sábado, 12 de outubro de 2013

A triste sina de um médico cubano no Brasil

Carta Capital
Pouco mais de um mês após ser hostilizado em Fortaleza, Juan Melquiades Delgado chega ao município de Zé Doca em meio a mais um fogo cruzado
por Miguel Martins — publicado 07/10/2013 05:03, última modificação 07/10/2013 11:19

Miguel Martins


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De Zé Doca, Maranhão

Se as primeiras impressões são as que ficam, o médico cubano Juan Melquiades Delgado deve estar se perguntando se valeu a pena participar do programa Mais Médicos. Na quarta-feira 2, ele fez sua primeira visita ao Polo Base de Saúde Indígena do município de Zé Doca, no norte do Maranhão, onde vai atender índios das etnias Ka’apor, Awá-Guajá e Tenetehara-Guajajara que moram em reservas próximas à cidade. Ao chegar, testemunhou a ocupação do local por lideranças indígenas a pedir a demissão da equipe responsável pelo local.

Os índios reclamam do mau atendimento, da falta de alimentos aos doentes e acusam a enfermeira Camilla Duraes de sequestrar cartões do Bolsa Família de índios para uso pessoal. Cinco minutos após sua chegada, Delgado observou atônito a uma discussão áspera entre o antropólogo José Mendes Andrade, que dá assistência aos povos originais do Maranhão, e a enfermeira. Enquanto as lideranças documentavam tudo com suas câmeras de celular, o médico, com bastante dificuldade para se comunicar em português, repetia como uma mantra: “Só quero trabalhar em harmonia”.

Ser recebido com protestos vem se tornando rotina para o profissional formado no Instituto de Ciências Médicas Santiago de Cuba. Quando desembarcou em Fortaleza em 26 de agosto, foi hostilizado com uivos, xingamentos e gritos de “escravo” por médicos cearenses. Não à toa, chegou ao polo de saúde de Zé Doca trajando uma camiseta estampada com os dizeres: “Somos escravos da saúde”.

Acompanhado por Ivone Oliveira, psicóloga da Funasa, Delgado foi ao local para conhecer sua futura equipe, mas surpreendeu-se com a ausência do gestor Raimundo Nonato Lopes e de vários técnicos de enfermagem. Contratados pelo Distrito Sanitário Especial Indígena, a maior parte dos membros da Missão Evangélica Caiuá abandonou o posto durante a semana devido aos protestos. As lideranças indígenas exigem a substituição do gestor, do dentista e das duas enfermeiras do polo. Para o cargo principal, querem a contratação de Altemir Everton, do coletivo de saúde do MST.

Segundo a liderança indígena Irakadju, Everton fala com calma e respeito. Como muitos não dominam bem o português, o talento didático contou na escolha. Formado em epidemiologia em Cuba, o fato de falar espanhol também permitira, segundo as lideranças, uma fluidez maior nas relações com Delgado para tocar as atividades do local.

Local não condizente, por sinal, com o que se espera de um posto de saúde. Improvisado em um estabelecimento de finalidade administrativa, o polo não possui qualquer equipamento. Segundo os índios, alguns produtos como cremes dentais e alimentos estão com a validade vencida. Na sala de atendimento, há apenas gazes, esparadrapos e soro fisiológico, comuns a qualquer kit de primeiros socorros. Enquanto isso, baratas e urubus circulam livremente por toda a cidade, onde as condições de saneamento básico são bastante precárias.

Em meio ao protesto, Delgado afirmou aos índios desconhecer os problemas na gestão do polo e pediu mais uma vez “harmonia” para trabalhar. No entanto, ele ainda não pode exercer atividades médicas. Falta o aval do Conselho Regional de Medicina do Maranhão, que entrou na Justiça para não conceder o registro provisório a 37 profissionais sob alegação de “problemas de documentação”. Sem equipe e registro, Melquiades ocupa-se em alugar uma casa para morar em Zé Doca pelos próximos três anos.

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