http://www.conjur.com.br/2013-abr-15/lenio-streck-assim-cada-analisa-acordo-convencimento
Há um ditado popular que diz “mirou no padre e acertou na Igreja”, o que no direito poderia ser tido como aberratio ictus. Pois lendo a entrevista do magistrado Guilherme Nucci na ConJur criticando o poder investigatório do Ministério Público, ficou-me a nítida sensação de que o autor que mais vende livros de direito penal e processual do Brasil atirou no padre e errou; mas também não acertou na igreja. Sorte da vítima.
Explico: Nucci concedeu longa entrevista dizendo que o MP não tem poderes investigatórios. Negou, inclusive, três vezes (não, não e não!). E isso gerou uma enorme polêmica entre os leitores do ConJur. De imediato, delegados, promotores e advogados se engalfinharam discutindo sobre o que dissera Nucci. Cada um dos leitores defendendo, como em um Fla-Flu (ou Gre-Nal) o seu ponto de vista.
Não vou entrar de novo nessa discussão sobre o Poder Investigatório do MP. Sobre isso já me manifestei quando escrevi, aqui no ConJur, o texto a PEC da insensatez. Tudo o que penso sobre isso está ali naquele texto. Não vou ficar discutindo coisas como “na Inglaterra o MP não tem poderes investigatórios”.
Primeiro, que importância teria isso? Mas, se tem, por que então não verificar a veracidade da informação? Já adianto: o argumento de que na Inglaterra o MP não tem poderes investigatórios é tão falso quanto uma moeda de 6 centavos com a esfinge do Visconde de Sabugosa. Mas não é disso que tratarei.
Então, por favor, não quero polemizar de novo sobre a PEC 37. Quero pegar o que Nucci disse e que ninguém – mas ninguém mesmo – contestou. Passou in albis. Sorte que não prescreveu, porque estou aqui, no prazo dos “embargos com efeitos infringentes” (argh) buscando o restabelecimento da questão de fundo, isto é “o busílis da questão”.
Disse Nucci algo que deveria deixar todos de orelhas em pé. E o que foi isso? Trata-se de algo que ele vem repetindo à sociedade e à saciedade, de que o-juiz-tem-o-poder-de-livre-apreciação-da-prova (verbis na entrevista: “Cada um analisa de acordo com o seu convencimento, de acordo com sua convicção própria. O sistema processual penal permite que o juiz forme a sua convicção livremente”). Bingo. Este é o ponto. Eis o álibi teórico-retórico: com a livre apreciação, não há erro; não há autoritarismo; há, tão-somente, um engano na “escolha”... De qualquer sorte, enquanto delegados, promotores e advogados (lato sensu – as carreiras são tantas) ficam se digladiando, o solipsismo judicial corre frouxo (diria assim que, enquanto Nucci concedia a entrevista, centenas de prisões foram decretadas de ofício e centenas de processos foram decididos por livre convicção!).
Tenho alertado à comunidade jurídica de há muito sobre algumas coisas. O Código de Processo Civil está contaminado na origem pelo instrumentalismo processual, que vem lá do século XIX (é o fantasma do velho Büllow, que parece que não quer largar o pé da comunidade jurídica). Consequência disso? Olhem ao redor. Caos. Escopos processuais. Livre convencimento. Embargos declaratórios. Ah: não esqueçamos que o projeto do novo CPC dá poderes ainda maiores ao juiz, na parte das cautelares, por exemplo.
Bom, tão caótico é o sistema que o establishment reagiu em 2004 e implementou as súmulas vinculantes e a repercussão geral. E vai apertar mais ainda o ferrolho. É a adaptação darwiniana que o sistema faz de si mesmo. Se todos têm livre convencimento, ninguém tem. E assim forma-se o caos (espécie de estado de natureza hermenêutico), resolvido pelos ferrolhos instrumentalistas. Se alguém tem dúvidas, tente passar um recurso para os tribunais superiores.
No processo penal o velho inquisitivismo continua aí. Forte. Rijo. É o presidencialismo processual. O juiz tem poderes de ofício. Ele decreta prisão de oficio. Ele não obedece ao artigo 212 do CPP (aliás, o primeiro juiz que escreveu dizendo que os juízes não precisavam obedecer ao artigo 212 do CPP foi... sabem quem? Justamente Guilherme Nucci; pior: ele ganhou a batalha, porque o STJ e o próprio STF – este em um julgado - dizem que a não obediência ao artigo 212, que é uma regra procedimental que assegura o princípio acusatório, é tão somente uma nulidade relativa). E assim a coisa vai. Quando estão discutindo a PEC 37, muitos juristas esquecem desses detalhes. Observe-se: minhas críticas – já antigas – não se dirigem aos juízes (aliás, sou um ardoroso defensor da jurisdição constitucional – o que critico é o ativismo e o decisionismo); e, fundamentalmente, minhas críticas se dirigem ao modelo inquisitório que não conseguimos superar. Simples, pois.
Claro que o velho inquisitivismo vem acompanhado daquilo que ficou escondido na entrevista de Nucci. Trata-se do poder de livre apreciação da prova, o que implica a serôdia possibilidade de buscar a “verdade real” (sic). Desafio – e não é de hoje - a que alguém me prove a viabilidade da tal “verdade real” no plano filosófico. Ora, de que adianta termos atingido a democracia se, na hora da decisão de um processo criminal, em que estão envolvidos os mais altos direitos humanos fundamentais, o decisor pode apreciar livremente a prova, “buscando a verdade que ele considera a ‘real’”?
Pior: Nucci não está sozinho; o projeto do novo Código de Processo Penal continua com esse vício típico de um paradigma ultrapassado. Alguém se lembra da algumas passagens do julgamento da AP 470, quando se dizia, com base no Malatesta (que era um tremendo de inquisitivista e solipsista), que o ordinário se presume e só o extraordinário se prova? Nem é necessário dizer mais. Mas o que me impressionou foi o silêncio eloquente da comunidade jurídica. Malatesta vive.
No que tange especificamente ao problema da gestão da prova, é de se consignar que boa parte da doutrina brasileira se perde na definição dos modelos de apreciação da prova (quais sejam: o modelo da íntima convicção; o modelo da prova legal; e o modelo da livre apreciação da prova), como se o problema estivesse apenas em optar por um deles, mas não em superá-los.
Há certo consenso no sentido de que o modelo da livre apreciação da prova seria “mais democrático” (sic) que o modelo da prova legal, uma vez que, nesse último, o juiz e as partes ficariam reféns de uma hierarquia valorativa da prova estipulada pela própria lei – pelo legislador, portanto – enquanto, no sistema do livre convencimento, há uma maior liberdade de conformação por parte do juiz que pode “adequar” (sic) a avaliação da prova às circunstâncias concretas do caso. Ora, ora. E mais um “ora”. Este tipo de comparação me faz lembrar que o absolutismo foi melhor que o medievo... Pois é. Claro que foi. Afinal, sair da condição de servo da gleba para a de súdito foi um avanço. Mas isso não quer dizer que o “absolutismo foi bom”. Isto é, dizer que a livre apreciação é melhor que o modelo da prova legal é, no mínimo, falta de visão paradigmática (e, portanto, histórica). Vejam: Aqui, nesta parte, não estou falando sobre o que disse Nucci, e, sim, sobre o que parcela da doutrina entende sobre gestão da prova. Mas tem a ver, por óbvio.
Alguém já se deu conta – e isso está nítido na entrevista de Nucci – que a livre apreciação da prova está ligada ao uso de provas indiciárias? Os advogados de terrae brasilis já se deram conta disso? Ora, não deixa de ser instigante (e intrigante) o fato de que seja exatamente a livre apreciação da prova o argumento utilizado por inúmeras decisões-para-justificar-a-condenação com base em... provas colhidas durante o inquérito policial.
Portanto, o problema da gestão da prova deve ir além de uma simples opção por um dos modelos citados acima. Aliás, ele deve ser pensado no contexto de um processo democraticamente gerido, o que implica pensar os limites daquele que figura como o titular o impulso oficial: o juiz. Pois não há democracia onde haja poder ilimitado. E isso é assim desde o primeiro constitucionalismo. Mas nada disso aparece na fala de Nucci.
Sigo, para dizer algo chato. Afinal, em um mundo em que cresce dia a dia a indústria da cultura simplificadora, falar de algo mais sofisticado sempre pode parecer chatice ou pedantismo. Quero dizer que esse problema estrutural decorre de outro problema paradigmático: o atrelamento da concepção de direito (ainda dominante) aos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência (na verdade, de sua vulgata, o voluntarismo). Assim, se, de um lado, acredita-se na possibilidade da busca da verdade real (sic) – como se existissem essências (sim, existem ainda juristas das mais variadas espécies que acreditam nisso!); ao mesmo tempo, tomam para si a condução da prova no processo, como se a produção da prova pudesse ser gerida a partir de sua consciência (falo em sentido de paradigma filosófico, embora o que ocorra na prática cotidiana seja mesmo uma vulgata da filosofia da consciência). Nem vou falar, aqui, do discricionarismo... (remeto o leitor ao meu Verdade e Consenso). Por tudo isso, o sistema processual penal é (ainda muito) autoritário.
O que Nucci não discute é essa questão da origem do inquisitisvimo e da livre apreciação da prova. Este é o ponto. De que adianta falar da investigação (com ou sem MP), se, para ele, a prova é examinada “a partir do seu livre sentir”? E, por trás disso, está um problema de paradigmas filosóficos. Enquanto os juristas brasileiros não se derem conta disso, vamos continuar a andar em círculos. E nos surpreendendo com a ressureição, de tempos em tempos, de “obras geniais” como a de Malatesta. Para dizer o mínimo.
Volta-se, sempre, ao lugar do começo: o problema da democracia e da (necessária) limitação do poder. Discricionariedades, arbitrariedades, inquisitorialidades, positivismo jurídico: tudo está entrelaçado. Consequentemente, é possível afirmar que o sistema acusatório é o modo pelo qual a aplicação igualitária do direito penal penetra no direito processual penal. Pelo sistema acusatório, ganha terreno aquilo que Dworkin chama de fairness. Mais do que isso, é a porta de entrada da democracia.
É o modo pelo qual se garante que não existe um “dono da prova”; é o modo pelo qual se tem a garantia de que o Estado cuida de modo igualitário da aplicação da lei; enfim, é o locus onde o poder persecutório do Estado é exercido de um modo, democraticamente, limitado e equalizado. Com Ministério Pùblico, polícia e advogados. No fundo, é possível dizer que o sistema acusatório é a recepção do paradigma que proporcionou a grande revolução no campo da filosofia: o giro linguístico-ontológico, pelo qual os sentidos não mais se dão pela consciência do sujeito e, sim, pela intersubjetividade, que ocorre na linguagem. Sendo mais simples: trata-se do fenômeno da invasão da filosofia pela linguagem.
Em outras palavras: o sistema acusatório somente assume relevância paradigmática nesse contexto. Se nele colocarmos o “livre convencimento”, retornaremos ao inquisitorialismo (peço desculpas, mas tenho que dizer isso; não é por que eu quero que seja assim; não é implicância minha que o inquisitivismo esteja ligado a um paradigma filosófico ultrapassado; isso é assim não porque simplesmente é, mas, sim, porque há uma larga tradição filosófica que define o que é um paradigma).
Numa palavra Como disse, minha preocupação maior tem sido com a democracia. E com a gestão da prova. E com a necessidade de superarmos a tal livre apreciação da prova, seja o nome que a ela se dê (por exemplo, não adianta acrescentar a palavra “motivado” ou “motivada” para resolver um problema que é de fundo, e não de ornamento). Concordo com o ilustre entrevistado no sentido de que, efetivamente, essa questão da “investigação por parte do MP” está sendo tratada de forma maniqueísta. Não sei bem por quem. Mas que está, isso está.
Por exemplo, na entrevista tem-se a impressão que o Ministério Público quer investigar sozinho. Que só ele quer investigar. E sabemos todos que não é isso que o MP pretende. Aliás, poderíamos incluir no entremeio dessa discussão essa problemática da “livre apreciação”. Quem sabe, fazemos um “pacote significante” para aproveitar as energias que estão sendo despendidas no plano da investigação (ou de quem deve investigar)... Com bem disse outro dia o promotor de Justiça do DF Antonio Suxberger, “o modelo constitucional hoje assegura à investigação criminal um caráter usualmente policial, mas não exclusivamente policial. Auditorias internas de órgãos públicos, comissões parlamentares de inquérito, inquéritos civis que apuram improbidade administrativa, procedimentos apuratórios do Ministério Público, comunicações de operações financeiras suspeitas pelo Coaf e pelo Bacen etc – são diversas as possibilidades de apuração da prática criminosa que cumprem a finalidade de uma investigação criminal.” Eu acrescentaria as inúmeras apurações das corregedorias e dos diversos setores da administração nos seus diversos níveis. Efetivamente, a estrutura da administração pública de terrae brasilis é bem complexa, pois não?
Pronto. Para além da discussão acerca da “livre apreciação da prova”, ovo da serpente da manutenção de um sistema de gestão da prova ultrapassado, tem-se que a complexidade vence a dicotomia e o maniqueísmo.
Explico: Nucci concedeu longa entrevista dizendo que o MP não tem poderes investigatórios. Negou, inclusive, três vezes (não, não e não!). E isso gerou uma enorme polêmica entre os leitores do ConJur. De imediato, delegados, promotores e advogados se engalfinharam discutindo sobre o que dissera Nucci. Cada um dos leitores defendendo, como em um Fla-Flu (ou Gre-Nal) o seu ponto de vista.
Não vou entrar de novo nessa discussão sobre o Poder Investigatório do MP. Sobre isso já me manifestei quando escrevi, aqui no ConJur, o texto a PEC da insensatez. Tudo o que penso sobre isso está ali naquele texto. Não vou ficar discutindo coisas como “na Inglaterra o MP não tem poderes investigatórios”.
Primeiro, que importância teria isso? Mas, se tem, por que então não verificar a veracidade da informação? Já adianto: o argumento de que na Inglaterra o MP não tem poderes investigatórios é tão falso quanto uma moeda de 6 centavos com a esfinge do Visconde de Sabugosa. Mas não é disso que tratarei.
Então, por favor, não quero polemizar de novo sobre a PEC 37. Quero pegar o que Nucci disse e que ninguém – mas ninguém mesmo – contestou. Passou in albis. Sorte que não prescreveu, porque estou aqui, no prazo dos “embargos com efeitos infringentes” (argh) buscando o restabelecimento da questão de fundo, isto é “o busílis da questão”.
Disse Nucci algo que deveria deixar todos de orelhas em pé. E o que foi isso? Trata-se de algo que ele vem repetindo à sociedade e à saciedade, de que o-juiz-tem-o-poder-de-livre-apreciação-da-prova (verbis na entrevista: “Cada um analisa de acordo com o seu convencimento, de acordo com sua convicção própria. O sistema processual penal permite que o juiz forme a sua convicção livremente”). Bingo. Este é o ponto. Eis o álibi teórico-retórico: com a livre apreciação, não há erro; não há autoritarismo; há, tão-somente, um engano na “escolha”... De qualquer sorte, enquanto delegados, promotores e advogados (lato sensu – as carreiras são tantas) ficam se digladiando, o solipsismo judicial corre frouxo (diria assim que, enquanto Nucci concedia a entrevista, centenas de prisões foram decretadas de ofício e centenas de processos foram decididos por livre convicção!).
Tenho alertado à comunidade jurídica de há muito sobre algumas coisas. O Código de Processo Civil está contaminado na origem pelo instrumentalismo processual, que vem lá do século XIX (é o fantasma do velho Büllow, que parece que não quer largar o pé da comunidade jurídica). Consequência disso? Olhem ao redor. Caos. Escopos processuais. Livre convencimento. Embargos declaratórios. Ah: não esqueçamos que o projeto do novo CPC dá poderes ainda maiores ao juiz, na parte das cautelares, por exemplo.
Bom, tão caótico é o sistema que o establishment reagiu em 2004 e implementou as súmulas vinculantes e a repercussão geral. E vai apertar mais ainda o ferrolho. É a adaptação darwiniana que o sistema faz de si mesmo. Se todos têm livre convencimento, ninguém tem. E assim forma-se o caos (espécie de estado de natureza hermenêutico), resolvido pelos ferrolhos instrumentalistas. Se alguém tem dúvidas, tente passar um recurso para os tribunais superiores.
No processo penal o velho inquisitivismo continua aí. Forte. Rijo. É o presidencialismo processual. O juiz tem poderes de ofício. Ele decreta prisão de oficio. Ele não obedece ao artigo 212 do CPP (aliás, o primeiro juiz que escreveu dizendo que os juízes não precisavam obedecer ao artigo 212 do CPP foi... sabem quem? Justamente Guilherme Nucci; pior: ele ganhou a batalha, porque o STJ e o próprio STF – este em um julgado - dizem que a não obediência ao artigo 212, que é uma regra procedimental que assegura o princípio acusatório, é tão somente uma nulidade relativa). E assim a coisa vai. Quando estão discutindo a PEC 37, muitos juristas esquecem desses detalhes. Observe-se: minhas críticas – já antigas – não se dirigem aos juízes (aliás, sou um ardoroso defensor da jurisdição constitucional – o que critico é o ativismo e o decisionismo); e, fundamentalmente, minhas críticas se dirigem ao modelo inquisitório que não conseguimos superar. Simples, pois.
Claro que o velho inquisitivismo vem acompanhado daquilo que ficou escondido na entrevista de Nucci. Trata-se do poder de livre apreciação da prova, o que implica a serôdia possibilidade de buscar a “verdade real” (sic). Desafio – e não é de hoje - a que alguém me prove a viabilidade da tal “verdade real” no plano filosófico. Ora, de que adianta termos atingido a democracia se, na hora da decisão de um processo criminal, em que estão envolvidos os mais altos direitos humanos fundamentais, o decisor pode apreciar livremente a prova, “buscando a verdade que ele considera a ‘real’”?
Pior: Nucci não está sozinho; o projeto do novo Código de Processo Penal continua com esse vício típico de um paradigma ultrapassado. Alguém se lembra da algumas passagens do julgamento da AP 470, quando se dizia, com base no Malatesta (que era um tremendo de inquisitivista e solipsista), que o ordinário se presume e só o extraordinário se prova? Nem é necessário dizer mais. Mas o que me impressionou foi o silêncio eloquente da comunidade jurídica. Malatesta vive.
No que tange especificamente ao problema da gestão da prova, é de se consignar que boa parte da doutrina brasileira se perde na definição dos modelos de apreciação da prova (quais sejam: o modelo da íntima convicção; o modelo da prova legal; e o modelo da livre apreciação da prova), como se o problema estivesse apenas em optar por um deles, mas não em superá-los.
Há certo consenso no sentido de que o modelo da livre apreciação da prova seria “mais democrático” (sic) que o modelo da prova legal, uma vez que, nesse último, o juiz e as partes ficariam reféns de uma hierarquia valorativa da prova estipulada pela própria lei – pelo legislador, portanto – enquanto, no sistema do livre convencimento, há uma maior liberdade de conformação por parte do juiz que pode “adequar” (sic) a avaliação da prova às circunstâncias concretas do caso. Ora, ora. E mais um “ora”. Este tipo de comparação me faz lembrar que o absolutismo foi melhor que o medievo... Pois é. Claro que foi. Afinal, sair da condição de servo da gleba para a de súdito foi um avanço. Mas isso não quer dizer que o “absolutismo foi bom”. Isto é, dizer que a livre apreciação é melhor que o modelo da prova legal é, no mínimo, falta de visão paradigmática (e, portanto, histórica). Vejam: Aqui, nesta parte, não estou falando sobre o que disse Nucci, e, sim, sobre o que parcela da doutrina entende sobre gestão da prova. Mas tem a ver, por óbvio.
Alguém já se deu conta – e isso está nítido na entrevista de Nucci – que a livre apreciação da prova está ligada ao uso de provas indiciárias? Os advogados de terrae brasilis já se deram conta disso? Ora, não deixa de ser instigante (e intrigante) o fato de que seja exatamente a livre apreciação da prova o argumento utilizado por inúmeras decisões-para-justificar-a-condenação com base em... provas colhidas durante o inquérito policial.
Portanto, o problema da gestão da prova deve ir além de uma simples opção por um dos modelos citados acima. Aliás, ele deve ser pensado no contexto de um processo democraticamente gerido, o que implica pensar os limites daquele que figura como o titular o impulso oficial: o juiz. Pois não há democracia onde haja poder ilimitado. E isso é assim desde o primeiro constitucionalismo. Mas nada disso aparece na fala de Nucci.
Sigo, para dizer algo chato. Afinal, em um mundo em que cresce dia a dia a indústria da cultura simplificadora, falar de algo mais sofisticado sempre pode parecer chatice ou pedantismo. Quero dizer que esse problema estrutural decorre de outro problema paradigmático: o atrelamento da concepção de direito (ainda dominante) aos paradigmas aristotélico-tomista e da filosofia da consciência (na verdade, de sua vulgata, o voluntarismo). Assim, se, de um lado, acredita-se na possibilidade da busca da verdade real (sic) – como se existissem essências (sim, existem ainda juristas das mais variadas espécies que acreditam nisso!); ao mesmo tempo, tomam para si a condução da prova no processo, como se a produção da prova pudesse ser gerida a partir de sua consciência (falo em sentido de paradigma filosófico, embora o que ocorra na prática cotidiana seja mesmo uma vulgata da filosofia da consciência). Nem vou falar, aqui, do discricionarismo... (remeto o leitor ao meu Verdade e Consenso). Por tudo isso, o sistema processual penal é (ainda muito) autoritário.
O que Nucci não discute é essa questão da origem do inquisitisvimo e da livre apreciação da prova. Este é o ponto. De que adianta falar da investigação (com ou sem MP), se, para ele, a prova é examinada “a partir do seu livre sentir”? E, por trás disso, está um problema de paradigmas filosóficos. Enquanto os juristas brasileiros não se derem conta disso, vamos continuar a andar em círculos. E nos surpreendendo com a ressureição, de tempos em tempos, de “obras geniais” como a de Malatesta. Para dizer o mínimo.
Volta-se, sempre, ao lugar do começo: o problema da democracia e da (necessária) limitação do poder. Discricionariedades, arbitrariedades, inquisitorialidades, positivismo jurídico: tudo está entrelaçado. Consequentemente, é possível afirmar que o sistema acusatório é o modo pelo qual a aplicação igualitária do direito penal penetra no direito processual penal. Pelo sistema acusatório, ganha terreno aquilo que Dworkin chama de fairness. Mais do que isso, é a porta de entrada da democracia.
É o modo pelo qual se garante que não existe um “dono da prova”; é o modo pelo qual se tem a garantia de que o Estado cuida de modo igualitário da aplicação da lei; enfim, é o locus onde o poder persecutório do Estado é exercido de um modo, democraticamente, limitado e equalizado. Com Ministério Pùblico, polícia e advogados. No fundo, é possível dizer que o sistema acusatório é a recepção do paradigma que proporcionou a grande revolução no campo da filosofia: o giro linguístico-ontológico, pelo qual os sentidos não mais se dão pela consciência do sujeito e, sim, pela intersubjetividade, que ocorre na linguagem. Sendo mais simples: trata-se do fenômeno da invasão da filosofia pela linguagem.
Em outras palavras: o sistema acusatório somente assume relevância paradigmática nesse contexto. Se nele colocarmos o “livre convencimento”, retornaremos ao inquisitorialismo (peço desculpas, mas tenho que dizer isso; não é por que eu quero que seja assim; não é implicância minha que o inquisitivismo esteja ligado a um paradigma filosófico ultrapassado; isso é assim não porque simplesmente é, mas, sim, porque há uma larga tradição filosófica que define o que é um paradigma).
Numa palavra Como disse, minha preocupação maior tem sido com a democracia. E com a gestão da prova. E com a necessidade de superarmos a tal livre apreciação da prova, seja o nome que a ela se dê (por exemplo, não adianta acrescentar a palavra “motivado” ou “motivada” para resolver um problema que é de fundo, e não de ornamento). Concordo com o ilustre entrevistado no sentido de que, efetivamente, essa questão da “investigação por parte do MP” está sendo tratada de forma maniqueísta. Não sei bem por quem. Mas que está, isso está.
Por exemplo, na entrevista tem-se a impressão que o Ministério Público quer investigar sozinho. Que só ele quer investigar. E sabemos todos que não é isso que o MP pretende. Aliás, poderíamos incluir no entremeio dessa discussão essa problemática da “livre apreciação”. Quem sabe, fazemos um “pacote significante” para aproveitar as energias que estão sendo despendidas no plano da investigação (ou de quem deve investigar)... Com bem disse outro dia o promotor de Justiça do DF Antonio Suxberger, “o modelo constitucional hoje assegura à investigação criminal um caráter usualmente policial, mas não exclusivamente policial. Auditorias internas de órgãos públicos, comissões parlamentares de inquérito, inquéritos civis que apuram improbidade administrativa, procedimentos apuratórios do Ministério Público, comunicações de operações financeiras suspeitas pelo Coaf e pelo Bacen etc – são diversas as possibilidades de apuração da prática criminosa que cumprem a finalidade de uma investigação criminal.” Eu acrescentaria as inúmeras apurações das corregedorias e dos diversos setores da administração nos seus diversos níveis. Efetivamente, a estrutura da administração pública de terrae brasilis é bem complexa, pois não?
Pronto. Para além da discussão acerca da “livre apreciação da prova”, ovo da serpente da manutenção de um sistema de gestão da prova ultrapassado, tem-se que a complexidade vence a dicotomia e o maniqueísmo.
Lenio Luiz Streck é procurador de Justiça no Rio Grande do Sul, doutor e pós-Doutor em Direito. Assine o Facebook.
Revista Consultor Jurídico, 15 de abril de 2013
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