quarta-feira, 3 de maio de 2017

A semântica dos Gamela e o governo avestruz

No dia 30 houve uma verdadeira tragédia na Terra dos Índios de Viana, município a 250 km de São Luís.

Vários indígenas Gamela foram atacados a golpes de facão e armas de fogo. Segundo a CPT,  mais de dez indígenas foram feridos, dentre os quais três de forma mais grave.

Desde 2015 alguns povoados da referida gleba de terras decidiram fazer o processo de retomada do território por conta própria, diante da inércia do Estado.

A chamada Terra dos Índios de Viana é um território oriundo de uma doação de Dom João VI aos indígenas da região.

Desde o início da década de 70, o território convive com um conflito fundiário, que envolve grilagem cartorial e a ação de agentes externos. Parte expressiva da gleba foi apropriada por fazendeiros, pequenos proprietários e posseiros.

As ações fundiárias para resolver o problema foram ineficientes. Nem o INCRA, nem o órgão estadual de terras conseguiram levar a cabo a resolução do litígio.

Sem a pronta intervenção do Estado, desenvolveram-se iniciativas particulares para a inserção das terras no mercado. Prisões e ameaças sempre foram a tônica, com costumeira postura contemplativa dos órgãos de segurança pública e do Poder Judiciário.

Os herdeiros dos Gamela sempre foram invisibilizados na sociedade local e muito os tinham como resíduos ou lembrança de um passado extinto.

Os conflitos que explodiram durante a ditadura militar foram gradualmente deslocados para ações menos coletivas, cada povoado fazendo mediações e recuos para não perder tudo.

Nos últimos anos, um processo coletivo de organização resultou na estratégia da retomada autônoma. O impacto dessas mobilizações assustam a sociedade local, tal como as correrias do século XIX, ensejando ações de retaliação,  muitas vezes incitadas por agentes externos, como pastores e políticos, conforme ocorreu recentemente.

Diante da repercussão da violência, chamou a atenção a postura do Governo do Estado, deflagrando uma verdadeira guerra semântica para reduzir os impactos do problema para sua própria imagem.

Em primeiro lugar, identificou o ataque como um confronto, mistificando o cenário de uma violência planejada, anunciada nas rádios e redes sociais, que convocava a população para a emboscada.

Em seguida, o governo Dino mobilizou toda a sua estratégia de comunicação para desqualificar e relativar a violência, desmentindo publicamente a amputação de membros dos dois indígenas feridos, internados hoje no Hospital Geral de São Luís.

Esse cabo de guerra infantil não tinha um interesse médico, simplesmente. Não era uma tentativa de bem informar a população, mas uma estratégia para desqualificar as entidades de mediação dos indígenas e por consequência a própria luta dos Gamela.

Não haveria, do ponto de vista prático, grandes diferenças entre uma tentativa de homicídio e uma lesão corporal seguida de morte, por exemplo. Assim como não há grande diferença entre fraturas externas, com secção de tendões e ligamentos de um decepamento. Se há, diz respeito mais à atuação dos cirurgiões do que propriamente a de um governo interessado em proteger os mais vulneráveis.

O governo entende a linguagem política que denuncia a violência, o problema é que nas lutas políticas a semântica é uma arma perigosa.

A inescapável relação do governo Dino com o agronegócio o faz resvalar para a disputa semântica, como uma forma de fugir do debate de conteúdo, cujo cerne é o seguinte:

a) como um ataque promovido em rádios e redes sociais numa pequena cidade do interior não chegou ao conhecimento da polícia local?
b) como reage o governo desde 2015, quando passou a acompanhar esse conflito, inclusive participando de reuniões no interior do território?
c) como poderia agir antes para prevenir a violência, promovendo mediações com o governo federal, assim como faz agora, depois do caldo derramado?

Em vez de dirigir suas baterias para o governo federal ou para os agressores, a estratégia de mídia de avestruz parece ter a função de apenas diminuir o governo Dino.


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