http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/10/decretem-nossa-extincao-e-nos-enterrem-aqui.html
A declaração de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovás
demonstra a incompetência do Estado brasileiro para cumprir a Constituição de
1988 e mostra que somos todos cúmplices de genocídio – uma parte de nós por
ação, outra por omissão
ELIANE BRUM
Eliane Brum, jornalista, escritora e
documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de
reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros
de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios),
A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e
O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma
História Severina e Gretchen Filme Estrada.
elianebrum@uol.com.br@brumelianebrum (Foto: ÉPOCA)
- Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de
despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui.
Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total,
além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar
nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais.
O trecho pertence à carta de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio
no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As
palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia dos
Guaranis Caiovás), após receberem a notícia de que a Justiça Federal decretou
sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Decidiram
ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com tudo o que são, na terra
que lhes pertence.
Há cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1º de maio de 1500, que são
documentos de fundação do Brasil: fundam uma nação, ainda sequer imaginada, a
partir do olhar estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes
que nela vivem. E há cartas, como a dos Guaranis Caiovás, escritas mais de 500
anos depois, que são documentos de falência. Não só no sentido da incapacidade
do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na
Constituição hoje em vigor, mas também dos princípios mais elementares que
forjaram nosso ideal de humanidade na formação do que se convencionou chamar de
“o povo brasileiro”. A partir da carta dos Guaranis Caiovás, tornamo-nos
cúmplices de genocídio. Sempre fomos, mas tornar-se é saber que se é.
Os Guaranis Caiovás avisam-nos por carta que, depois de tantas décadas de
luta para viver, descobriram que agora só lhes resta morrer. Avisam a todos nós
que morrerão como viveram: coletivamente, conjugados no plural.
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:
- Queremos deixar evidente ao Governo e à Justiça Federal que, por fim, já
perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso
território antigo. Não acreditamos mais na Justiça Brasileira. A quem vamos
denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do
Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências
contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos
morrer todos, mesmo, em pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva de vida
digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui
acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4 mortes, sendo que 2
morreram por meio de suicídio, 2 em decorrência de espancamento e tortura de
pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um ano.
Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos
até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para
recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito
bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de
nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos
antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e
enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. (…) Não
temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da
Justiça Federal de Navirai-MS.
Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva? Não
podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai
morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos,
que até hoje têm na violência sua principal intersecção.
Desde o ínicio do século XX, com mais afinco a partir do Estado Novo
(1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a ocupação pelos brancos da terra dos
Guaranis Caiovás. Os indígenas, que sempre viveram lá, começaram a ser
confinados em reservas pelo governo federal, para liberar suas terras para os
colonos que chegavam, no que se chamou de “A Grande Marcha para o Oeste”. A
visão era a mesma que até hoje persiste no senso comum: “terra desocupada” ou
“não há ninguém lá, só índio”.
Era de gente que se tratava, mas o que se fez na época foi confiná-los como
gado, num espaço de terra pequeno demais para que pudessem viver ao seu modo –
ou, na palavra que é deles, Teko Porã (“o Bem Viver”). Com a chegada dos
colonos, os indígenas passaram a ter três destinos: ou as reservas ou trabalhar
nas fazendas como mão de obra semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se
rebelou foi massacrado. Para os Guaranis Caiovás, a terra a qual pertencem é a
terra onde estão sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é uma
mercadoria – a terra é.
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonização do Mato Grosso do Sul se
intensificou. Um grande número de sulistas, gaúchos mais do que todos, migrou
para o território para ocupar a terra dos índios. Outros despacharam peões e
pistoleiros, administrando a matança de longe, bem acomodados em suas cidades de
origem, onde viviam – e vivem até hoje – como “cidadãos de bem”, fingindo que
não têm sangue nas mãos.
+Leia
também: Um tragédia indígena+Fotos: Guarani-caiová
Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 representou uma
mudança de olhar e uma esperança de justiça. Os territórios indígenas deveriam
ser demarcados pelo Estado no prazo de cinco anos. Como sabemos, não foi. O
processo de identificação, declaração, demarcação e homologação das terras
indígenas tem sido lento, sensível a pressões dos grandes proprietários de
terras e da parcela retrógrada do agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já
estão homologadas, em muitas o governo federal não completou a desintrusão – a
retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e fazendeiros –,
aprofundando os conflitos.
Nestas últimas décadas
testemunhamos o genocídio dos Guaranis Caiovás. Em geral, a situação dos
indígenas brasileiros é vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis Caiovás, o segundo
grupo mais numeroso do país, é considerada a pior de todas. Confinados em
reservas como a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos
familiares, ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa situação de colapso.
Sem poder viver segundo a sua cultura, totalmente encurralados, imersos numa
natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo dos adultos e pela subnutrição das
crianças, os índices de homicídio da reserva são maiores do que em zonas em
estado de guerra.
A situação em Dourados é tão aterradora que provocou a seguinte afirmação da
vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat: “A reserva de Dourados é
talvez a maior tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Segundo
um relatório do Conselho
Indigenista Missionário (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o
índice de assassinatos na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil
habitantes – no Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil.
Comparado à média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de Dourados é
495% maior.
A cada seis dias, um jovem Guarani Caiová se suicida. Desde 1980, cerca de
1500 tiraram a própria vida. A maioria deles enforcou-se num pé de árvore. Entre
as várias causas elencadas pelos pesquisadores está o fato de que, neste período
da vida, os jovens precisam formar sua família e as perspectivas de futuro são
ou trabalhar na cana de açúcar ou virar mendigos. O futuro, portanto, é um não
ser aquilo que se é. Algo que, talvez para muitos deles, seja pior do que a
morte.
Um relatório do Ministério da Saúde mostrou, neste ano, o que chamou de
“dados alarmantes, se destacando tanto no cenário nacional quanto
internacional”. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70%
cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o
índice de suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os
indígenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de
suicídios entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados
oficiais. Os pesquisadores acreditam que os números devem ser ainda maiores, já
que parte dos suicídios é escondida pelos grupos familiares por questões
culturais.
As lideranças Guaranis Caiovás não permaneceram impassíveis diante deste
presente sem futuro. Começaram a se organizar para denunciar o genocídio do seu
povo e reivindicar o cumprimento da Constituição. Até hoje, mais de 20 delas
morreram assassinadas por ferirem os interesses privados de fazendeiros da
região, a começar por Marçal de Souza, em 1983, cujo assassinato ganhou
repercussão internacional. Ao mesmo tempo, grupos de Guaranis Caiovás
abandonaram o confinamento das reservas e passaram a buscar suas
tekohá, terras originais, na luta pela retomada do território e do
direito à vida. Alguns grupos ocuparam fundos de fazendas, outros montaram 30
acampamentos à beira da estrada, numa situação de absoluta indignidade. Tanto
nas reservas quanto fora delas, a desnutrição infantil é avassaladora.
A trajetória dos Guaranis Caiovás que anunciaram sua morte coletiva ilustra
bem o destino ao qual o Estado brasileiro os condenou. Homens, mulheres e
crianças empreenderam um caminho em busca da terra tradicional, localizada às
margens do Rio Hovy, no município de Iguatemi (MS). Acamparam em sua terra no
dia 8 de agosto de 2011, nos fundos de fazendas. Em 23 de agosto foram atacados
e cercados por pistoleiros, a mando dos fazendeiros. Em um ano, os pistoleiros
já derrubaram dez vezes a ponte móvel feitas por eles para atravessar um rio com
30 metros de largura e três de fundura. Em um ano, dois indígenas foram
torturados e mortos pelos pistoleiros, outros dois se suicidaram.
Em tentativas anteriores de recuperação desta mesma terra, os Guaranis
Caiovás já tinham sido espancados e ameaçados com armas de fogo. Alguns deles
tiveram seus olhos vendados e foram jogados na beira da estrada. Em outra
ocasião, mulheres, velhos e crianças tiveram seus braços e pernas fraturados. O
que a Justiça Federal fez? Deferiu uma ordem de despejo. Em nota, a FUNAI
(Fundação Nacional do Índio) afirmou que “está trabalhando para reverter a
decisão”.
Os Guaranis Caiovás estão sendo assassinados há muito tempo, de todas as
formas disponíveis, as concretas e as simbólicas. “A impunidade é a maior
agressão cometida contra eles”, afirma Flávio Machado, coordenador do CIMI no
Mato Grosso do Sul. Nas últimas décadas, há pelo menos duas formas interligadas
de violência no processo de recuperação da terra tradicional dos indígenas: uma
privada, das milícias de pistoleiros organizadas pelos fazendeiros; outra do
Estado, perpetrada pela Justiça Federal, na qual parte dos juízes, sem qualquer
conhecimento da realidade vivida na região, toma decisões que não só compactuam
com a violência , como a acirram.
“Quando os pistoleiros não conseguem consumar os despejos e massacres
truculentos dos indígenas, os fazendeiros contratam advogados para conseguir a
ordem de despejo na Justiça”, afirma Egon Heck, indigenista e cientista
político, num artigo publicado em relatório do CIMI. “No momento em que ocorre a
ordem de despejo, os agentes policiais agem de modo similar ao dos pistoleiros,
visto que utilizam armas pesadas, queimam as ocas, ameaçam e assustam as
crianças, mulheres e idosos.”
Ao fundo, o quadro maior: os sucessivos governos que se alternaram no poder
após a Constituição de 1988 foram incompetentes para cumpri-la. Ao final de seus
dois mandatos, Lula reconheceu que deixava o governo com essa dívida junto ao
povo Guarani Caiová. Legava a tarefa à sua sucessora, Dilma Rousseff. Os
indígenas escreveram, então, uma carta: “Presidente Dilma, a questão das nossas
terras já era para ter sido resolvida há décadas. Mas todos os governos lavaram
as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por ultimo, o ex-presidente Lula
prometeu, se comprometeu, mas não resolveu. Reconheceu que ficou com essa dívida
para com nosso povo Guarani Caiová e passou a solução para suas mãos. E nós não
podemos mais esperar. Não nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase
todos os dias. Não deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se
suicidem por falta de esperança de futuro (…) Devolvam nossas condições de vida
que são nossos tekohá, nossas terras tradicionais. Não estamos pedindo
nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do Brasil e
internacionais”.
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás ecoou nas redes sociais na semana
passada. Gerou uma comoção. Não é a primeira vez que indígenas anunciam seu
desespero e seu genocídio. Em geral, quase ninguém escuta, para além dos mesmos
de sempre, e o que era morte anunciada vira morte consumada. Talvez a diferença
desta carta é o fato de ela ecoar algo que é repetido nas mais variadas esferas
da sociedade brasileira, em ambientes os mais diversos, considerado até um
comentário espirituoso em certos espaços intelectualizados: a ideia de que a
sociedade brasileira estaria melhor sem os índios.
Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive
boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se
tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço
empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas
ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável
entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho
possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa
riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230
etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.
Toda a História do Brasil, a partir da “descoberta” e da colonização, é
marcada pelo olhar de que o índio é um entrave no caminho do “progresso” ou do
“desenvolvimento”. Entrave desde os primórdios – primeiro, porque teve a
deselegância de estar aqui antes dos portugueses; em seguida, porque se rebelava
ao ser escravizado pelos invasores europeus. A sociedade brasileira se
constituiu com essa ideia e ainda que a própria sociedade tenha mudado em muitos
aspectos, a concepção do índio como um entrave persiste. E persiste de forma
impressionante, não só para uma parte significativa da população, mas para
setores do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestões passadas.
“Entraves” precisam ser removidos. E têm sido, de várias maneiras, como a
História, a passada e a presente, nos mostra. Talvez essa seja uma das
explicações possíveis para o impacto da carta de morte ter alcançado um universo
maior de pessoas. Desta vez, são os índios que nos dizem algo que pode ser
compreendido da seguinte forma: “É isso o que vocês querem? Nos matar a todos?
Então nós decidimos: vamos morrer”. Ao devolver o desejo a quem o deseja, o
impacto é grande.
É importante lembrar que carta é palavra. A declaração de morte coletiva
surge como palavra dita. Por isso precisamos compreender, pelo menos um pouco, o
que é a palavra para os Guaranis Caiovás. Em um texto muito bonito,
intitulado Ñe'ẽ – a palavra alma, a antropóloga Graciela Chamorro, da
Universidade Federal da Grande Dourados, nos dá algumas pistas:
“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os
povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da
vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o
momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança.
A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em
pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da
criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade.
(...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas
como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os
rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a
palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais
lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma
palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos
tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra
sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se
mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não
uma parte, mas a vida como um todo.”
A fala, diz o antropólogo Spensy Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos
Ameríndios da Universidade de São Paulo, é a parte mais sublime do ser humano
para os Guaranis Caiovás. “A palavra é o cerne da resistência. Tem uma ação no
mundo – é uma palavra que age. Faz as coisas acontecerem, faz o futuro. O limite
entre o discurso e a profecia é tênue.”
Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o nascimento do Brasil pela palavra
escrita, é interessante pensar o que marca a carta dos Guaranis Caiovás mais de
500 anos depois. Na carta-fundadora, é o
invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem estranha e olha para os
índios, para sua cultura e para sua terra. Na dos Guaranis Caiovás, são os
índios que olham para nós. O que nos dizem aqueles que nos veem? (Ou o que veem
aqueles que nos dizem?)
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás é “palavra que age”. Antes que o
espasmo de nossa comoção de sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena
uma última pergunta: para nós, o que é a palavra?
Eliane Brum escreve às segundas-feiras.
A declaração de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovás demonstra a incompetência do Estado brasileiro para cumprir a Constituição de 1988 e mostra que somos todos cúmplices de genocídio – uma parte de nós por ação, outra por omissão
ELIANE BRUM
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada. elianebrum@uol.com.br@brumelianebrum (Foto: ÉPOCA)
- Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de
despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui.
Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total,
além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar
nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais.
O trecho pertence à carta de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia dos Guaranis Caiovás), após receberem a notícia de que a Justiça Federal decretou sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com tudo o que são, na terra que lhes pertence.
Há cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1º de maio de 1500, que são documentos de fundação do Brasil: fundam uma nação, ainda sequer imaginada, a partir do olhar estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes que nela vivem. E há cartas, como a dos Guaranis Caiovás, escritas mais de 500 anos depois, que são documentos de falência. Não só no sentido da incapacidade do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na Constituição hoje em vigor, mas também dos princípios mais elementares que forjaram nosso ideal de humanidade na formação do que se convencionou chamar de “o povo brasileiro”. A partir da carta dos Guaranis Caiovás, tornamo-nos cúmplices de genocídio. Sempre fomos, mas tornar-se é saber que se é.
Os Guaranis Caiovás avisam-nos por carta que, depois de tantas décadas de luta para viver, descobriram que agora só lhes resta morrer. Avisam a todos nós que morrerão como viveram: coletivamente, conjugados no plural.
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:
- Queremos deixar evidente ao Governo e à Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo. Não acreditamos mais na Justiça Brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4 mortes, sendo que 2 morreram por meio de suicídio, 2 em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. (…) Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.
Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva? Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que até hoje têm na violência sua principal intersecção.
Desde o ínicio do século XX, com mais afinco a partir do Estado Novo (1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a ocupação pelos brancos da terra dos Guaranis Caiovás. Os indígenas, que sempre viveram lá, começaram a ser confinados em reservas pelo governo federal, para liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que se chamou de “A Grande Marcha para o Oeste”. A visão era a mesma que até hoje persiste no senso comum: “terra desocupada” ou “não há ninguém lá, só índio”.
Era de gente que se tratava, mas o que se fez na época foi confiná-los como gado, num espaço de terra pequeno demais para que pudessem viver ao seu modo – ou, na palavra que é deles, Teko Porã (“o Bem Viver”). Com a chegada dos colonos, os indígenas passaram a ter três destinos: ou as reservas ou trabalhar nas fazendas como mão de obra semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou foi massacrado. Para os Guaranis Caiovás, a terra a qual pertencem é a terra onde estão sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é uma mercadoria – a terra é.
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonização do Mato Grosso do Sul se intensificou. Um grande número de sulistas, gaúchos mais do que todos, migrou para o território para ocupar a terra dos índios. Outros despacharam peões e pistoleiros, administrando a matança de longe, bem acomodados em suas cidades de origem, onde viviam – e vivem até hoje – como “cidadãos de bem”, fingindo que não têm sangue nas mãos.
+Leia também: Um tragédia indígena+Fotos: Guarani-caiová
Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 representou uma mudança de olhar e uma esperança de justiça. Os territórios indígenas deveriam ser demarcados pelo Estado no prazo de cinco anos. Como sabemos, não foi. O processo de identificação, declaração, demarcação e homologação das terras indígenas tem sido lento, sensível a pressões dos grandes proprietários de terras e da parcela retrógrada do agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já estão homologadas, em muitas o governo federal não completou a desintrusão – a retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e fazendeiros –, aprofundando os conflitos.
Nestas últimas décadas testemunhamos o genocídio dos Guaranis Caiovás. Em geral, a situação dos indígenas brasileiros é vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis Caiovás, o segundo grupo mais numeroso do país, é considerada a pior de todas. Confinados em reservas como a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos familiares, ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa situação de colapso. Sem poder viver segundo a sua cultura, totalmente encurralados, imersos numa natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo dos adultos e pela subnutrição das crianças, os índices de homicídio da reserva são maiores do que em zonas em estado de guerra.
A situação em Dourados é tão aterradora que provocou a seguinte afirmação da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat: “A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Segundo um relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o índice de assassinatos na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes – no Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil. Comparado à média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de Dourados é 495% maior.
A cada seis dias, um jovem Guarani Caiová se suicida. Desde 1980, cerca de 1500 tiraram a própria vida. A maioria deles enforcou-se num pé de árvore. Entre as várias causas elencadas pelos pesquisadores está o fato de que, neste período da vida, os jovens precisam formar sua família e as perspectivas de futuro são ou trabalhar na cana de açúcar ou virar mendigos. O futuro, portanto, é um não ser aquilo que se é. Algo que, talvez para muitos deles, seja pior do que a morte.
Um relatório do Ministério da Saúde mostrou, neste ano, o que chamou de “dados alarmantes, se destacando tanto no cenário nacional quanto internacional”. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o índice de suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os indígenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de suicídios entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados oficiais. Os pesquisadores acreditam que os números devem ser ainda maiores, já que parte dos suicídios é escondida pelos grupos familiares por questões culturais.
As lideranças Guaranis Caiovás não permaneceram impassíveis diante deste presente sem futuro. Começaram a se organizar para denunciar o genocídio do seu povo e reivindicar o cumprimento da Constituição. Até hoje, mais de 20 delas morreram assassinadas por ferirem os interesses privados de fazendeiros da região, a começar por Marçal de Souza, em 1983, cujo assassinato ganhou repercussão internacional. Ao mesmo tempo, grupos de Guaranis Caiovás abandonaram o confinamento das reservas e passaram a buscar suas tekohá, terras originais, na luta pela retomada do território e do direito à vida. Alguns grupos ocuparam fundos de fazendas, outros montaram 30 acampamentos à beira da estrada, numa situação de absoluta indignidade. Tanto nas reservas quanto fora delas, a desnutrição infantil é avassaladora.
A trajetória dos Guaranis Caiovás que anunciaram sua morte coletiva ilustra bem o destino ao qual o Estado brasileiro os condenou. Homens, mulheres e crianças empreenderam um caminho em busca da terra tradicional, localizada às margens do Rio Hovy, no município de Iguatemi (MS). Acamparam em sua terra no dia 8 de agosto de 2011, nos fundos de fazendas. Em 23 de agosto foram atacados e cercados por pistoleiros, a mando dos fazendeiros. Em um ano, os pistoleiros já derrubaram dez vezes a ponte móvel feitas por eles para atravessar um rio com 30 metros de largura e três de fundura. Em um ano, dois indígenas foram torturados e mortos pelos pistoleiros, outros dois se suicidaram.
Em tentativas anteriores de recuperação desta mesma terra, os Guaranis Caiovás já tinham sido espancados e ameaçados com armas de fogo. Alguns deles tiveram seus olhos vendados e foram jogados na beira da estrada. Em outra ocasião, mulheres, velhos e crianças tiveram seus braços e pernas fraturados. O que a Justiça Federal fez? Deferiu uma ordem de despejo. Em nota, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) afirmou que “está trabalhando para reverter a decisão”.
Os Guaranis Caiovás estão sendo assassinados há muito tempo, de todas as formas disponíveis, as concretas e as simbólicas. “A impunidade é a maior agressão cometida contra eles”, afirma Flávio Machado, coordenador do CIMI no Mato Grosso do Sul. Nas últimas décadas, há pelo menos duas formas interligadas de violência no processo de recuperação da terra tradicional dos indígenas: uma privada, das milícias de pistoleiros organizadas pelos fazendeiros; outra do Estado, perpetrada pela Justiça Federal, na qual parte dos juízes, sem qualquer conhecimento da realidade vivida na região, toma decisões que não só compactuam com a violência , como a acirram.
“Quando os pistoleiros não conseguem consumar os despejos e massacres truculentos dos indígenas, os fazendeiros contratam advogados para conseguir a ordem de despejo na Justiça”, afirma Egon Heck, indigenista e cientista político, num artigo publicado em relatório do CIMI. “No momento em que ocorre a ordem de despejo, os agentes policiais agem de modo similar ao dos pistoleiros, visto que utilizam armas pesadas, queimam as ocas, ameaçam e assustam as crianças, mulheres e idosos.”
Ao fundo, o quadro maior: os sucessivos governos que se alternaram no poder após a Constituição de 1988 foram incompetentes para cumpri-la. Ao final de seus dois mandatos, Lula reconheceu que deixava o governo com essa dívida junto ao povo Guarani Caiová. Legava a tarefa à sua sucessora, Dilma Rousseff. Os indígenas escreveram, então, uma carta: “Presidente Dilma, a questão das nossas terras já era para ter sido resolvida há décadas. Mas todos os governos lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por ultimo, o ex-presidente Lula prometeu, se comprometeu, mas não resolveu. Reconheceu que ficou com essa dívida para com nosso povo Guarani Caiová e passou a solução para suas mãos. E nós não podemos mais esperar. Não nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase todos os dias. Não deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se suicidem por falta de esperança de futuro (…) Devolvam nossas condições de vida que são nossos tekohá, nossas terras tradicionais. Não estamos pedindo nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do Brasil e internacionais”.
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás ecoou nas redes sociais na semana passada. Gerou uma comoção. Não é a primeira vez que indígenas anunciam seu desespero e seu genocídio. Em geral, quase ninguém escuta, para além dos mesmos de sempre, e o que era morte anunciada vira morte consumada. Talvez a diferença desta carta é o fato de ela ecoar algo que é repetido nas mais variadas esferas da sociedade brasileira, em ambientes os mais diversos, considerado até um comentário espirituoso em certos espaços intelectualizados: a ideia de que a sociedade brasileira estaria melhor sem os índios.
Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.
Toda a História do Brasil, a partir da “descoberta” e da colonização, é marcada pelo olhar de que o índio é um entrave no caminho do “progresso” ou do “desenvolvimento”. Entrave desde os primórdios – primeiro, porque teve a deselegância de estar aqui antes dos portugueses; em seguida, porque se rebelava ao ser escravizado pelos invasores europeus. A sociedade brasileira se constituiu com essa ideia e ainda que a própria sociedade tenha mudado em muitos aspectos, a concepção do índio como um entrave persiste. E persiste de forma impressionante, não só para uma parte significativa da população, mas para setores do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestões passadas.
“Entraves” precisam ser removidos. E têm sido, de várias maneiras, como a História, a passada e a presente, nos mostra. Talvez essa seja uma das explicações possíveis para o impacto da carta de morte ter alcançado um universo maior de pessoas. Desta vez, são os índios que nos dizem algo que pode ser compreendido da seguinte forma: “É isso o que vocês querem? Nos matar a todos? Então nós decidimos: vamos morrer”. Ao devolver o desejo a quem o deseja, o impacto é grande.
É importante lembrar que carta é palavra. A declaração de morte coletiva surge como palavra dita. Por isso precisamos compreender, pelo menos um pouco, o que é a palavra para os Guaranis Caiovás. Em um texto muito bonito, intitulado Ñe'ẽ – a palavra alma, a antropóloga Graciela Chamorro, da Universidade Federal da Grande Dourados, nos dá algumas pistas:
“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.”
A fala, diz o antropólogo Spensy Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo, é a parte mais sublime do ser humano para os Guaranis Caiovás. “A palavra é o cerne da resistência. Tem uma ação no mundo – é uma palavra que age. Faz as coisas acontecerem, faz o futuro. O limite entre o discurso e a profecia é tênue.”
Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o nascimento do Brasil pela palavra escrita, é interessante pensar o que marca a carta dos Guaranis Caiovás mais de 500 anos depois. Na carta-fundadora, é o invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem estranha e olha para os índios, para sua cultura e para sua terra. Na dos Guaranis Caiovás, são os índios que olham para nós. O que nos dizem aqueles que nos veem? (Ou o que veem aqueles que nos dizem?)
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás é “palavra que age”. Antes que o espasmo de nossa comoção de sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena uma última pergunta: para nós, o que é a palavra?
Eliane Brum escreve às segundas-feiras.
O trecho pertence à carta de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia dos Guaranis Caiovás), após receberem a notícia de que a Justiça Federal decretou sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com tudo o que são, na terra que lhes pertence.
Há cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1º de maio de 1500, que são documentos de fundação do Brasil: fundam uma nação, ainda sequer imaginada, a partir do olhar estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes que nela vivem. E há cartas, como a dos Guaranis Caiovás, escritas mais de 500 anos depois, que são documentos de falência. Não só no sentido da incapacidade do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na Constituição hoje em vigor, mas também dos princípios mais elementares que forjaram nosso ideal de humanidade na formação do que se convencionou chamar de “o povo brasileiro”. A partir da carta dos Guaranis Caiovás, tornamo-nos cúmplices de genocídio. Sempre fomos, mas tornar-se é saber que se é.
Os Guaranis Caiovás avisam-nos por carta que, depois de tantas décadas de luta para viver, descobriram que agora só lhes resta morrer. Avisam a todos nós que morrerão como viveram: coletivamente, conjugados no plural.
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam:
- Queremos deixar evidente ao Governo e à Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo. Não acreditamos mais na Justiça Brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4 mortes, sendo que 2 morreram por meio de suicídio, 2 em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. (…) Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.
Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva? Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que até hoje têm na violência sua principal intersecção.
Desde o ínicio do século XX, com mais afinco a partir do Estado Novo (1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a ocupação pelos brancos da terra dos Guaranis Caiovás. Os indígenas, que sempre viveram lá, começaram a ser confinados em reservas pelo governo federal, para liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que se chamou de “A Grande Marcha para o Oeste”. A visão era a mesma que até hoje persiste no senso comum: “terra desocupada” ou “não há ninguém lá, só índio”.
Era de gente que se tratava, mas o que se fez na época foi confiná-los como gado, num espaço de terra pequeno demais para que pudessem viver ao seu modo – ou, na palavra que é deles, Teko Porã (“o Bem Viver”). Com a chegada dos colonos, os indígenas passaram a ter três destinos: ou as reservas ou trabalhar nas fazendas como mão de obra semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou foi massacrado. Para os Guaranis Caiovás, a terra a qual pertencem é a terra onde estão sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é uma mercadoria – a terra é.
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonização do Mato Grosso do Sul se intensificou. Um grande número de sulistas, gaúchos mais do que todos, migrou para o território para ocupar a terra dos índios. Outros despacharam peões e pistoleiros, administrando a matança de longe, bem acomodados em suas cidades de origem, onde viviam – e vivem até hoje – como “cidadãos de bem”, fingindo que não têm sangue nas mãos.
+Leia também: Um tragédia indígena+Fotos: Guarani-caiová
Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 representou uma mudança de olhar e uma esperança de justiça. Os territórios indígenas deveriam ser demarcados pelo Estado no prazo de cinco anos. Como sabemos, não foi. O processo de identificação, declaração, demarcação e homologação das terras indígenas tem sido lento, sensível a pressões dos grandes proprietários de terras e da parcela retrógrada do agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já estão homologadas, em muitas o governo federal não completou a desintrusão – a retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e fazendeiros –, aprofundando os conflitos.
Nestas últimas décadas testemunhamos o genocídio dos Guaranis Caiovás. Em geral, a situação dos indígenas brasileiros é vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis Caiovás, o segundo grupo mais numeroso do país, é considerada a pior de todas. Confinados em reservas como a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos familiares, ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa situação de colapso. Sem poder viver segundo a sua cultura, totalmente encurralados, imersos numa natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo dos adultos e pela subnutrição das crianças, os índices de homicídio da reserva são maiores do que em zonas em estado de guerra.
A situação em Dourados é tão aterradora que provocou a seguinte afirmação da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat: “A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Segundo um relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o índice de assassinatos na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes – no Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil. Comparado à média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de Dourados é 495% maior.
A cada seis dias, um jovem Guarani Caiová se suicida. Desde 1980, cerca de 1500 tiraram a própria vida. A maioria deles enforcou-se num pé de árvore. Entre as várias causas elencadas pelos pesquisadores está o fato de que, neste período da vida, os jovens precisam formar sua família e as perspectivas de futuro são ou trabalhar na cana de açúcar ou virar mendigos. O futuro, portanto, é um não ser aquilo que se é. Algo que, talvez para muitos deles, seja pior do que a morte.
Um relatório do Ministério da Saúde mostrou, neste ano, o que chamou de “dados alarmantes, se destacando tanto no cenário nacional quanto internacional”. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o índice de suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os indígenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de suicídios entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados oficiais. Os pesquisadores acreditam que os números devem ser ainda maiores, já que parte dos suicídios é escondida pelos grupos familiares por questões culturais.
As lideranças Guaranis Caiovás não permaneceram impassíveis diante deste presente sem futuro. Começaram a se organizar para denunciar o genocídio do seu povo e reivindicar o cumprimento da Constituição. Até hoje, mais de 20 delas morreram assassinadas por ferirem os interesses privados de fazendeiros da região, a começar por Marçal de Souza, em 1983, cujo assassinato ganhou repercussão internacional. Ao mesmo tempo, grupos de Guaranis Caiovás abandonaram o confinamento das reservas e passaram a buscar suas tekohá, terras originais, na luta pela retomada do território e do direito à vida. Alguns grupos ocuparam fundos de fazendas, outros montaram 30 acampamentos à beira da estrada, numa situação de absoluta indignidade. Tanto nas reservas quanto fora delas, a desnutrição infantil é avassaladora.
A trajetória dos Guaranis Caiovás que anunciaram sua morte coletiva ilustra bem o destino ao qual o Estado brasileiro os condenou. Homens, mulheres e crianças empreenderam um caminho em busca da terra tradicional, localizada às margens do Rio Hovy, no município de Iguatemi (MS). Acamparam em sua terra no dia 8 de agosto de 2011, nos fundos de fazendas. Em 23 de agosto foram atacados e cercados por pistoleiros, a mando dos fazendeiros. Em um ano, os pistoleiros já derrubaram dez vezes a ponte móvel feitas por eles para atravessar um rio com 30 metros de largura e três de fundura. Em um ano, dois indígenas foram torturados e mortos pelos pistoleiros, outros dois se suicidaram.
Em tentativas anteriores de recuperação desta mesma terra, os Guaranis Caiovás já tinham sido espancados e ameaçados com armas de fogo. Alguns deles tiveram seus olhos vendados e foram jogados na beira da estrada. Em outra ocasião, mulheres, velhos e crianças tiveram seus braços e pernas fraturados. O que a Justiça Federal fez? Deferiu uma ordem de despejo. Em nota, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) afirmou que “está trabalhando para reverter a decisão”.
Os Guaranis Caiovás estão sendo assassinados há muito tempo, de todas as formas disponíveis, as concretas e as simbólicas. “A impunidade é a maior agressão cometida contra eles”, afirma Flávio Machado, coordenador do CIMI no Mato Grosso do Sul. Nas últimas décadas, há pelo menos duas formas interligadas de violência no processo de recuperação da terra tradicional dos indígenas: uma privada, das milícias de pistoleiros organizadas pelos fazendeiros; outra do Estado, perpetrada pela Justiça Federal, na qual parte dos juízes, sem qualquer conhecimento da realidade vivida na região, toma decisões que não só compactuam com a violência , como a acirram.
“Quando os pistoleiros não conseguem consumar os despejos e massacres truculentos dos indígenas, os fazendeiros contratam advogados para conseguir a ordem de despejo na Justiça”, afirma Egon Heck, indigenista e cientista político, num artigo publicado em relatório do CIMI. “No momento em que ocorre a ordem de despejo, os agentes policiais agem de modo similar ao dos pistoleiros, visto que utilizam armas pesadas, queimam as ocas, ameaçam e assustam as crianças, mulheres e idosos.”
Ao fundo, o quadro maior: os sucessivos governos que se alternaram no poder após a Constituição de 1988 foram incompetentes para cumpri-la. Ao final de seus dois mandatos, Lula reconheceu que deixava o governo com essa dívida junto ao povo Guarani Caiová. Legava a tarefa à sua sucessora, Dilma Rousseff. Os indígenas escreveram, então, uma carta: “Presidente Dilma, a questão das nossas terras já era para ter sido resolvida há décadas. Mas todos os governos lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por ultimo, o ex-presidente Lula prometeu, se comprometeu, mas não resolveu. Reconheceu que ficou com essa dívida para com nosso povo Guarani Caiová e passou a solução para suas mãos. E nós não podemos mais esperar. Não nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase todos os dias. Não deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se suicidem por falta de esperança de futuro (…) Devolvam nossas condições de vida que são nossos tekohá, nossas terras tradicionais. Não estamos pedindo nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do Brasil e internacionais”.
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás ecoou nas redes sociais na semana passada. Gerou uma comoção. Não é a primeira vez que indígenas anunciam seu desespero e seu genocídio. Em geral, quase ninguém escuta, para além dos mesmos de sempre, e o que era morte anunciada vira morte consumada. Talvez a diferença desta carta é o fato de ela ecoar algo que é repetido nas mais variadas esferas da sociedade brasileira, em ambientes os mais diversos, considerado até um comentário espirituoso em certos espaços intelectualizados: a ideia de que a sociedade brasileira estaria melhor sem os índios.
Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui.
Toda a História do Brasil, a partir da “descoberta” e da colonização, é marcada pelo olhar de que o índio é um entrave no caminho do “progresso” ou do “desenvolvimento”. Entrave desde os primórdios – primeiro, porque teve a deselegância de estar aqui antes dos portugueses; em seguida, porque se rebelava ao ser escravizado pelos invasores europeus. A sociedade brasileira se constituiu com essa ideia e ainda que a própria sociedade tenha mudado em muitos aspectos, a concepção do índio como um entrave persiste. E persiste de forma impressionante, não só para uma parte significativa da população, mas para setores do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestões passadas.
“Entraves” precisam ser removidos. E têm sido, de várias maneiras, como a História, a passada e a presente, nos mostra. Talvez essa seja uma das explicações possíveis para o impacto da carta de morte ter alcançado um universo maior de pessoas. Desta vez, são os índios que nos dizem algo que pode ser compreendido da seguinte forma: “É isso o que vocês querem? Nos matar a todos? Então nós decidimos: vamos morrer”. Ao devolver o desejo a quem o deseja, o impacto é grande.
É importante lembrar que carta é palavra. A declaração de morte coletiva surge como palavra dita. Por isso precisamos compreender, pelo menos um pouco, o que é a palavra para os Guaranis Caiovás. Em um texto muito bonito, intitulado Ñe'ẽ – a palavra alma, a antropóloga Graciela Chamorro, da Universidade Federal da Grande Dourados, nos dá algumas pistas:
“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.”
A fala, diz o antropólogo Spensy Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo, é a parte mais sublime do ser humano para os Guaranis Caiovás. “A palavra é o cerne da resistência. Tem uma ação no mundo – é uma palavra que age. Faz as coisas acontecerem, faz o futuro. O limite entre o discurso e a profecia é tênue.”
Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o nascimento do Brasil pela palavra escrita, é interessante pensar o que marca a carta dos Guaranis Caiovás mais de 500 anos depois. Na carta-fundadora, é o invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem estranha e olha para os índios, para sua cultura e para sua terra. Na dos Guaranis Caiovás, são os índios que olham para nós. O que nos dizem aqueles que nos veem? (Ou o que veem aqueles que nos dizem?)
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás é “palavra que age”. Antes que o espasmo de nossa comoção de sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena uma última pergunta: para nós, o que é a palavra?
Eliane Brum escreve às segundas-feiras.
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