domingo, 14 de novembro de 2010

Sakineh paga pelo crime de ser mulher


Bernard Henri Levy

É tão pouco o que sei sobre Sakineh Mohammadi Ashtiani.

Sei que nasceu em uma família pobre e religiosa de Osku, província do Azerbaijão Oriental, no noroeste do Irã, onde as mulheres usam véu, o chador.

Sei que era professora em uma escola muito pequena - uma profissão que se choca com a imagem de Sakineh como analfabeta. Esta falácia foi disseminada em todo o mundo e todos, inclusive eu, a aceitaram como um fato.

Mas estamos misturando duas coisas. Sakineh é azeri, nascida na parte iraniana do Azerbaijão, onde as pessoas são muito apegadas a sua cultura e quase ninguém fala persa. É analfabeta, então, em persa: isso explica por que interpretou mal e assinou o veredicto em 2006, quando um juiz em Tabriz a condenou à morte por apedrejamento, por supostamente ter cometido adultério. Mas certamente não é analfabeta em azeri.

Em segundo lugar, quando foi emitida a sentença, nem sequer foi em persa, mas em árabe. O analfabetismo nada teve a ver quando Sakineh assinou o documento, sem entendê-lo, e depois alegremente voltou para a camionete da polícia que a levaria de volta à prisão, acreditando o tempo todo que tinha sido declarada inocente.

Foi só ao chegar à cela reservada para os condenados à morte que uma de suas companheiras de cela lhe disse o que realmente a esperava: não só a morte, como a pior das mortes. Não ser enforcada, mas a morte provocada por pedras lançadas contra ela, a morte reservada para as adúlteras.

Nenhuma das outras companheiras de cela se atreveu a esclarecer o resto do que não havia compreendido, tirá-la de seu sono desperta e lhe dizer que seria enterrada viva, com o corpo envolto em uma mortalha e só seu rosto ao ar livre, para que uma horda de homens pudesse matá-la a pedradas.

Foi um carcereiro, sádico e triunfante, quem veio lhe dar os detalhes.

Sakineh não teve tempo para compreender tudo isso. Não teve um momento livre, mesmo ali, para imaginar seu rosto agredido até que a carne explodisse, os olhos saltassem de suas órbitas, seu cérebro fosse pulverizado. Porque perdeu o conhecimento imediatamente.

Sei que Sakineh tem uma mãe que, durante os longos anos do processo legal e antes que Sakineh fosse isolada de suas companheiras e colocada na solitária, ia visitá-la a cada duas ou três semanas.

Sei que tem um filho, Sajjad, o que mais ama, sua alegria, quem organizou sua defesa no mundo exterior - até 10 de outubro, quando um grupo de paramilitares irrompeu no escritório de seu advogado, Houtan Khian, na metade de uma entrevista de Sajjad com dois jornalistas alemães, para levá-lo junto com o advogado e os repórteres para um lugar que ainda se desconhece.

Sei que Sakineh tem uma filha, Saeideh, mas ignoro quase tudo sobre ela - somente sei que tem 18 anos de idade, que Sajjad é quem se encarregou de criá-la e que, desde a detenção de seu irmão, está só neste mundo e sem meio algum para subsistir.

Sei também - vi na foto mais conhecida de Sakineh, em que seu rosto de Madona está enquadrado pelos dois painéis de seu véu, claramente delineado - que é bonita, muito bonita, embora me pareça sem uma pitada de vaidade.

Porque a pergunta mais importante, é claro, concerne o famoso adultério que ela supostamente cometeu, o crime pelo qual querem apedrejá-la.

Há outra acusação. É o assassinato de seu marido, Ebrahim Ghaderzadeh, em 2005. A polícia local tenta apontar Sakineh como assassina, afirmando que ela lhe injetou um anestésico antes que seu primo, Issa Taheri, o arrastasse para o banheiro para ali eletrocutá-lo com a ajuda de um amigo. Mas o sistema de justiça declarou Sakineh inocente da acusação de assassinato em 2006. A confissão de Taheri está nos registros do caso; ele assumiu a responsabilidade total pelo crime e agora está livre.

Mas então o que há sobre o adultério?

É inconcebível, por acaso, que Sakineh pudesse sentir atração por Taheri ou por outro homem?

E por que, desde o tempo em que seu casamento começou a se deteriorar, desde o momento em que seu marido a obrigou a renunciar ao trabalho de professora ao qual era tão dedicada, não teria ela uma espécie de ressentimento contra ele, e não teria siso tentada, como muitas mulheres em situações semelhantes, a abrir seu coração para outro homem?

Interroguei o advogado de Sakineh algumas semanas antes que ele fosse detido com Sajjad. Ele considera inconcebível a própria ideia de um adultério em um povoado pequeno como Osku, onde todos estão interessados na vida e afazeres dos outros.

Estabeleci contato com Sajjad (antes que o detivessem), que amava incondicionalmente seu pai assassinado e suposta vítima do adultério. E não percebi nada ali - nada do mau cheiro característico de uma tragédia silenciada e um segredo familiar enterrado; nada, como acontece frequentemente, da obscura solidariedade do filho por um pai humilhado.

Na minha opinião, Sakineh talvez tenha se apaixonado, mas nunca agiu conforme esse sentimento.

Estou convencido de que é vítima de um sistema injusto que a condena não pelo que ela fez - a suposta infidelidade -, mas pelo que é: uma mulher, em um país em que os animais são tratados melhor que as mulheres.

Assim penso que devo defender essa mulher tanto por ela mesma como pelo que representa: é um símbolo de todas essas mulheres, as sombras, os fantasmas que estão por trás dela.

Mas por que estou lutando por essa mulher como se fosse minha amiga?

Por que a opinião mundial se apoderou de sua imagem e a transformou em um ícone global?

E por que nossos líderes mundiais, o presidente francês Nicolas Sarkozy primeiro entre eles, fizeram dela um exemplo? Por que esse assunto se tornou um "teste" no qual Sarkozy não cederá uma polegada, como me disse por telefone na semana passada, quando o nome de Sakineh apareceu em uma lista indicando que seria executada na madrugada de 4 de novembro?

No momento em que escrevo estas linhas ela continua viva. E se o assunto Sakineh é um teste, para os iranianos, da determinação do Ocidente de resistir a eles (isto é, se continuarmos com o relativo a Sakineh, talvez sejamos tão tenazes com relação ao resto), ela também é um teste, para nós, de sua capacidade de entender e dar marcha a ré. (Se cederem no caso dessa mulher inocente, significa que talvez estejam dispostos a escutar a voz da razão e então é possível um diálogo.)

Em qualquer caso, é assim.

Mahmoud Ahmadinejad, presidente do Irã, nada pode fazer a respeito.

Sakineh também não pode fazer nada - engolida, como uma Jonas moderna, no abismo da noite iraniana.

É mais um mistério de iniquidade.

E o será até o dia em que ela for libertada.

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves



Bernard-Henri Lévy

Bernard-Henri Lévy é filósofo e jornalista. Considerado um dos principais escritores franceses da atualidade, é autor de obras como "Quem Matou Daniel Pearl?" e "American Vertigo".

Nenhum comentário: