sábado, 8 de dezembro de 2012

30 anos depois: ''Os meus companheiros jogados do avião ao mar''

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Eu me perguntava o que faria quando me encontrasse diante dos responsáveis do meu sequestro e do desaparecimento de milhares de companheiros. Falar no tribunal não é como debater na TV.

O relato é do diretor e roteirista chileno-italiano Marco Bechis, em artigo publicado no jornal Corriere della Sera, 05-12-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Jorge Rafael Videla (foto), chefe da junta militar argentina de 1976 a 1981, completou 87 anos. Ele está em prisão perpétua, nada de prisão domiciliar. A sua vida se consome atrás das grades, uma cama de solteiro, um crucifixo na parede.

Alguns meses atrás, ele confessou a um jornalista em off que foi o responsável pela morte de ao menos 7.000 opositores, reconheceu o furto de muitos recém-nascidos arrancados das suas mães após o parto e acusou a classe empresarial de tê-lo incitado ao massacre.

"Tomamos a decisão de fazê-los desaparecer para não provocar protestos dentro e fora do país. Todo desaparecimento pode ser entendido como um mascaramento, a dissimulação de uma morte". Mas não diz nada mais.

Nenhum ex-militar deu informações concretas: locais de sepultura, listas de vítimas e de recém-nascidos hoje já na casa dos 30 anos que as Avós da Praça de Maio ainda estão procurando. Depois de 35 anos, a violência desse silêncio se tornou ensurdecedor. Mas Videla está na prisão, enquanto Pinochet morreu na cama da sua casa. O fenômeno argentino dos processos e das condenações pelos crimes da ditadura é único na América do Sul.

O enorme processo da Esma [Escola de Mecânica da Armada] começou há uma semana em Buenos Aires, com a leitura dos 789 nomes das vítimas, com indicação dos tormentos sofridos. Todos os dias, 67 ex-militares chegam ao tribunal algemados. Quatro ambulâncias estacionam do lado de fora para quem se sente mal. Há muito a ser feito, porque os acusados simulam mal-estares para adiar os debates.

Na Esma, inventaram os voos da morte. Hoje, ela é um monumento histórico e sede de organizações dos direitos humanos, lugar de peregrinação internacional como o Museu do Holocausto, em Berlim, Treblinka e Birkenau. O almirante Massera (conhecido como Comandante Zero, membro da P2) era o chefe. Não se devia repetir os erros chilenos com os estádios lotados e o repúdio internacional. Era preciso fazer as coisas direito, em silêncio.

Havia uma Copa do Mundo de 1978 ao dobrar a esquina. Com regularidade semanal, os aviões Skyvan partiam do aeroporto perto do estádio do River Plate. Depois de algumas horas de voo, os pilotos davam o sinal, a porta se abria, e os policiais envolvidos empurravam os corpos adormecidos em mar aberto.

Entre os 67 réus, está Julio Poch, um daqueles pilotos. Outro dia, ele mostrava às câmeras um cartaz que dizia: "As acusações que me dirigem são falsas", estava escrito em espanhol e em holandês. Poch trabalhou nas linhas aéreas Transavia até ser preso há três anos.

Em 2007, a Corte de Justiça decretou a inconstitucionalidade das leis de anistia do governo Menem, e hoje os militares estão todos sob processo. Haviam sido 18 anos de pesadelo para os parentes das vítimas que encontravam os torturadores pelas ruas. A impunidade que se respirava era insuportável. Eu disse a mim mesmo que não conseguiria mais viver nesse país.

Em julho de 2010, o Tribunal me convidou para testemunhar e decidi ir. Era a causa ABO (Atlético, Banco, Olimpo), três outros famigerados locais de tortura. Funcionavam mais de 300. No voo de Milão-Buenos Aires, eu me perguntava o que faria quando me encontrasse diante dos responsáveis do meu sequestro e do desaparecimento de milhares de companheiros. Falar no tribunal não é como debater na TV.

E o dia chegou. Acomodei-me no banco das testemunhas, passando na frente dos 16 réus sem olhá-los nem por um instante. Eu jurei dizer a verdade e, antes que o Ministério Público fizesse a primeira pergunta, eu o interrompi e, dirigindo-me à senhora presidente do tribunal, pedi para ser posto em pé de igualdade: esses senhores talvez poderiam me reconhecer – mesmo que o tempo passe para todos –, mas eu certamente não poderia fazê-lo, porque, no Club Atlético, estávamos todos vendados.

Então, eu exigi que esses senhores me fossem identificados por nome. A presidente perguntou às partes se tinham algo contra, as partes discutiram e consentiram com essa minha extravagante demanda. Naquele momento, eu tirei do meu bolso uma folha de papel e uma Bic. A senhora juíza começou a chamar pelo nome cada um dos 16 imputados. Eu os olhava severamente e transcrevia os seus nomes. Lia nos seus rostos o terror por aquele jogo invertido: tinham na sua frente um ex-prisioneiro que os estava anotando.

Depois, em um silêncio teatral, dobrei o papel e enfiei-o no bolso. Naquele momento, eu me sentia seguro, não temia mais nada. Foi a primeira e última vez que os olhei no rosto. O Ministério Público me fez a primeira pergunta e, por uma hora e quinze minutos, eu contei a minha história.

O golpe foi preparado com bastante antecedência. Era preciso um pouco de ordem, porque o nível de sindicalização estava fora do comum para um país sul-americano. O peronismo, com uma greve, era capaz de paralisar o país. A desarticulação sindical era fundamental para a expansão dos negócios e dos investimentos estrangeiros. Os italianos estavam na primeira fila.

Ainda em 1975, um ano antes do golpe, houve um acordo tácito entre a hierarquia militar, o mundo empresarial e grande parte da hierarquia eclesiástica. A coesão era tal que a diplomacia se adequava. Em plena ditadura, na Embaixada Italiana de Buenos Aires, foram instaladas portas giratórias de acesso comandadas remotamente, como as que usamos para entrar no banco, para evitar ter que se encarregar de refugiados políticos. A ordem de Roma era: "Nada de asilo político".

A ditadura acabou em 1983 com as primeiras eleições livres. Até hoje, são 30 anos de democracia, o período mais longo sem golpes de Estado da curta história argentina. A democracia precisa de tempo. Voltei depois do exílio em 1984. Lembro a impressão de um país chocado, ainda cheio de medo, como quando nos despertamos no avião e acreditamos, por um momento, que estamos na nossa cama.

Abracei novamente os companheiros sobreviventes e me reapropriei lentamente da cidade. Também fui conhecer Jorge Luis Borges. A sua sala despojada, uma mesa, um par de divãs e uma Encyclopaedia Britannica em um pequeno móvel sob medida, nenhum quadro nas paredes. Era o apartamento de um homem cego. Eu pedi para lhe encontrar para falar-lhe sobre um projeto meu de um filme retirado de três contos seus. Na noite anterior, a sua esposa, Maria Kodama, o havia lido para ele. Mas a conversa com ele terminou logo, porque ele me disse que não estava interessado.

No meu eventual filme, eu queria que se visse a sua Biblioteca de Babel em uma rede telemática tipo internet que ainda não existia. "Eu não sei como é feito um televisor, e você me fala de máquinas estranhas!", ele me repreendeu. Mudamos forçosamente de discurso e, então, lhe contei sobre a minha experiência no Club Atlético.

Perguntei-lhe o que ele pensava daquela sofisticada invenção argentina que era o "desaparecido". Queria ouvi-lo falar da história recente do nosso país. E depois de uma pausa reflexiva, mas muito rápida, escondido sob as suas sobrancelhas muito brancas e grossas, com a habilidade instintiva de uma criança que sabe mudar de jogo, deslocou o discurso para outro país, em outra época, e começou a falar da secessão norte-americana, da Guerra Civil, com o seu milhão de mortos; ele sabia tudo dos nortistas e dos sulistas. Eu me dizia: "Essa sim é que foi uma verdadeira guerra".

Quando finalmente me despedi, não lhe dei a mão. Pensei, justificando-me: "A um cego não se dá a mão".

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