segunda-feira, 15 de junho de 2015

Somos todos velhas crianças: a ideologia da redução da maioridade penal por Gustavo Barbosa

“Somos velhas crianças, gente que nasce com oitenta anos”, sentenciou Antonio Gramsci, em artigo publicado em 19 de agosto de 1916 na coluna Sotto la Mole do jornal Avanti![1]. Ainda nas palavras do filósofo italiano, a natureza atávica de tal velhice decorreria do acúmulo de tradições que pesam sobre nós, exigindo um grande esforço para carregá-lo junto às convenções centenárias que recaem implacavelmente sobre os ombros das gerações mais recentes. “O esforço para superá-las deve sintetizar todos os esforços das gerações passadas”, prossegue Gramsci, observando que estas gerações “não hesitaram em combater por nós, em nos abrir um caminho menos povoado de turbulências, de obstáculos que nada são quando considerados um a um, mas que são formidáveis em seu conjunto”.

O ideário conservador, que congloba ainda hoje boa parte dos obstáculos mencionados por Gramsci, vem, aparentemente, ganhando cada vez mais adeptos tanto em nossa sociedade como no Congresso Nacional, dada a hipertrofia das bancadas ruralista, fundamentalista e do agronegócio na atual legislatura. O pacote de ideias reacionárias encampado por uma considerável parte de nossos deputados e deputadas vai desde a constitucionalização do financiamento empresarial de campanhas – passando pela flexibilização das hipóteses de contratação por terceirização e pela abrangência da isenção tributária a igrejas – à negação da cidadania LGBT. A cereja do bolo, tema da vez que se encontra às vésperas de ser votado, se trata da redução da maioridade penal, proposta que, a exemplo das demais, recebe a incorrigível chancela de Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados, acusado, por recente editorial da Folha de São Paulo, de transformar a casa em um verdadeiro picadeiro pseudo-religioso[2].

A redução da maioridade penal, como praticamente toda medida que dialoga com a intensificação dos mecanismos de vigilância e repressão, parte da já amplamente superada perspectiva contratualista, fonte do Direito Penal moderno que propugnava o livre-arbítrio como a única e inconteste origem de condutas tidas como criminosas. Émile Durkheim, pai da sociologia moderna, já frustrava os contratualistas ao asseverar que o crime se trata de um fato social, e as causas de um fato social não podem ser encontradas em circunstâncias individuais[3].

Ainda que superado racional, acadêmica, empírica, técnica, histórica, estatística e até literariamente, o paradigma liberal do contratualismo ainda parece seguir hegemônico em sua declarada ignorância quanto às circunstâncias sócio-econômicas e históricas do crime. Não lhes interessa se Beccaria – cujos escritos são o alicerce do Direito Penal moderno – há 250 anos já concluira que é preferível prevenir os delitos a ter de puni-los, devendo todo legislador sábio procurar impedir o mal a repará-lo, muito menos se todos os índices apontam para o retumbante fracasso da atual política criminal voltada ao encarceramento em massa, representação do mecanismo de garantia das desigualdades da relação capital/trabalho assalariado, como bem ensina o professor Juarez Cirino dos Santos, em recente artigo publicado aqui no Justificando[4].

Da mesma forma, pouco interessa se inexistem experiências práticas onde a redução da maioridade penal apontou para a diminuição dos índices de criminalidade – havendo países, inclusive, que reverteram a legislação nesse sentido ao perceberem sua franca ineficácia, a exemplo da Colômbia e da Costa Rica[5]. O que realmente interessa com a intensificação das medidas repressivas, segundo Durkheim, é a satisfação da consciência comum, lasciva por punição e reprodutora de um incontrolável fetiche por penas rigorosas, muitas das quais desumanas e ao arrepio da lei, ainda que na prática não surtam nenhum resultado que não a contemplação pessoal pelo sofrimento alheio.

O resultado é o que assistimos diariamente: a irracional eleição de soluções particulares e egoísticas (pena de morte, endurecimento das penas, trabalhos forçados, redução da maioridade, etc) baseadas unicamente nessa necessidade de satisfação pessoal para lidar com um problema de ordem pública e (super)estrutural, relacionado intrinsecamente à própria lógica das relações de produção[6], cuja solução passa longe de qualquer medida que não objetive dar novos e diversos rumos à vigente política encarceradora e repressiva de nosso sistema penal.

Assim, por qual razão o fetiche punitivista permanece forte mesmo diante da miríade de dados, informações e pesquisas que atestam o caráter disfuncional das medidas que nele se baseiam, a exemplo de relatório da ONU publicado em maio deste ano, cuja categórica conclusão é a de que a redução da maioridade penal agrava contextos de vulnerabilidade e reforça a discriminação racial e social.[7]

O recrudescimento das penas e a explosão da população carcerária, a partir da década de 80 – modelo de política criminal que permanece em vigor até os dias atuais – são expressões de um paradigma político-econômico que deslegitima a intervenção do Estado na economia como fator fundamental para a redução das desigualdades sociais, principal motriz da criminalidade. Tal modelo, legitimado pela superficial opinião hegemônica de que quanto mais duras as penas e mais gente encarcerada menor o número de crimes, não vê outra maneira de lidar com tais desigualdades senão por meio do patrulhamento policial ostensivo, da ameaça constante do encarceramento e, sobretudo, do isolamento em massa de populações tradicionalmente vulneráveis vítimas do estigma da marginalização.

Ainda, para esta mesma perspectiva hegemônica liberal-individualista, tais populações se encontrariam em situação de vulnerabilidade por “geração espontânea”, termo utilizado por Marx e Engels ao ironizarem a cosmovisão idealista – e histórica – de Feuerbach em A Ideologia Alemã. Estariam ali, portanto, tão somente em razão delas próprias, de sua preguiça ou esforço próprio, não compreendendo que o mundo sensível, palpável, “não é um objeto dado imediatamente, eterno por toda a eternidade, um objeto sempre igual a si mesmo, mas sim o produto da história e do estado da sociedade, na verdade, no sentido de que é um produto histórico, resultado da atividade de várias gerações (…)”[8].

Ademais, uma vez que o combate à desigualdade social implica diretamente em políticas de (re)distribuição de renda, justificando, nas palavras de Bertrand Russell[9], a interferência do Estado na privação de confortos e privilégios de uma minoria dirigente a fim de suprir as necessidades fundamentais de uma maioria solapada de sua dignidade e carente de condições materiais mínimas para o exercício de sua liberdade, não assusta que boa parte da sociedade – que não faz parte desta classe dirigente – se coloque de forma favorável a iniciativas tais quais a redução da maioridade penal, uma vez que, voltando a Marx e Engels, “as ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes; (…) A classe que dispõe de meios de produção material dispõe também dos meios de produção espiritual, o que faz com que sejam a ela submetidas, ao mesmo tempo, as ideias daqueles que não possuem os meios de produção espiritual[10]”.

Eduardo Galeano, em De Pernas pro Ar, observa que o racismo, assim como o machismo, justifica-se pela herança genética: não são os pobres uns fodidos por culpa da história, e sim por obra da biologia. É a “geração espontânea” de Marx e Engels, visto que carregam no sangue seu destino e, pior, os cromossomos da inferioridade que, por sua vez, costumam se misturar com as perversas sementes do crime.

Eis o discurso hegemônico reproduzido pelo arqueológico Cunha e por uma sociedade esquizofrênica que em regra acolhe, acriticamente, uma racionalidade que corresponde a interesses que se encontram a léguas de representar a vontade geral definida por Rousseau como aquela que, ao contrário da mera somatória de interesses individuais (vontade de todos), tem como meta uma sociedade verdadeiramente solidária e igualitária.

No caso da redução da maioridade penal, Cunha e sua obscurantista turba de asseclas vem se arvorando no fato de terem a maioria da opinião pública ao seu lado, mesmo que esta maioria não perceba o tiro no pé que representa tal medida. A falta de sentido dessa dominação cultural é denunciada por Slavoj Zizek[11] quando coloca que “nas sociedades contemporâneas democráticas ou totalitárias… o distanciamento cínico, o riso e a ironia são, por assim dizer, parte do jogo. A ideologia dominante não é para ser levada a sério ou tomada ao pé da letra”. O embate é realmente desigual. Mas qual deles não é?

Gustavo Henrique Freire Barbosa, advogado, membro da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/RN, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), integrante do Instituto de Pesquisa e Estudos em Justiça e Cidadania (IPEJUC), mestrando em Constituição e Garantia de Direitos pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
[1] GRAMSCI, Antonio. Escritos Políticos, p. 67. 2004, Civilização Brasileira.
[2] http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/222659-submissao.shtml
[3] Durkheim, Émile, Les Régles de la Méthode Sociologique, disponível em http://classiques.uqac.ca/classiques/Durkheim_emile/regles_methode/Durkheim_regles_methode.pdf
[4] http://justificando.com/2015/05/28/memorial-criminologico-ou-a-necessidade-de-retomar-marx/
[5]http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2015/04/02/internas_polbraeco,477979/maioridade-penal-acima-dos-18-e-adotada-em-mais-de-50-paises-diz-unic.shtml
[6] ZAFFARONI, Eugênio. Em busca das penas perdidas – A perda de legitimidade do sistema penal. 2006, p.58. Revan.
[7] http://nacoesunidas.org/nacoes-unidas-no-brasil-se-posicionam-contra-a-reducao-da-maioridade-penal/
[8] MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. 2010, p. 74. Martin Claret.
[9] RUSSELL, Bertrand. Ensaios Céticos. 2010, p. 162. L&PM Pocket.
[10] Idem, p. 78.
[11] ZIZEK, Slavoj. El sublime objeto de la ideología, 1992, Pág. 65. Siglo XXI.

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