Revista TPM
Pra entender melhor os riscos que envolvem a aprovação do Projeto de Lei 478, conversamos com advogada Ana Patiño, Doutora em Direito de Família06.06.2013
Texto: Natacha Cortêz
Na última quarta, 5 de junho, foi aprovado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 478, escrito em 2007 por Luiz Bassuma e Miguel Martini, que defende o Estatuto do Nascituro e propõe um novo e preocupante desenho para o cenário da gestação e do aborto no Brasil. O projeto, defendido pela bancada evangélica, é bastante tendencioso e, em seus 29 artigos, privilegia e garante direitos do feto desde a concepção em detrimento dos direitos da mulher.
Com a premissa de que "o nascituro goza da expectativa do direito à vida, à integridade física, à honra, à imagem e de todos os demais direitos da personalidade" e penalizando com 6 meses a 1 ano de cadeia quem fizer publicamente "apologia do aborto ou de quem o praticou", ele praticamente inviailiza qualquer discussão sobre a legalização do aborto no Brasil. Ainda tornariam-se impossibilitadas pesquisas com células-tronco, uma vez que essas seriam também consideradas crimes.
“Ele proíbe o aborto em todas suas formas, inclusive diante de um estupro”, esclarece a advogada paulistana Ana Paula Corrêa Patiño, 43, Mestre em Direito Civil e Doutora em Direito de Família pela USP. É o que diz o artigo 13 do Projeto: "O nascituro concebido em um ato de violência sexual não sofrerá qualquer discriminação ou restrição de direitos". Ou seja, se aprovado, o Projeto causaria um retrocesso, visto que hoje o Código Penal Brasileiro garante o direito ao aborto no caso de violência sexual ou risco de vida para a mãe e para o bebê.
O Estatuto, que ficou conhecido como Bolsa Estupro, prevê ainda o pagamento de pensão pelo Estado para crianças concebidas através de violência sexual no caso do pai – o estuprador – não puder arcar com ela ou não for identificado. Justamente essa conta e a viabilidade dela é que acabam de ser aprovadas na Comissão de Finanças e Tributação.
Conversamos com Ana a fim de entender melhor o Projeto e suas chances reais de ser aprovado como lei.
Tpm. Em primeiro lugar, qual é a relevância do Projeto de Lei 478 ter sido aprovado na Comissão de Finanças?
Ana. Esse é um projeto de lei que ainda pode sofrer várias aprovações. Ele está ligado a vários outros projetos, que podem ser todos votados juntos, pra daí ser aprovado como lei. Primeiro o Projeto passou pela Comissão de Seguridade e Família, em 2010, e foi aprovado. A ex-Deputada Federal Solange Almeida (PMDB-RJ) propôs mudanças nessa época, como por exemplo a permissão do aborto no caso do estupro, ou o aborto para evitar danos para mãe ou para o feto [De acordo com o substitutivo consta a seguinte redação: "O nascituro concedibo em decorrência de estupro terá assegurado os seguintes direitos, ressalvado o disposto no art. 128 do Código Penal Brasileiro"]. Ontem, ele passou pela Comissão de Finanças e Tributação, onde foi analisado apenas se é viável financeiramente para o país esse projeto virar lei.
A gente precisa se preocupar com ele agora?
É necessário, sim, se preocupar com o andamento dele, mas duvido que ele seja aprovado como está. Entendo que é grande a possibilidade dele ser modificado. Agora o Projeto foi levado para a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, onde serão analisadas mais a fundo as necessidades da mulher e do nascituro, e a discussão será mais complicada.
"Existe o risco do aborto entrar para a categoria dos crimes hediondos. Não só quem induz será penalizado, mas a mulher também, mesmo se violentada e estuprada."
Se aprovado da maneira como está, ele anularia o artigo vigente, o 128 [que permite o aborto em caso de estupro ou risco de vida para a gestante e bebê]?
Sim, ele derrogaria o artigo, o tiraria do Código Penal. E a mulher estuprada seria obrigada a ter o filho, ou seria punida. E punida mais do que quem induz o aborto, o que vai contra o artigo vigente. E pior, nesse caso o aborto ainda vira crime hediondo, ao lado de delitos como latrocínio – que é o pior crime que temos no Código Penal Brasileiro, o mais duramente punido - , homicídio, estupro, tráfico de entorpecentes e terrorismo. Todos inafiançáveis.
Mesmo?
Sim, e isso ninguém está dizendo. Existe o risco do aborto entrar para a categoria dos crimes hediondos, que são considerados os piores no nosso Código Penal. E não só quem induz será penalizado, mas a mulher também, mesmo se violentada e estuprada. E laboratórios que manipulam ou congelam o feto também – ou seja, cientistas que o usam para pesquisa e material de experimentação genética.
E qual é a possibilidade do Projeto virar lei como está escrito agora?
Acredito que as possibilidades são muito pequenas. Porque isso vai contra toda a política criminal brasileira, e contra a construção do próprio Código Penal. Eu realmente acredito que esse projeto não vá passar, primeiro porque é absurdo quanto a mulher, depois porque a política de inserir novos crimes como hediondos deve seguir uma certa lógica.
"Acredito que as possibilidades [do projeto virar lei do jeito que está] são muito pequenas. Porque isso vai contra toda a política criminal brasileira, e contra a construção do próprio Código Penal."
A aprovação desse Projeto de Lei não foi noticiada com força e alarde na imprensa, a não ser em blogs e fanpages feministas.
Não foi mesmo. Porque ele apenas passou pela Comissão de Finanças e Tributação. Então, nenhum Deputado nessa Comissão analisou questões humanas, só adequações orçamentárias.
Então se ele passar pela próxima Comissão, pode ser que isso vire de fato notícia?
Sim. E qualquer jurista que analisar o Projeto vai entender que a mulher está sendo punida muito mais do que se deseja.
"O Projeto apenas passou pela Comissão de Finanças e Tributação. Nenhum Deputado nessa Comissão analisou questões humanas, só adequações orçamentárias."
Existe algum projeto de lei em andamento atualmente que segue o caminho de descriminalizar o aborto?
Desconheço. Existe um projeto para a reformulação do Código Penal. Esse é o mais forte que existe. E sei que existem as discussões sobre isso. Mas sim, é possível qualquer Deputado propor essa lei em qualquer momento.
O que a lei atual sobre o aborto no Brasil diz?
Ele pune a mulher que provoca seu próprio aborto, com reclusão de 1 a 3 anos. Pra quem induzir o aborto sem o consentimento da gestante, por exemplo uma agressão que o cause, a pena é de 3 a 10 anos; com o consentimento dela, por exemplo clínicas e médicos, de 1 a 4 anos. A política criminal vigente tem a tendência de punir mais quem induz o aborto, e não quem pede por ele. Se a mulher disser em uma clínica “Eu quero o aborto”, ela é presa de 1 a 3 anos, enquanto o médico que realizou, de 1 a 4 anos. Existe ainda um aumento de pena caso a gestante morra.
E no Projeto de Lei 478 é o contrário.
Sim. A gestante é mais duramente punida, mais do quem o fez, no caso do médico. E se é estuprada, não tem direito de abortar. E então, como consequência, o Estado garante a tal Bolsa Estupro.
E como seria o caminho pra tirar o aborto do Código Penal?
Casos pequenos vão mudando a realidade. O Poder Judiciário vai sendo provocado aos poucos. Um Deputado diz algo, um outro caso é levado ao Supremo Tribunal Federal. E por aí vai.
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Ou seja, apesar do cenário parecer negro, o Projeto de Lei 478 pode levar anos entre ser discutido, modificado e legalizado e muito dificilmente permanecerá como escrito agora. Isso porque está em desalinho com o atual Código Penal Brasileiro e, segundo Ana, quando isso acontece a tendência é afinar o projeto para adequá-lo ao código vigente. De qualquer maneira, é importante que a sociedade se manifeste sobre o assunto para firmar posições e impedir um retrocesso nos direitos da mulher.
A Tpm se manifestou a favor da descriminalização do aborto na edição #41, em 2005. Não acreditamos que a mulher que opta por interromper a gravidez seja criminosa, como está escrito no Código Penal Brasileiro, elaborado em 1940 e mais rígido até do que o iraniano no que diz respeito a essa questão. Para nós, a discussão sobre a descriminalização transcende abordagens de cunho religioso, ético ou moral. Leia aqui reportagem completa sobre o assunto: http://revistatpm.uol.com.br/revista/41/reportagens/descriminalize-ja.html
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Para ler o Projeto de Lei na íntegra: http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=770928&filename=Parecer-CSSF-19-05-2010
Petição online contra o projeto: http://www.avaaz.org/po/petition/Diga_NAO_ao_Estatuto_do_Nascituro_PL_4782007/?frnZXdb&pv=149
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