Luiz Eduardo Soares
Uma das maiores autoridades do País em segurança pública, o professor diz que a transição democrática precisa chegar à polícia
por Wilson Aquino e Michel Alecrim
PESQUISA “A massa policial está insatisfeita. Mais de 70% das
polícias consideram o modelo atual equivocado”, diz ele
Doutor em antropologia, filosofia e ciências
políticas, além de professor e autor de 20 livros, Luiz Eduardo Soares é
conhecido, mesmo, por duas obras: “A Elite da Tropa 1 e 2”, que inspiraram dois
dos maiores sucessos de bilheteria do cinema nacional: “Tropa de Elite 1 e 2”.
Considerado um dos maiores especialistas brasileiros em segurança, Soares, 59
anos, travou polêmicas em suas experiências na administração pública. Foi
coordenador estadual de Segurança, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro entre
1999 e 2000, no governo Antony Garotinho, e Secretário Nacional de Segurança do
governo Lula, em 2003. Bateu de frente com os dois e foi demitido. Nos últimos
15 anos, dedicou-se, junto com outros cientistas sociais, à elaboração de um
projeto para modificar a arquitetura institucional da segurança pública
brasileira, que, no entender do professor da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (Uerj), passa necessariamente pela desmilitarização das polícias e o fim
da PM – como gritam manifestantes em passeatas. O trabalho virou a Proposta de
Emenda Constitucional (PEC) 51, apresentada no Congresso Nacional pelo senador
Lindbergh Faria (PT-RJ).
"A PM vê o manifestante como inimigo. Para a grande massa, a
polícia tem um comportamento abusivo, violador, racista, brutal”
“A resistência de Geraldo Alckmin em enfrentar a brutalidade letal da
polícia está no coração da dinâmica terrível de ascensão do PCC"
Istoé
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Por que o sr. defende a desmilitarização da polícia?
Luiz
Eduardo Soares -
Porque já passou da hora de estender a transição democrática à segurança
pública. A Polícia Militar é mais do que uma herança da ditadura, é a pata da
ditadura plantada com suas garras no coração da democracia. A polícia é uma
instituição central para a democracia. E é preciso que haja um projeto
democrático de reforma das polícias comprometido com o novo Brasil, com a nova
etapa que a sociedade está vivendo. O Brasil tem que acabar com as
PMs.
Istoé
-
Deixar de ser militar torna a polícia mais democrática?
Luiz
Eduardo Soares -
A cultura militar é muito problemática para a democracia porque ela traz
consigo a ideia da guerra e do inimigo. A polícia, por definição, não faz a
guerra e não defende a soberania nacional. O novo modelo de polícia tem que
defender a cidadania e garantir direitos, impedindo que haja violações às leis.
Ao atender à cidadania, a polícia se torna democrática.
Istoé
-
Mas o comportamento da polícia seria diferente nas manifestações se a polícia
não fosse militar?
Luiz
Eduardo Soares -
Se a concepção policial não fosse a guerra, teríamos mais chances. Assim como
a PM vê o manifestante como inimigo, a população vê o braço policial do Estado
que lhe é mais próximo, porque está na esquina da sua casa, como grande fonte de
ameaça. Então, esse colapso da representação política nas ruas não tem a ver
apenas com corrupção política nem com incompetência política ou falta de
compromisso dos políticos e autoridades com as grandes causas sociais. Tem a ver
também com o cinismo que impera lá na base da relação do Estado com a sociedade,
que se dá pelo policial uniformizado na esquina. É a face mais tangível do
Estado para a grande massa da população e, em geral, tem um comportamento
abusivo, violador, racista, preconceituoso, brutal.
Istoé
-
Mas no confronto com traficantes, por exemplo, o policial se vê no meio de
uma guerra, não é?
Luiz
Eduardo Soares -
Correto. Mas esses combates bélicos correspondem a 1% das ações policiais no
Brasil. Não se pode organizar 99% de atividades para atender a 1% das
ações.
Istoé
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Como desmilitarizar uma instituição de 200 anos, como a PM do Rio?
Luiz
Eduardo Soares -
Setenta por cento dos soldados, cabos, sargentos e subtenentes querem a
desmilitarização e a mudança de modelo. Entre os oficiais, o placar é mais
apertado: 54%. Mas a desmilitarização não é instantânea. Precisa de um prazo que
vai de cinco a seis anos e que depois pode se estender. É um processo muito
longo, que exige muita cautela, evitando precipitações e preservando
direitos.
Istoé
-
Como poderia ser organizada uma nova polícia?
Luiz
Eduardo Soares -
Os Estados é que vão decidir que tipos de polícia vão formar. A Proposta de
Emenda Constitucional (PEC) 51 define dois critérios de organização: territorial
e de tipo criminal. Isso porque a realidade do Brasil é muito diversa. O melhor
modelo policial para o Amazonas não precisa ser o do Rio. São realidades
demográficas, sociológicas, topográficas e geográficas
distintas.
Istoé
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Como funcionaria o modelo territorial?
Luiz
Eduardo Soares -
Seriam corporações com circunscrição dentro dos municípios, regiões
metropolitanas, distritos e o próprio Estado. Poderíamos ter polícia municipal
ou na capital, o Estado é que definirá. São Paulo, por exemplo, tem tantas
regiões distintas, com características diversas, que poderia ter várias
polícias. Essa seria uma possibilidade. Muitos países têm polícias pequenas a
partir de certas circunscrições. Então poderíamos ter desde uma polícia só,
porque a unificação das polícias é possível, até várias dentro do mesmo
Estado.
Istoé
-
E o tipo criminal?
Luiz
Eduardo Soares -
Teríamos uma polícia só para crime organizado, outra só para delitos de
pequeno potencial ofensivo. Mas todas são polícias de ciclo completo, fazem
investigação e trabalho ostensivo. Poderia ter polícia esta-dual unificada para
delitos mais graves, que não envolvam crime organizado. E pode ter uma polícia
pequena só para crime organizado, como se fosse uma Polícia Federal do Estado.
São muitas possibilidades.
Istoé
-
Como fica a União?
Luiz
Eduardo Soares -
Poderia ter atuação destacada na educação policial. No Rio, para ingressar na
UPP o policial é treinado em um mês. Em outros Estados, são oito meses. O Brasil
é uma babel. Tem algo errado. Tem que ter regras básicas universais. Na polícia,
a bagunça, a desordem e a irresponsabilidade nacional, consagradas nesse modelo,
são de tal ordem que formamos policiais em um mês, que têm o mesmo título de
outro profissional formado em um ano. É necessário que haja um Conselho Federal
de Educação Policial, como existe Conselho Federal de Educação. E o Conselho
tinha que estar subordinado ao Ministério da Educação, não no da
Justiça.
Istoé
-
Os policiais foram consultados sobre esses novos modelos?
Luiz
Eduardo Soares -
Fiz uma pesquisa sobre opinião policial, junto com os cientistas sociais
Silvia Ramos e Marcos Rolim. Ouvimos 64.120 profissionais da segurança pública
no Brasil todo. Policiais, guardas municipais, agentes penitenciários. A massa
policial está insatisfeita, se sente alvo de discriminação, de preconceito,
recebe salários indignos, se sente abusada, sente os direitos humanos
desrespeitados. Mais de 70% de todas as polícias consideram esse modelo policial
completamente equivocado, um obstáculo à eficiência. E os militares se sentem
agredidos, humilhados, maltratados pelos oficiais. Acham que os regimentos
disciplinares são inconstitucionais. Pode-se prender sem que haja direito à
defesa, até por um coturno sujo!
Istoé
-
Mas isso não ajuda a manter a disciplina?
Luiz
Eduardo Soares -
De jeito nenhum. Mesmo com toda essa arbitrariedade não se evita a corrupção
e a brutalidade. Estamos no pior dos mundos: policiais maltratados, mal pagos,
se sentindo desrespeitados, não funcionando bem. E a população se sentindo mal
com essa problemática toda. E os números são absurdos: 50 mil homicídios dolosos
por ano e, desses, em média, apenas 8% de casos desvendados com sucesso. Ou
seja: 92% dos crimes mais graves não são nem sequer investigados.
Istoé
-
É o país da impunidade?
Luiz
Eduardo Soares -
Somente em relação ao homicídio doloso. Estamos longe de ser o país da
impunidade. O Brasil tem a quarta população carcerária do mundo. Temos 550 mil
presos, eram 140 mil em 1995.
Istoé
-
O que mais é necessário para democratizar a segurança pública?
Luiz
Eduardo Soares -
Precisamos de uma polícia de ciclo completo, que faça o patrulhamento
ostensivo e o trabalho investigativo. Hoje temos duas polícias (civil e
militar), e cada uma faz metade do serviço. Nosso modelo policial é uma invenção
brasileira que não deu certo. Até porque quando você vai à rua só para prender
no flagrante, talvez esteja perdendo o mais importante. Pega o peixe pequeno e
perde o tubarão. Tem que ter integração. O policiamento ostensivo e a
investigação se complementam.
Istoé
-
O que mais é importante?
Luiz
Eduardo Soares -
É fundamental o estabelecimento de carreira única. Em qualquer polícia do
mundo, se você entra na porteira pode vir a comandar a instituição, menos no
Brasil. Hoje temos nas instituições estaduais quatro polícias de verdade. Na PM
são os praças e oficiais. Na civil, delegados e agentes. São mundos à parte.
Você nunca vai ascender, mesmo que faça o melhor trabalho do mundo, sendo praça.
Mas para quem entra na Escola de Oficiais, o céu é o limite. Isso gera
animosidades internas. Isso separa, gera hostilidade. E esse modelo tem que
acabar na polícia. Isso é o pleito da massa policial.
Istoé
-
O sr. foi secretário de Segurança e não fez as reformas. Por quê?
Luiz
Eduardo Soares -
Por causa da camisa de força constitucional. Não podíamos mudar as polícias.
Mas dentro dos arranjos possíveis fizemos o projeto das Delegacias Legais, que é
uma das únicas políticas públicas do Brasil a atravessar governos de adversários
políticos. São 15 anos desse projeto, apesar da resistência monstruosa que
enfrentei. Fui demitido pelo (Anthony) Garotinho porque entrei em confronto com
a banda podre da polícia. Após minha queda, policiais festejavam e o novo chefe
de polícia dizia: agora estamos livres para trabalhar. Foi uma explosão de autos
de resistência.
Istoé
-
O crescimento do PCC se deve ao modelo policial vigente?
Luiz
Eduardo Soares -
Acho que a resistência do governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) em enfrentar a
brutalidade letal da polícia, sua dificuldade em enfrentar a banda podre, de
confrontar a máquina de morte, com a bênção de setores da Justiça e do
Ministério Público, está no coração da dinâmica terrível de ascensão do PCC.
Durante os primeiros anos, o PCC foi um instrumento de defesa dos presos, de
organização que falava em nome da legalidade que era desrespeitada pelo Estado.
Depois se dissociou das finalidades iniciais. Como já existia como máquina,
poderia servir a outros propósitos, inclusive criminais. E foi o que começou a
acontecer. O PCC deixou de ser instrumento de defesa para ser de ataque. Aí eles
começaram a funcionar como uma organização criminosa.
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