Diogo Cabral*, Luís Antônio
Pedrosa* e Wagner Cabral**
Os linchamentos,
geralmente, são mais frequentes em tempos de tensão
social e econômica. Essa modalidade de extermínio
também sempre esteve relacionada a preconceitos
e práticas discriminatórias
que condicionaram as sociedades a aceitar esse tipo de violência
como prática normal de "justiçamento
popular". Não é à toa que seu formato atual foi dado no
contexto da opressão racial existente ao longo da colonização
dos EUA.
Assim como existe
uma certa aura de perdão em torno do agente da lei que pratica
extermínios, os linchamentos invocam
justificativas. A mais alegada atualmente é o aumento da
criminalidade e a fragilidade do sistema de segurança
pública e de justiça.
A palavra tem origem
vinculada ao nome do Coronel Charles Lynch ou ao Capitão
Willian Lynch, ambos coetâneos ao século XVIII. A lei de
Lynch, a partir de 1837, designou o ódio racial contra índios
e negros e consolidou práticas que deram origem ao grupo racista Ku
Klux Klan.
Assim como ocorreu
no sul dos Estados Unidos, o linchamento tem como mola propulsora a desconfiança
da lei e a reivindicação de anarquia, terreno fértil
para a proliferação da barbárie.
No Brasil, ela se
dirige basicamente à principal clientela do sistema penal:
jovens, negros e pobres. O caldo de cultura para esse tipo de violência
é alimentado
por amplos setores da mídia policialesca, que vegeta na periferia
da programação das grandes redes de televisão
e rádio e, atualmente, até nos
discursos religiosos fundamentalistas mais inflamados.
Tal como o
preconceito, quando flagrado geralmente é negado. E nenhum
desses agenciadores diriam claramente que defendem o linchamento. O incentivo
se dá por vias indiretas, fortalecendo noções
do senso comum cuja lógica descamba para o mesmo lugar de
sempre: a violência.
Os lugares comuns
frequentemente invocados por esses grupos formadores de opinião
podem ser facilmente perceptíveis:
a) A polícia prende mas a
justiça solta;
b) Adolescentes infratores não
são punidos;
c) O ECA protege "menores"
bandidos;
d) Bandido bom é bandido
morto;
e) Direitos humanos só defende
bandido.
Essa cantilena,
repetida infinitas vezes e das mais variadas formas, suscita o espírito
de desamparo e de vingança na população. Os elevados índices
de criminalidade são analisados a partir das suas consequências
exclusivamente, exigindo soluções cada vez mais repressivas.
Assim, esse discurso
conservador vai evoluindo para soluções cada vez mais drásticas
e irracionais, mobilizando adeptos, como num efeito dominó,
em atitude de manada, culminando no retrocesso da representação
política atual, como é exemplo
a bancada da "bala", do "boi" e da "bíblia".
O linchamento é estimulado
pela nova pauta reacionária instalada. Ela quer que cada cidadão
possua uma arma para se defender dos ditos criminosos; ela quer a pena de morte
e a prisão perpétua; ela quer a
tortura institucionalizada; ela quer a redução da maioridade
penal; ela quer mais presídios e mais polícia;
ela quer a criminalização dos grupos sociais que reivindicam
direitos; ela quer a volta da ditadura militar e a satanização
das identidades sexuais e religiosas.
Enfim, essa pauta
quer muito mais. A cena do linchamento no bairro São
Cristóvão, periferia de São
Luís, é a cópia
de todas as outras. Até no poste se assemelha, como versão
atual do Pelourinho.
A praça
pública ou o palco do espetáculo
sangrento são as redes sociais. Neste universo de
compartilhamento de imagens, surgem dois homens, um morto, completamente
desnudado e amarrado com cordas a um poste e outro espancado, também
amarrado.
Do virtual para o
real, a cena se desenrola em São Luís do Maranhão,
uma das cidades mais violentas do Brasil, apontada como a 10a cidade mais violenta do mundo (pela ONG
mexicana Seguridad, Justicia y Paz), capital
de um Estado onde a desigualdade social detém indicadores
alarmantes.
Aqui o “(in)justiçamento” possui
a regularidade de uma vítima por mês, desde o ano de
2013, segundo levantamento da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos (SMDH).Trata-se
de mais um caso de linchamento. Não por acaso, mais um
jovem negro, suspeito da prática de assalto, trucidado por pauladas,
garrafadas, facadas e enforcamento, em plena via pública.
De janeiro de 2013 até julho de 2015,
houve 29 linchamentos com vítimas fatais, resultando em 30 mortes na Grande São Luís (houve um caso
de linchamento duplo, de adolescentes de 16 e 17 anos). Além destes, houve pouco mais de uma dezena de linchamentos
que não resultaram em morte. A média, portanto, é de um linchamento fatal por mês – medida da barbárie naturalizada no
cotidiano urbano.
O mapa abaixo esclarece a incidência dos linchamentos na capital maranhense e ilustra esta forma de fazer ‘justiça’. Segundo os motivos atribuídos para os
linchamentos com vítimas fatais, na parca cobertura da imprensa local ou nos sumários
relatórios da SSP-MA, temos:
a) 4 casos envolvendo
estupro ou violência doméstica;
b) 4 casos envolvendo
assassinatos (ou tentativa de), inclusive um caso de linchamento de um policial
(PM);
c) 4 casos em que não foi possível reunir informações suficientes
para identificar os motivos;
d) 18 casos de
linchamento de supostos assaltantes (60% do total).
O que impressiona não é somente a
crueldade do linchamento de Cleidenilson Pereira da Silva, mas também a
“invisibilidade” das outras 29 mortes por linchamento ocorridas nos últimos
dois anos e meio, bem como a impunidade dos envolvidos e o silêncio do Estado.
Nesse sentido, desde o início do ano, foi apresentada ao governo do Maranhão a
proposta de criação de um Sistema
Estadual de Informações sobre Violência e Segurança Pública, visando o
monitoramento dos mais diversos tipos de violência, numa parceria
Estado-Sociedade Civil, de modo a subsidiar a formulação de políticas públicas
de prevenção social da violência e combate à impunidade. Continuamos aguardando
a resposta do governo estadual...
George Sorel, em seu
estudo no início do século XX, informa que
a força bruta, o derramamento de sangue e a
crueldade seriam interpretados usualmente como costumes de povos antigos, de
sociedades atrasadas. José de Sousa Martins chama atenção
para o fato de que no Brasil, no entanto, os linchamentos diferem profundamente
do que a própria imprensa classifica como chacinas,
praticadas por justiceiros ou, mesmo, policiais. Nos debates a respeito dos
linchamentos, é possível perceber que
muitos confundem a ação dos linchadores com a ação
dos chamados justiceiros, apesar da enorme diferença
entre as motivações de uns e outros. Boa parte das
pesquisas sociológicas colocaram grande ênfase
nas orientações positivas dos agentes da luta pela
cidadania, dando ênfase ao estudo dos movimentos sociais,
orientados por objetivos sociais evidentes e modernizadores, isto é,
de algum modo politizados.
Evidentemente, estamos diante de um fenônemo novo e distinto,
inserido dentro de um conjunto de práticas elaboradas pelo pensamento
conservador, em tudo diferente das práticas de gestação da cidadania onde a
chamada “justiça popular” poderia ter lugar.
Para os grupos
vulnerabilizados, a conjuntura de fortalecimento do ódio
e do preconceito leva a situações extremas, emergindo o linchamento como
um dos mecanismos desse ideal de justiça, seletivo,
emocional, permeado de rituais súbitos, irracional e
refratário aos procedimentos formais dos
julgamentos reconhecidos pelo Estado de Direito.
Jean Améry,
sobrevivente do campo de concentração de Bergen-Belsen,
em seus escritos testemunhais, nos esclarece que o prisioneiro do lager
nazista denominado de Muselmann era um cadáver ambulante, um
feixe de funções físicas já em
agonia e que deveria ser excluído da consideração
humana, ou, notadamente, conforme Primo Levi, em seu livro É isto um homem?, o Muselmann é o
não-homem que habita e ameaça
todo ser humano, a redução sinistra da vida humana à vida
nua e que não pode nem ser chamado de vivo nem ter uma
morte que mereça esse nome.
A passagem de uma vingança ordinária para a matança
transforma os homens em objetos e os redefine e insere em dois grupos
racionalizados, notadamente aqueles que devem viver e aqueles que devem morrer.
O primeiro, o grupo dos bons, dos intocáveis, que também são diferenciados
internamente por representações classistas, e o segundo, daqueles que
representam o mal, a feiura, a imundice, os negros e pobres da periferia que
cometem os delitos contra o patrimônio dos bons e que deixaram de ser homens
e viraram feras. Estas redefinições e rearranjos não encontram guarida no
ordenamento jurídico nacional, no entanto, constituem-se como regra padrão,
como nomos que, contraditoriamente, são utilizadas em larga escala pelo
próprio Estado, que, teoricamente, as repele. Assim, de acordo com Hannah
Arendt, “grandes massas de pessoas constantemente se tornam supérfluas se
continuamos a pensar em nosso mundo em termos utilitários. [...] Os
acontecimentos políticos, sociais e econômicos
de toda parte conspiram silenciosamente com os instrumentos totalitários para
tornar os homens supérfluos”.
Decapitações, torturas, linchamentos e chacinas não podem ser
explicados como uma fatalidade, mas sim caracterizados como um mecanismo eficaz
de controle absoluto sobre a vida humana, induzido por ações/omissões estatais
que, cada mais vez, golpeiam, como punhal, à traição, o corpo do inimigo
declarado e marcam o fim e a ruína de qualquer ética da dignidade humana.
*
Advogados da
Sociedade Maranhense de Direitos Humanos.
**
Historiador, Prof. Ms. do Curso de História da UFMA, membro do Conselho Diretor
da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e do Observatório da Violência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário