sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

EXTREMOS DO SISTEMA PRISIONAL MARANHENSE OU A ESPERANÇA QUE VEM DE PEDREIRAS/MA



A crise do sistema prisional brasileiro revela a face da crise mundial do instituto da pena de prisão. Ao lado disso, a crise particular maranhense agrava-se com suas circunstâncias locais, decorrentes da ineficiência histórica do sistema de justiça e segurança.
O recente mutirão, promovido pelo CNJ, em parceria com o Tribunal de Justiça, revelou apenas uma parte do desastre de gestão do sistema. Se o Poder Executivo falha, o Judiciário não o deixa sozinho.
O Executivo é responsável pelo déficit de agentes penitenciários, pela inexistência de vagas, pela inexistência de um programa mínimo de ressocialização e pelo tratamento indigno aos presos (o atendimento médico é precário, não há trabalho, não há estudo, há superlotação das celas, a comida é de péssima qualidade e ainda há a tortura e o abuso).
Mas o Poder Judiciário é o principal responsável pela morosidade dos processos e isso tem um preço: superlotação, desespero, motins e rebeliões, crise de gestão do sistema. Podemos dizer que com a superlotação não é possível empreender qualquer programa de ressocialização. Não é possível se fazer cumprir a disciplina. Não é possível conter fugas.
Aparentemente, o problema não tem solução. Ele se repete na maioria das unidades prisionais do país. No Maranhão, essa crise está presente em doze das 13 unidades prisionais do Estado. Até o recente e moderno Centro de Detenção Provisória (CDP) de Pedrinha já mergulhou na crise. Suas celas foram projetadas para 8 presos e hoje convivem nelas, em média, treze.
Um fato, no entanto, chama a atenção das entidades de defesa dos direitos humanos e até do CNJ: no Maranhão existe uma experiência em curso, de perfil diferente desse caos.
O Centro de Reintegração Social de Pedreiras/MA inaugurou uma gestão sob o sistema APAC (Associação de Proteção e Assistência aos Condenados), experiência que objetiva uma atuação mais efetiva na humanização do sistema carcerário local, presente também em restritas situações no Estado de Minas Gerais e São Paulo.
Há vários anos constatávamos o esforço do juiz da Comarca local, Douglas Martins, para implantar a APAC em Pedreiras. Promoveu intercâmbios, convenceu autoridades judiciárias e administrativas sobre as vantagens do novo sistema. Ano passado, participou de uma audiência pública, na Assembléia Legislativa, em que o Tribunal de Justiça anunciou sua adesão ao sistema APAC. Os ativistas da APAC de Pedreiras conseguiram celebrar um convênio com a SESEC e, a partir dele, iniciaram a experiência pioneira. Pouco tempo depois, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos fez inspeção no CRS de Pedreiras, no dia 16 de fevereiro. Apresento aqui o que foi possível constatar:
01. A unidade prisional encontra-se totalmente saneada, com a manutenção do prédio em excelentes condições (não há paredes sujas, existem jardins na entrada, todas as dependências são limpas e arejadas);
02. Existe um programa de ressocialização em andamento. Todos os presos estudam (as salas de aulas estavam em pleno funcionamento) ou estudam e trabalham (existem oficinas de artesanato e de música, os presos trabalham em canteiros de hortaliças e na manutenção do prédio, há um projeto de ampliação do plantio de hortaliças e de construção de taques para criação de peixes);
03. Existe um intercâmbio com a sociedade local (na aquisição de produtos da horta, do artesanato e na doação de insumos, na prestação de serviços de orientação por técnicos da Aged, na gestão da unidade etc.)
04. Existem apenas dois agentes penitenciários no local para uma população carcerária estimada em cerca de 120 presos. Cerca de 60 deles, são provisórios. Embora tenha havido fugas, no ano passado, a permanência de um número exíguo de agentes reforça o princípio de ressocialização e não o da repressão.
05. A presença de presos provisórios nega os princípios do sistema APAC, mas a SESEC não apresenta uma alternativa para o problema.
06. As fugas ocorridas referem-se sempre aos presos provisórios, que ainda carregam consigo a ânsia de fuga.
07. Pela quantidade ínfima de agentes, as situações de fugas é muito inferior aos das outras unidades prisionais.
08. Não há relatos de violências (nem entre os presos e nem entre presos e agentes públicos).
09. O atendimento médico funciona e existe um programa individualizado neste aspecto. Existem profissionais da área de saúde, incluindo odontólogos. Os consultórios funcionam dentro da unidade prisional e não deixam nada a desejar, em matéria de organização e higiene.
10. Os banheiros são limpos, todos sem exceção. Os banheiros da unidade prisional até mais limpos do que os da administração.
11. Não há superlotação. As celas são limpas, não há papéis, fotografias ou pichações nas paredes. Em média, existem apenas três presos por cela.
12. Os presos circulam livremente pelos corredores e dependências do presídio. Há regras de boas maneiras em vigor. Geralmente as celas estão abertas, durante o dia.
13. A cozinha é organizada e higiênica. As prateleiras acondicionam corretamente os alimentos e existem congeladores, tela para contenção de insetos. Presos trabalham também na cozinha.
14. A alimentação é boa. Os presos não reclamam. Existe um projeto para transformar uma dependência do presídio em sistema self service, para os presos, para permitir maior variação no cardápio.
15. Nenhum preso quer sair de Pedreiras/MA para outro presídio. O testemunho dos que já passaram por outras unidades prisionais assusta a todos.
16. Não percebemos o tradicional fedor dos presídios, em nenhuma dependência.
17. Os profissionais estão motivados, limpos e tratam os presos com dignidade. Existe credibilidade e confiança dos presos, em relação aos mesmos. Quando da visita, estavam há quatro meses sem receber dinheiro, por conta de um atraso no repasse do convênio com a SESEC.
18. Existe ativismo e boa vontade entre os profissionais do presídio.

Em relação ao funcionamento do sistema de Justiça local, também fizemos constatações:

a) O juiz da Comarca exerce influência positiva sobre o sistema APAC local, sempre estando presente no cotidiano da gestão da unidade prisional;
b) A vara criminal, presidida por esse mesmo juiz, possui um sistema próprio de gestão e de capacitação dos servidores, de modo que os processos não ficam paralisados;
c) Os presos, oriundos de processos criminais da Comarca de Pedreiras/MA vêem seus processos constantemente em andamento e é comum o anúncio de algum benefício concedido, em reuniões públicas.
d) Há uma diferença de tratamento em relação aos presos de outras Comarcas, visto que, nesses casos, os benefícios e direitos são constantemente negados.
e) Os juízes das outras Comarcas não visitam a unidade prisional de Pedreiras/MA e é fato comum o preso nunca ter visto o juiz da Comarca de onde veio. O mesmo ocorre com os Promotores de Justiça.
f) Em várias situações foi possível constatar que o juiz da Comarca de Pedreiras estabelece constantes contatos com os juízes das outras Comarcas, para que haja o andamento dos processos que não lhe são afetos.
g) O juiz da Comarca estabelece mediações positivas com o CAPS de Pedreiras, onde o atendimento de usuários e dependentes funciona como válvula de contenção de situações que poderiam desembocar em novas medidas prisionais.

Do que foi constatado na inspeção, pudemos extrair as seguintes conclusões:

a) A crise do sistema prisional no Maranhão é relativa e decorre do péssimo funcionamento das instituições do sistema de justiça e segurança;
b) A APAC de Pedreiras demonstra cabalmente que é possível se fazer a gestão eficiente de unidades prisionais, inclusive com poucos recursos;
c) O judiciário exerce um papel decisivo na articulação da sociedade local e na gestão do sistema prisional, mas o perfil majoritário dos juízes impede a reprodução de experiências positivas.
d) O Poder Executivo desconhece e quem sabe até nega a experiência de Pedreiras/MA, que permanece relegada à obscuridade, quando deveria ser um agente propulsor de novas experiências em outras unidades prisionais do Estado.
e) O sistema APAC representa uma vantagem no tratamento da questão prisional até mesmo em relação a presos provisórios.

De posse de tais informações, espero que esse relato transponha os muros da indiferença. Cansados de tanto ver o caos e a desgraça, fomos acariciados por uma luz tênue de esperança. Faz-se urgente contaminar o Poder Judiciário e o Poder Executivo com a experiência de Pedreiras/MA e assim colocar o sistema prisional maranhense num outro extremo da nossa realidade: o da eficiência.

*- Luis Antonio Câmara Pedrosa é advogado e presidente do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos – SMDH e da Comissão de Direitos Humanos da OAB-MA

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