segunda-feira, 13 de julho de 2015

A passagem da vingança para a matança


Diogo Cabral*, Luís Antônio Pedrosa* e Wagner Cabral** 

Os linchamentos, geralmente, são mais frequentes em tempos de tensão social e econômica. Essa modalidade de extermínio também sempre esteve relacionada a preconceitos e práticas discriminatórias que condicionaram as sociedades a aceitar esse tipo de violência como prática normal de "justiçamento popular". Não é à toa que seu formato atual foi dado no contexto da opressão racial existente ao longo da colonização dos EUA.

Assim como existe uma certa aura de perdão em torno do agente da lei que pratica extermínios, os linchamentos invocam justificativas. A mais alegada atualmente é o aumento da criminalidade e a fragilidade do sistema de segurança pública e de justiça.

A palavra tem origem vinculada ao nome do Coronel Charles Lynch ou ao Capitão Willian Lynch, ambos coetâneos ao século XVIII. A lei de Lynch, a partir de 1837, designou o ódio racial contra índios e negros e consolidou práticas que deram origem ao grupo racista Ku Klux Klan.

Assim como ocorreu no sul dos Estados Unidos, o linchamento tem como mola propulsora a desconfiança da lei e a reivindicação de anarquia, terreno fértil para a proliferação da barbárie.

No Brasil, ela se dirige basicamente à principal clientela do sistema penal: jovens, negros e pobres. O caldo de cultura para esse tipo de violência é alimentado por amplos setores da mídia policialesca, que vegeta na periferia da programação das grandes redes de televisão e rádio e, atualmente, até nos discursos religiosos fundamentalistas mais inflamados.

Tal como o preconceito, quando flagrado geralmente é negado. E nenhum desses agenciadores diriam claramente que defendem o linchamento. O incentivo se dá por vias indiretas, fortalecendo noções do senso comum cuja lógica descamba para o mesmo lugar de sempre: a violência.

Os lugares comuns frequentemente invocados por esses grupos formadores de opinião podem ser facilmente perceptíveis:

a) A polícia prende mas a justiça solta;
b) Adolescentes infratores não são punidos;
c) O ECA protege "menores" bandidos;
d) Bandido bom é bandido morto;
e) Direitos humanos só defende bandido.

Essa cantilena, repetida infinitas vezes e das mais variadas formas, suscita o espírito de desamparo e de vingança na população. Os elevados índices de criminalidade são analisados a partir das suas consequências exclusivamente, exigindo soluções cada vez mais repressivas.

Assim, esse discurso conservador vai evoluindo para soluções cada vez mais drásticas e irracionais, mobilizando adeptos, como num efeito dominó, em atitude de manada, culminando no retrocesso da representação política atual, como é exemplo a bancada da "bala", do "boi" e da "bíblia".

O linchamento é estimulado pela nova pauta reacionária instalada. Ela quer que cada cidadão possua uma arma para se defender dos ditos criminosos; ela quer a pena de morte e a prisão perpétua; ela quer a tortura institucionalizada; ela quer a redução da maioridade penal; ela quer mais presídios e mais polícia; ela quer a criminalização dos grupos sociais que reivindicam direitos; ela quer a volta da ditadura militar e a satanização das identidades sexuais e religiosas. 

Enfim, essa pauta quer muito mais. A cena do linchamento no bairro São Cristóvão, periferia de São Luís, é a cópia de todas as outras. Até no poste se assemelha, como versão atual do Pelourinho. 

A praça pública ou o palco do espetáculo sangrento são as redes sociais. Neste universo de compartilhamento de imagens, surgem dois homens, um morto, completamente desnudado e amarrado com cordas a um poste e outro espancado, também amarrado.

Do virtual para o real, a cena se desenrola em São Luís do Maranhão, uma das cidades mais violentas do Brasil, apontada como a 10a cidade mais violenta do mundo (pela ONG mexicana Seguridad, Justicia y Paz), capital de um Estado onde a desigualdade social detém indicadores alarmantes.

Aqui o (in)justiçamento possui a regularidade de uma vítima por mês, desde o ano de 2013, segundo levantamento da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).Trata-se de mais um caso de linchamento. Não por acaso, mais um jovem negro, suspeito da prática de assalto, trucidado por pauladas, garrafadas, facadas e enforcamento, em plena via pública.

De janeiro de 2013 até julho de 2015, houve 29 linchamentos com vítimas fatais, resultando em 30 mortes na Grande São Luís (houve um caso de linchamento duplo, de adolescentes de 16 e 17 anos). Além destes, houve pouco mais de uma dezena de linchamentos que não resultaram em morte. A média, portanto, é de um linchamento fatal por mês – medida da barbárie naturalizada no cotidiano urbano.

O mapa abaixo esclarece a incidência dos linchamentos na capital maranhense e ilustra esta forma de fazer justiça. Segundo os motivos atribuídos para os linchamentos com vítimas fatais, na parca cobertura da imprensa local ou nos sumários relatórios da SSP-MA, temos:

a)      4 casos envolvendo estupro ou violência doméstica;
b)      4 casos envolvendo assassinatos (ou tentativa de), inclusive um caso de linchamento de um policial (PM);
c)      4 casos em que não foi possível reunir informações suficientes para identificar os motivos;
d)      18 casos de linchamento de supostos assaltantes (60% do total).



O que impressiona não é somente a crueldade do linchamento de Cleidenilson Pereira da Silva, mas também a “invisibilidade” das outras 29 mortes por linchamento ocorridas nos últimos dois anos e meio, bem como a impunidade dos envolvidos e o silêncio do Estado. Nesse sentido, desde o início do ano, foi apresentada ao governo do Maranhão a proposta de criação de um Sistema Estadual de Informações sobre Violência e Segurança Pública, visando o monitoramento dos mais diversos tipos de violência, numa parceria Estado-Sociedade Civil, de modo a subsidiar a formulação de políticas públicas de prevenção social da violência e combate à impunidade. Continuamos aguardando a resposta do governo estadual...

George Sorel, em seu estudo no início do século XX, informa que a força bruta, o derramamento de sangue e a crueldade seriam interpretados usualmente como costumes de povos antigos, de sociedades atrasadas. José de Sousa Martins chama atenção para o fato de que no Brasil, no entanto, os linchamentos diferem profundamente do que a própria imprensa classifica como chacinas, praticadas por justiceiros ou, mesmo, policiais. Nos debates a respeito dos linchamentos, é possível perceber que muitos confundem a ação dos linchadores com a ação dos chamados justiceiros, apesar da enorme diferença entre as motivações de uns e outros. Boa parte das pesquisas sociológicas colocaram grande ênfase nas orientações positivas dos agentes da luta pela cidadania, dando ênfase ao estudo dos movimentos sociais, orientados por objetivos sociais evidentes e modernizadores, isto é, de algum modo politizados.
Evidentemente, estamos diante de um fenônemo novo e distinto, inserido dentro de um conjunto de práticas elaboradas pelo pensamento conservador, em tudo diferente das práticas de gestação da cidadania onde a chamada “justiça popular” poderia ter lugar.

Para os grupos vulnerabilizados, a conjuntura de fortalecimento do ódio e do preconceito leva a situações extremas, emergindo o linchamento como um dos mecanismos desse ideal de justiça, seletivo, emocional, permeado de rituais súbitos, irracional e refratário aos procedimentos formais dos julgamentos reconhecidos pelo Estado de Direito.

Jean Améry, sobrevivente do campo de concentração de Bergen-Belsen, em seus escritos testemunhais, nos esclarece que o prisioneiro do lager nazista denominado de Muselmann era um cadáver ambulante, um feixe de funções físicas já em agonia e que deveria ser excluído da consideração humana, ou, notadamente, conforme Primo Levi, em seu livro É isto um homem?, o Muselmann é o não-homem que habita e ameaça todo ser humano, a redução sinistra da vida humana à vida nua e que não pode nem ser chamado de vivo nem ter uma morte que mereça esse nome.

A passagem de uma vingança ordinária para a matança transforma os homens em objetos e os redefine e insere em dois grupos racionalizados, notadamente aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer. O primeiro, o grupo dos bons, dos intocáveis, que também são diferenciados internamente por representações classistas,  e o segundo, daqueles que representam o mal, a feiura, a imundice, os negros e pobres da periferia que cometem os delitos contra o patrimônio dos bons e que deixaram de ser homens e viraram feras. Estas redefinições e rearranjos não encontram guarida no ordenamento jurídico nacional, no entanto, constituem-se como regra padrão, como nomos que, contraditoriamente, são utilizadas em larga escala pelo próprio Estado, que, teoricamente, as repele. Assim, de acordo com Hannah Arendt, “grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se continuamos a pensar em nosso mundo em termos utilitários. [...] Os acontecimentos políticos, sociais e econômicos de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários para tornar os homens supérfluos”.

Decapitações, torturas, linchamentos e chacinas não podem ser explicados como uma fatalidade, mas sim caracterizados como um mecanismo eficaz de controle absoluto sobre a vida humana, induzido por ações/omissões estatais que, cada mais vez, golpeiam, como punhal, à traição, o corpo do inimigo declarado e marcam o fim e a ruína de qualquer ética da dignidade humana.

*   Advogados da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.
** Historiador, Prof. Ms. do Curso de História da UFMA, membro do Conselho Diretor da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e do Observatório da Violência.

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