Padre Inaldo Vieira Serejo
Era alta noite e em algumas casas as brasas da tacuruba ainda acesas cozinhavam carnes, feijão, arroz que no dia seguinte alimentariam corpos, sobretudo sonhos... Assim terminava o último dia de preparação para a 1ª Romaria da Terra na Comunidade Quilombola de Charco, município de São Vicente Ferrer. Ninguém esperava que, além de um ato de fé em defesa do direito sagrado a Terra, também se faria memória da vida doada, do sangue derramado de Flaviano Pinto Neto, ou simplesmente BIC como era carinhosamente chamado por seus irmãos de sangue e de luta. Bic foi assassinado no dia 30 de outubro de 2010, por volta de 21hs.
Nas primeiras horas da madrugada do dia 28/11/2010, às margens da MA 014, enquanto eu e Fábio aguardávamos o companheiro Beto do Taim/São Luis, ouvi o sr. Rufino contar o relato das origens da resistência à humilhação e ao sofrimento imposto pelo latifundiário Gentil Gomes que nasceu pobre e depois ficou rico e senhor de muitas terras e outros bens.
Era metade do ano 2008. Gentil Gomes mandou avisar ao povo que não mais aforaria suas terras para os camponeses. Era um ato cruel e covarde contra. Dona Antonia, negra, mulher, camponesa, quebradeira de coco, agora quilombola com muito orgulho, em outra ocasião me contou como foi o tempo sofrido do cativeiro: ele, Gentil Gomes não perdoava R$ 0,50 centavos; a dívida – farinha, arroz, milho… - de um ano se somava à do ano seguinte se a pobre família não tivesse criação no quintal, uma panela de alumínio, uma rede de pescar em bom estado de conservação ou mesmo de dormir que ele pudesse levar para si. No dia marcado ele ia de casa em casa para “receber” o pagamento do foro da terra estabelecido por ele. Nem mesmo ela que é/era sua comadre de alma escapava dessa humilhação. O pão da boca dos filhos dos camponeses era levado por Gentil à força para alimentar os seus filhos, para construir casas, posto de combustíveis e comprar mais escrituras de terra, pagar os estudos da família de Gentil. As famílias foram uma após outra expulsas da terra onde seus antepassados foram escravizados para que tudo fosse transformado em pastagens para o gado. O ciclo da exploração parecia ter chegado ao seu ápice talvez por isso não quisesse mais aforar o mato para a pobreza fazer suas roças. Dona Antonia resistiu. Só sairia morta daquelas terras onde nasceu.
A decisão do latifundiário parecia ser o tiro de misericórdia que feriria para sempre D. Antonia impossibilitada pela idade avançada a botar roça, mas sempre apaixonada pela terra que a viu nascer, crescer, casar, nascer seus filhos e filhos, seus netos e netas. Era um golpe fatal contra todas as famílias: homens, mulheres e crianças ficariam sem a terra e, conseqüentemente, sem ALIMENTO.
Diante dessa ameaça à sua reprodução biológica as famílias, reunidas numa grande assembléia, escolheram Flaviano para negociar com o latifundiário. Aos olhos de desavisados podia parecer mais uma sujeição às ordens injustas do latifúndio, mas não o era. Depois de convencer o latifundiário a mudar a sua decisão, Flaviano aceitou o preço a ser pago pelo uso da terra. Mas ele foi mais longe, aceitou ser o encarregado de marcar o mato e mediar a cobrança do pagamento da terra, ou seja ele seria o representante – antigo capataz do fazendeiro–com uma condição: no dia do recebimento do pagamento – R$ 500,00 (quinhentos reais) por quadra de terra – o pretenso proprietário deveria apresentar o Documento da Terra e assinar um recibo reconhecido pelo cartório. Naquele dia a conta bancária da família do latifundiário-grileiro aumentaria em R$ 8.500,00 (oito mil e quinhentos reais).
30 de janeiro de 2009. Essa foi a data escolhida para o pagamento. Mais uma sujeição? –Não. Todos sabiam que o latifundiário não possuía documentos. O tempo do cativeiros chegava ao final para todos. Na comunidade, estavam reunidos sindicalistas, advogados e camponeses à espera da documentação da terra. A espera foi longa. Finalmente um dos filhos de Gentil, Antonio Gomes atualmente vice-prefeito de Olinda Nova, apareceu – eram quase 12hs – mas sem documento. Os camponeses não aceitaram negociar com ele. No carro, também estava um capanga, mas isso não os intimidou. Os camponeses já tinham tomado posse da terra. Haviam estabelecido suas roças.
Na ocasião seguinte, foi apresentado um documento de 2001. Foi rejeitado por indícios fortes de falsificação. Pagamento de foro nunca mais seria feito ao latifundiário. Flaviano, fiador do acordo, não cumprira sua palavra com o latifundiário porque estava comprometido com a causa do povo, seus irmãos de sangue e cor. Tal como Moisés, levantou-se um dia para ir ao palácio do faraó levar a solicitação do povo: caminhar três dias pelo deserto para oferecer culto a Javé. Tempo de gestar a liberdade. Quando o faraó percebeu que se tratava de uma fuga em proporções gigantescas nunca vista ordenou a captura, mas era tarde demais. Javé os fez passar o mar vermelho a pé enxuto; quanto aos carros, cavalos e cavalheiros afogou no mar. O canto da Vitória, cantado por Miriam, é o mais antigo e importante da bíblia. É o canto estruturante da bíblia.
Aos poucos as idas e vindas a CPT, FETAEMA, MINISTERIO PÚBLICO FEDERAL foram ajudando aquela comunidade no processo de retirada da poeira da história. Os tempos do cativeiro começaram a ser lembrados não mais na perspectiva derrotista, mas para re-visitar o passado na perspectiva da construção do DIREITO no presente. Como a um refrão foram repetindo: Terra de Quilombo – Herança e Direito. Ser quilombola se tornou uma questão de honra. O conceito antigo de que quilombo era lugar de criminoso foi suplantado pelo conceito de quilombo como o lugar da liberdade.
Dia 29 de novembro de 2010. 5hs da manhã. Já se podiam ver algumas pessoas às margens da estrada em pequenos grupos. Era o inicio da Romaria. A romaria foi pensada inicialmente para chamar a atenção da sociedade para a situação conflitiva vivenciada pelas famílias completamente abandonadas pelo poder público. A Secretaria Municipal de Educação fechou a única “sala” de aula que atendia as crianças pequenas.
Apesar de tudo eles queriam dizer ao mundo que existiam/existem, portanto precisam ser respeitados. A Romaria devia cumprir esse papel. Entretanto, o dia 30 de outubro de 2010 mudou tudo.
Em pequenos grupos os quilombolas foram se dirigindo a pés para o local do inicio da romaria, pois o ônibus contratado não apareceu. Mas o entusiasmo era o mesmo. Assim seguimos até o local da concentração a 7km do quilombo Charco.
O versículo 13, do salmo 25, tem sido cantado com a força de uma canção memorial, assim diz o salmista: “Ele viverá feliz e sua descendência herdará a terra”.
As primeiras palavras foram proclamadas por Gregório, liderança da igreja católica. Segundo ele, a romaria deve ser um momento forte na vida de quem luta por um pedaço de terra para salvar a Terra. É também para celebrar a memória da passagem de Flaviano; lembrou ainda as palavras de Jesus de Nazaré “não tenham medo pequenino rebanho, pois o Pai lhes reservou o reino”. Essa palavra é pra encorajar todos os que estão lutando contra os sistemas injustos que violentam e causam a morte. Às suas palavras se misturaram lágrimas que com a chuva fina cadente fará brotar as semente de um novo tempo que estamos construindo. Havia um misto de surpresa e contentamento; uma determinação de honrar a memória de Flaviano; o que faremos se não nos acovardarmos. Os poderosos deste mundo confiam na força de suas armas, de seu dinheiro, de suas influência junto aos órgãos do estado, alegram-se com a morte dos inocentes. Nós confiamos no Senhor – os que confiam no Senhor são como o monte de Sião.
Saímos ao som da canção “mataram mais um irmão… Mas ele ressuscitará…”. Ao longo do caminho comunicamos a outros a razão de estarmos na estrada; muitas vezes foi repedido: “queremos justiça”
Fizemos a primeira parada no canto da terra re-ocupada pelos quilombolas. O sr. Ivanildo recordou a promessa feita a Abraão e à sua descendência: “Eu farei vocês subirem do Egito – Casa da Escravidão – para uma terra boa e espaçosa onde corre leite e mel”. Esta é a terra que Deus nos prometeu. Ele nos prometeu esta terra e não outra. Por isso nada pode nos intimidar, pois Deus caminha conosco. Vai à nossa frente. A nossa luta e determinação é a resposta que podemos apresentar aos opressores e aos grileiros.
O quilombo Charco foi grilado com a cumplicidade cartorial e do governo do estado; depois da primeira vistoria feita pelo INCRA, Celso Aranha – funcionário do INCRA/MA – teria orientado a divisão cartorial do imóvel com o único objetivo de inviabilizar a desapropriação do imóvel para fins de reforma agrária. É bom saber que o laudo da vistoria só foi concluído e apresentado seis meses depois de realizada a vistoria. Que interesses estava defendendo? Pago com o dinheiro público para prestar serviços a particulares; neste contrariando sua missão institucional: trabalhar na execução da política agrária – reforma agrária – do estado brasileiro. Um entre quantos mercenários? É recorrente a denúncia de que funcionários do INCRA/MA ficam hospedados nas sedes das fazendas em processo de vistoria para fins de Reforma Agrária. O que se esperar de seus relatórios?
A essa altura já havia se incorporado a romaria uma pequena, mas significativa delegação da Conlutas; era a solidariedade de setores do movimento urbano que se somava à luta do campo. Também se uniram a nós uma delegação do quilombo Cruzeiro/Palmeirândia que dia 22 de novembro teve 40 linhas de roça de mandioca destruídas a mando do juiz Sidney Cardoso Ramos a serviço da mesma família de grileiros que persegue os quilombolas do Charco. Trouxeram numa faixa: “Haveremos de ver qualquer dia chegando a vitória, o povo nas ruas fazendo a História”. Isso mesmo, o levante de quilombos no Brasil não é apenas uma reivindicação por Terra, é sobretudo pelo direito de escrever a História, o que não será feito em gabinetes e escritórios, será escrita, sim, nas ruas como fizeram muitos lutadores e lutadoras antes de nós.
A próxima parada foi feita no local onde Flaviano foi assassinado. A residência de Cilene e Manoel não pode acolher no seu interior todas as pessoas que foram levar a solidariedade àquele casal ainda atordoado com o que viram naquela noite. De volta ao pátio cantamos novamente: “mataram mais um irmão… mas ele ressuscitará e o povo não o esquecerá…” As lagrimas banharam os rostos já queimados pelo sol da manhã. Fiz novamente o convite para celebração perigosa da memória dos mártires, a começar por Jesus de Nazaré até Flaviano. Uma memória que incomoda e que nos leva a continuar a luta em defesa dos mesmos ideais, do mesmo sonho. A memória da vida doada, do sangue derramado dos mártires nos salva da idolatria. Cantamos, ficamos emocionados, reafirmamos o compromisso de defender a Terra das cercas malditas do latifúndio assassino de todas as vidas. Comprometemo-nos a respeitar a mãe-terra.
Assim caminhamos para nossa última parada: a sede da associação do quilombo Charco, destruída em setembro de 2009 por um incêndio criminoso, mas dias depois reconstruída. Já passavam das 10hs da manha; mais pessoas haviam se unido a nós. Entramos na terra ao som do canto: o Povo de Deus … ao longe avistou a terra querida que o amor preparou/ também sou teu povo, senhor, e estou nesta estrada/ cada dia mais perto da terra esperada!
Fomos acolhidos por muitas pessoas. No centro, uma mesa com alimentos a serem partilhados – café, leite, chá, pão, beijú, bolos de tapioca – era preciso revigorar as forças dos caminheiros e das caminheiras para continuarem a árdua e longa luta em defesa dos territórios. A partilha realizada ainda que na fugacidade do tempo presente, antecipa-nos e nos faz saborear a realidade futura quando a morte terá sido destruída.
Toda a vida é uma romaria rumo a terra sem males, terra do bem-viver, a terra da encantaria. A Eucaristia-Ação de Graças que celebramos no altar do mundo ganhou cores vibrantes e coloridas. À memória da páscoa de Jesus de Nazaré se uniu a páscoa de tantos companheiros e companheiras que doaram suas vidas. Em 2010, Raimundo Pereira da Silva, Francisco Ribeiro Viana Caçador, Hubinet Kaapor, Elias, Flaviano Pinto Neto tombaram na luta. Plantados no chão seus sonhos são sementes do mundo novo, seu sangue misturado às lágrimas dos ainda caminhantes estão forjando uma tinta nova que está escrevendo uma nova história, assim disse o velho gorel. A comunhão de vidas, sonhos e projetos alcançou sua plenitude na MESA onde o PÃO foi partilhado por todos e todas. Sinal e antecipação do mundo novo ninguém ficou com fome.
Bem aventurados – Bem aventuradas… os que têm fome e sede de JUSTIÇA porque serão saciados e possuirão a TERRA.
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