O Nariz Palaciano", sugestão de leitura do amigo, professor e historiador, Wagner Cabral. Não por caso, esses versos servem como luva ao momento atual da política maranhense.

A expressão "narigar", usada amplamente no referido poema, era de uso corrente naquele século, sobretudo nos países de tradição germânica, retratando aquilo que denominamos hoje de "puxa-saquismo", palavra não menos feia e de forte simbolismo pornográfico.


Pois bem, "narigar" foi traduzido para os brasileiros por "cheirar a bunda", certamente. Em vários países está representado pelo gesto ousado de descer as calças e mostrar as nádegas, em tom jocoso e desrespeitador. Quando alguém faz isso, está a dizer que seu interlocutor está sendo convidado a beijar a sua bunda, cheirá-la, em sinal de subserviência e subordinação. Os americanos do norte dizem: "kiss my ass".

Trajano cunhou bem a expressão ao fazer paródia dos aduladores do palácio, realidade não muito distante de nós, onde o governante de plantão recebe elogios e aplausos pelo que não faz e deixou de fazer.

Os "narigudos" se espalham pelos corredores do palácio, nos órgãos públicos, nos comitês de imprensa e até nas redes sociais. O raio de influência da governança exige fidelidade de narizes pontiagudos, ávidos por narigadas sôfregas, no ritual da velha política que se repete travestida de mudança.

Fiquemos com Trajano Galvão, inspirado na musa de Gregório de Matos, por amor à poesia maranhense e lembrando de todos os "narigadores" que avistamos todos os dias pela nossa frente:

O Nariz Palaciano
Trajano Galvão


Festivais repicam os sinos,
Troa no Forte o canhão;
Correm velhos e meninos,
Ferve todo o Maranhão:
Vêm doutores, vêm soldados,
E os públicos empregados
Com seu ilustre inspetor.
— Porque acorre tanto povo?...
Chegou Presidente novo,
Nosso Deus, nosso Senhor...


Mineiro papa-torresmo,
Ou baiano caruru?...
Seja quem for, — é o mesmo,
Temos nariz, e eles...
Presidente maranhense?...
Que tolo há que em tal pense?!
Nem por graça isso se diz...
Índio ou chim, não nos desbanca;
Não há mais forte alavanca,
Do que um vermelho nariz.


Feliz três e quatro vezes
Quem rubro nariz sortiu!...
Nos políticos revezes
Que narigudo afundiu?
Diz errada voz inimiga,
Que impera só a barriga
Nos negócios do país;
O que a mente minha alcança,
É que, si o lucro é da pança,
O trabalho é do nariz.


Por isso, no grande entrudo
Que chamam governo cá,
Folga muito o narigudo
Quando nos chega um paxá:
Pencas agudas e rombas,
Mil elefantinas trombas,
Nesse dia tomam sol:
Qual torreia, qual se achata,
Qual na ponta faz batata,
Qual se enrosca e é caracol.


Bem como na culta França,
Cada qual seus animais
Leva cheio de esperança,
Aos concursos regionais:
Este, — um carneiro merino,
Aquele, — um touro turino.
Outro, — um cavalo andaluz!
Tal, quando o mandarim salta,
Um por um, a ilustre malta,
Seu rubro nariz conduz.


E, assim como então é de uso
A chusma da feira erguer
Aos céus o rumor confuso
Dos que vêm comprar, vender;
O anho bala, grunhe o cerdo,
Orneia o jumento lerdo,
Brioso nitre o corcel;
— Tal a turba narigada
Nos trombones a chegada
Festeja do bacharel.


Vem por entre esta harmonia,
O da Corte homem cortês,
Faz à esquerda cortesia,
À destra mesura fez...
Mil narizes sobem, descem;
(Não de pudor) enrubescem
No furor de cortejar.
Vibram talhos de montantes,
Dessas espadas gigantes
Que Roldão soube jogar...


Na câmara do seu palácio,
Vindo da Municipal,
Vê-se o ilustre pascácio
Como pisado num gral:
Curte consigo, nem geme,
Que um bom nariz é bom leme
Posto à popa... em bom lugar !...
Um por um os monstros olha,
Que o trabalho está na escolha...
Do que melhor lhe quadrar.


Por mais que se ponha em guarda,
Apesar de quanto diz,
Vista beca, ou vista farda,
Por força leva nariz...
Porque diz em consciência :
— “Pondo de parte a excelência,
Tu, Presidente, o que és?
Julgas-te inqualificável?
És um ente narigável
Da cabeça até os pés...”


Embora prudente e calmo.
Se um nariz de guarnições.
Puder suspender-te um palmo
Nestes tempos de eleições,
Vai tudo contigo abaixo;
Mais asneiras que um borracho,
Juro-te que hás de fazer...
Pois como do teu ofício
Terás pleno exercício
Se suspenso o hás de exercer ?...


Permita Vossa Excelência
Que aos sábios ponha a questão;
É caso de consciência,
É um quid juris ratão:
— “Nestes contratos ocultos,
Dizei vós, sábios consultos,
Que tendes as leis de cor,
Quem é que fica lesado?
— O mui nobre narigado,
Ou o vil narigador?...”


Maranhão -1856


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