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Escrito por Gabriel Brito, da Redação
O mundo inteiro segue acompanhando atentamente os acontecimentos no Egito, segundo país do norte da África a entrar em convulsão, após a exaustão generalizada de seu povo com a vida sob mando da ditadura militar de Hosni Mubarak, historicamente financiada pelos EUA e mediadora de primeira hora das políticas genocidas de Israel. Ou seja, peça central dos interesses ocidentais no instável tabuleiro do Oriente Médio.
Para tratar de um dos assuntos mais complexos da política internacional, o Correio da Cidadania entrevistou a professora Arlene Clemesha, chefe do Centro de Estudos Árabes da Universidade de São Paulo e uma das principais conhecedoras das conjunturas dos países de toda a região.
De acordo com Clemesha, apesar da força do levante popular, acompanhado crescentemente pela população de vários outros países, não se pode considerar que está em curso um processo revolucionário, mas sim a entrada de tais nações no patamar de democracias participativas, "o que já seria uma grande mudança". Com o povo nas ruas há duas semanas, as potências mundiais, ao contrário do que permitiram na Tunísia, negociam uma transição que não afete em demasia a ordem geopolítica da região, incluindo aí o Oriente Médio.
No entanto, o processo segue intrincado, pois a relevância do Egito e seu papel submisso aos interesses dos EUA e de Israel o tornam mais decisivo, e uma débâcle total significaria um futuro incerto e perigoso para a região. "Eles já tentam, com muito atraso, prevenir esse tipo de situação, buscando o controle da transição no Egito". Isso para evitar mudanças que tragam o aumento nas tensões da região - Irã, Palestina e conjunturas internas de outros países que vivem ditaduras mascaradas.
Confira na íntegra a entrevista com Arlene Clemesha.
Correio da Cidadania: Primeiramente, como explicar uma onda tão inesperada, ao menos aos olhos ocidentais, de sublevações populares a partir dos países árabes do Norte da África, com potencial de ainda se alastrar por mais nações vizinhas?
Arlene Clemesha: Os países que sofreram revoltas até o momento são lugares onde a desigualdade social, o empobrecimento e a inflação dos bens básicos vinham causando uma situação de vida extremamente difícil para a população. Aliado a isso, eram regimes ditatoriais, autoritários, fazendo com que a população se sentisse deslocada da possibilidade de esgrimir suas reivindicações.
Por exemplo, a Tunísia era considerada um regime modelo. Era praticamente um resort, uma colônia de férias francesa; eles viajam inclusive para fazer operações plásticas a preços acessíveis... Mas ignorava-se o sul do país, a miséria tremenda da população e a revolta que se gestava ali.
Correio da Cidadania: Quais as características dos cenários políticos de países como Tunísia e Egito? O que mais une esses povos além da opressão sofrida por regimes autocráticos?
Arlene Clemesha: Há especificidades, mas existem muitos regimes autoritários na região, e que já vinham sofrendo pequenas revoltas, greves de trabalhadores, com sindicatos que tentam se reorganizar. E essas revoltas têm sido duramente reprimidas.
O Marrocos é outro caso, uma monarquia cuja família real ocupa o poder desde o século 17 – a mesma família. Claro, hoje o país não tem um regime idêntico ao do século 17, mas não é democrático e vem reprimindo várias manifestações. Também proibiu manifestações de solidariedade ao Egito, mas há uma grande manifestação marcada no país para o dia 20. Vamos ver o que acontecerá.
O Egito sempre foi governado por militares, ou regimes que conseguiam no máximo uma fachada de democracia ou abertura, na medida em que tinha um parlamento, mas sem ser uma verdadeira democracia, com partidos banidos, a oposição sem liberdade de organização, a população sem sua liberdade, a imprensa vigiada, além do empobrecimento nas últimas duas décadas, principalmente na última, que tem se tornado insuportável. O Egito sempre foi pobre, é um país com um terço da população de todos os 22 países árabes, em condições muito precárias. Ao mesmo tempo, tem uma classe educada, de grau universitário e desempregada. É uma classe de opinião formada e que sabe reivindicar seus direitos.
E alguns movimentos já vinham em andamento, como o 6 de Abril, data em que foi reprimida uma greve no ano de 2008. O movimento continuou existindo, buscando aumentar os canais de reivindicação; o nome também se refere a um jovem que foi abordado e assassinado pela polícia, sem explicação. Aliás, a população odeia a polícia; em relação ao exército, não é a mesma coisa, mas a polícia é muito odiada. Houve uma série de tentativas de manifestação. Depois do ocorrido na Tunísia esses, desejos ganharam fôlego e a população mostra que não abandonará as reivindicações.
Na Jordânia, por sua vez, o rei já trocou o primeiro-ministro como forma de tentar impedir que se chegue a uma revolta, mas mesmo assim houve manifestações por lá. E também se trata de um regime que vigora há duas décadas, autoritário, com problemas sérios com o sul, oprimindo toda forma de oposição e expressão política.
Na Síria, a população também já marcou manifestações, e lá é extremamente difícil fazer isso. Mas diferentemente do Egito, a Síria não deve favores aos EUA. E o Egito é um regime tão criminoso quanto esses outros em termos de repressão, tortura, perseguição e prisões políticas. No fundo, creio que não haja muita diferença nesse ponto, a não ser a de que o Egito tenta disfarçar mais, inclusive pelo grande apoio dos EUA, que não querem manchar seu nome com torturas e prisões, já que se dizem defensores da democracia.
Correio da Cidadania: Considerando especificidades dos vários países, é razoável designá-los como pertencentes ao ‘Mundo Árabe’?
Arlene Clemesha: Há uma série de políticas em jogo, cada uma com sua especificidade, seus aliados, que são diferentes. Por isso que não se pode falar nessa coisa de ‘Mundo Árabe’. Isso é uma ficção. Não existe uma unidade de interesses. Basta lembrar o que ocorreu quando o Egito tentou formar a República Árabe Unida com a Síria; não durou dois anos, e depois ficou sendo apenas o Egito, porque não existe essa unidade de interesses entre os países árabes.
Existem traços culturais, históricos, interesses regionais, mas ‘Mundo Árabe’ é uma generalização. Essa é a palavra certa: uma generalização, que leva à confusão.
Pra ilustrar, as decisões da Liga Árabe não precisam ser aplicadas por todos os países. Cada um pode decidir facultativamente, as resoluções da Liga Árabe não são compromissos automáticos de todos.
Correio da Cidadania: O que esperar do porvir, especialmente na Tunísia, que já derrubou seu governo? Quais as tendências de encaminhamento futuro da conjuntura política da região, especialmente se outros regimes também confirmarem seu colapso? Acredita que os povos dos países em processo de revolução, ou ao menos de rompimento com a ordem atual, saberão criar e fazer emergir governos realmente populares?
Arlene Clemesha: Populares é difícil, mas uma democracia representativa sim, o que já seria uma grande mudança. Porém, ainda não podemos avaliar o significado total.
Não acredito que se entrará num regime religioso, islâmico, tampouco num regime popular, revolucionário. Não é o cenário. Algo com uma participação popular mais ativa, sim.
Creio que serão regimes mais representativos, o que significará uma mudança importante, inclusive nas relações internacionais desses países.
Correio da Cidadania: Qual o nível de participação da esquerda nos processos da Tunísia, Egito e outros ainda em gestação?
Arlene Clemesha: A esquerda comunista e de outras linhas derivadas, trotskista etc., é muito pequena nesses países, mas existe. Estão lá, formam seus grupos, tanto que temos visto comunicados enviados por eles. Mas não chegam a ter um peso político tão importante no processo de transição. O que podem e têm procurado fazer é se inserir em comitês populares, em nome de reivindicações populares. Mas não vamos ver o Partido Comunista sentar na mesa de negociações.
Os partidos de esquerda estão presentes, porém pequenos, e em alguns casos trabalham na clandestinidade, com dificuldades de funcionamento. De toda forma, fazem parte do cenário político.
Correio da Cidadania: A atuação de grupos de oposição de origem islâmica aos regimes ditatoriais tem sido mencionada com alarmismo, no sentido do risco de encaminhar o processo rumo a Estados fundamentalistas. Qual é a verdadeira atuação desses grupos na região e que importância têm nesse processo?
Arlene Clemesha: Esse alarmismo é oportunista. Nós sabemos que é. Passam essa idéia realmente para justificar o apoio, por exemplo e usando um caso extremo, dos EUA a um regime não democrático.
A situação é completamente diferente, mas o paralelo vale: no início do governo de Hitler, a Alemanha chegou a ser vista como um possível freio à expansão do comunismo. O que ajudou a que não houvesse oposição no país e aí... Bom, esse tipo de política é nociva, sem fundamento, reacionária.
Quanto a real presença dos grupos islâmicos, depende de cada país. No Egito, essa presença dentro da oposição é das maiores, chegando a alcançar 20% das cadeiras do parlamento nas eleições de 2005 – nas últimas eleições, boicotaram.
Mas a população, inclusive quem mora lá e também analisa as políticas egípcias, não vê perspectivas de um governo islâmico assumir o poder através de eleições. Seria apenas uma das forças presentes.
E mais: em primeiro lugar, é oportunismo alardear esse medo, essa suposta realidade. Em segundo lugar, a possibilidade de tal fato se concretizar no Egito é pequena. Em terceiro, se um povo resolve eleger um governo islâmico, também deveria ser respeitada tal eleição, porque os governos islâmicos não são todos fundamentalistas, e também porque mesmo grupos considerados extremistas (eu não diria terroristas), como o Hamas, querem dialogar. A Irmandade Muçulmana, neste momento, não tem um programa para transformar o Egito em República Islâmica. E se estivesse no poder, não acredito que seriam tão inacessíveis ao diálogo.
Aliás, se pegarmos o regime iraniano, um dos mais extremistas, veremos que é menos repressor com sua população que a Arábia Saudita, que em nenhum momento é denunciada como regime opressor, fundamentalista etc. Portanto, dialoga-se com o regime islâmico da Arábia Saudita, mas não se dialoga com o regime islâmico do Irã. Por quê? Bom, não é pelo caráter islâmico. É pela aliança política de cada um, política pura.
Portanto, o mais importante é que a população possa escolher; e se optar por um regime islâmico, não devemos achar que vá significar anti-ocidentalismo, porque não vai. A não ser que o ocidente esteja tecendo políticas de intervenção, invasão, ocupação, aí sim seria despertado tal sentimento. E, nesse caso, não decorreria um anti-ocidentalismo generalizado, mas resistência a uma agressão. A realidade é mais simples do que pintam.
Correio da Cidadania: É possível que a região entre num processo mais acelerado de politização, em detrimento da interferência da religião nos processos políticos?
Arlene Clemesha: Com certeza. Porque na medida em que a população conseguir fazer avançar suas reivindicações, promover debates políticos, vai formar opiniões mais consolidadas. E a população egípcia não é exatamente tão religiosa; não é dos países e populações da região mais fervorosos nesse sentido.
Correio da Cidadania: Que reação devemos esperar de Israel caso a região sofra a guinada política que se anuncia?
Arlene Clemesha: Não ficaria surpresa se começassem movimentações militares na fronteira e a tentativa de se orquestrarem boicotes ao novo regime.
Correio da Cidadania: E caso os interesses norte-americanos comecem a enfrentar mais barreiras para se impor na região, a partir do surgimento de lideranças menos submissas, poderíamos temer por intervenções belicistas dos EUA, a exemplo de tantas que ocorreram nas últimas décadas?
Arlene Clemesha: Eles já tentam, com muito atraso, prevenir esse tipo de situação, buscando o controle da transição no Egito. Isso porque novos esforços militares que se tenham de fazer eventualmente são inviáveis no momento. Já há uma frente aberta com o Irã, com esse dilema de atacar ou não, e com a pressão de Israel para que o faça. Portanto, uma frente em país como o Egito, por exemplo, é impraticável.
Dessa forma, não vejo tal possibilidade. Vejo mais a possibilidade de novas políticas, movimentações até de fronteira, tentativas de minar o governo, criação de outras alianças contra o governo, em instituições internacionais, na política internacional, mas não na forma de ataque, como se viu no Iraque.
Correio da Cidadania: Finalmente, o que pensa do tratamento dúbio que os governos ocidentais, e a mídia associada, têm dado, ao longo de todos esses anos, a estes regimes, especialmente no que tange os direitos humanos?
Arlene Clemesha: Isso é muito interessante de se prestar atenção, pois revela a verdadeira natureza do apoio político. Por exemplo, podemos falar do caso do Brasil. Apenas no dia 06/02 o ministro da Casa Civil disse apoiar a revolta. Mas até então não tínhamos visto uma declaração do governo ou do Ministério das Relações Exteriores em relação a isso.
É complicado. Temos um povo na rua há 15 dias e um país como o Brasil, que vem procurando uma inserção maior na política da região, não toma nenhuma medida, não faz nenhuma declaração contra o ditador? Eu não vou qualificar de nenhuma forma, mas isso chama a atenção. Felizmente, o ministro da Casa Civil acaba de declarar que o Brasil apóia a revolta popular para a deposição de Mubarak.
Já os EUA vão mais longe ainda, pois revelam muito claramente sua política de apoio a um regime amigo, que não é nada democrático, mas é seu aliado. Assim como a mídia.
Gabriel Brito é jornalista.
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