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quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
Hoje a América Latina perdeu um de seus maiores nomes no Direito (e um dos meus autores prediletos), o jurista Luis Alberto Warat.
Sua morte foi anunciada virtualmente pela Casa Warat, instituição criada por professores argentinos e brasileiros para promover a razão sensível, seguindo as valiosas lições waratianas.
Warat, que nasceu em Buenos Aires, foi docente no Brasil por mais de quatro décadas, onde vez história. Nos últimos anos, esteve ligado à Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões. De acordo com seu currículo, foi "Doutor em Direito pela Universidade de Buenos Aires, Argentina; Pós-Doutor pela Universidade de Brasília, Brasil. Professor do Mestrado e Doutorado em Direito na Universidade de Brasília. Foi professor titular de Filosofia do Direito, Introdução ao Direito, Lógica e Metodologia das Ciências na Universidade de Morón e na Universidade de Belgrano em Buenos Aires; professor titular de Lógica e Metodologia de Ciências na Faculdade de Arquitetura e Engenharias da Universidade de Morón. No Brasil, foi professor titular da Universidade Federal de Santa Maria (RS); coordenador e professor de Direito da UNISUL-Tubarão (SC); professor titular de pós-graduação em Direito da UFSC; professor do Mestrado e do Doutorado em Direito na UNISINOS; professor titular de Metodologia e Arbitragem da Faculdade de Direito do Centro de Mediação da Universidade Tuiuti do Paraná.;professor titular do curso de Direito,mestrado e doutorado da UnB, professor emérito da Sesuc Florianopolis; Professor titular do mestrado de UFRJ; Doutor honoris causa da Universidade Federal da Paraiba. Professor convidado do mestrado de dirito da URI Santo Ângelo Presidente da Associação Latino-americana de Mediação, Metodologia e Ensino no Direito - ALMMED".
Em um de seus mais importantes textos jurídicos, O Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas, escrito em 1982, Warat destacou dois momentos decisivos para a elaboração de um discurso crítico na ciência jurídica: "primeiro, pela substituição do controle conceitual pela compreensão do sistema de significações; e segundo, pela introdução da temática do poder como forma de explicação do poder social das significações, proclamadas científicas". Ainda, constatou que "o conhecimento, na medida em que é purificado pela razão, limita, maldosamente a percepção dos efeitos políticos das verdades".
Warat reivindicava um saber crítico do direito através de um novo ponto de vista epistemológico, que tinha por objeto de análise os discursos competentes da ciência - o "senso comum teórico dos juristas" - e epistemologia jurídicas. Neste sentido, a meta inicial de um saber crítico seria a de caracterizar e explicitar o senso comum teórico dos juristas.
Mas, afinal, que é o senso comum teórico? Na opinião de Warat, o conhecimento científico do direito não passaria de um acúmulo de opiniões valorativas e teóricas, que se manifestam de modo latente no discurso, aparentemente controlado pela episteme: "estamos diante do senso comum teórico dos juristas, que é um conhecimento constituído, também, por todas as regiões do saber, embora aparentemente, suprimidas pelo processo epistêmico. O senso comum teórico não deixa de ser uma significação extra-conceitual no interior de um sistemade conceitos, uma ideologia no interior da ciência, uma doxa no interior da episteme. Trata-se de uma episteme convertida em doxa, pelo programa político das verdades, executado através da praxis jurídica. Nesta ordem de idéias, o saber crítico pode ser definido como uma doxologia, que procuraria o valor político do conhecimento científico do direito, tornando, este, opinião de ofício pela práxis jurídica. No momento em que o discurso epistemológico, em nome do método, pretende buscar a solução dos conflitos do conhecimento, de modo imanente ao mesmo conhecimento, transforma-se em um discurso fácil de ser estereotipado, que serve para reivindicar, miticamente, um lugar neutralizado para a própria atividade profissional. A epistemologia tradicional procura resolver, idealmente, as relações conflitantes entre a teoria e a práxis jurídica, ignorando, fundamentalmente, o valor político do conhecimento na práxis. Propõe um saber que seja puro como teoria e, com isso, facilita que a dita proposta seja ideologicamente recuperada, servindo agora para que os juristas contaminem a práxis de pureza, criando a ilusão de uma atividade profissional pura. Assim, os critérios de purificação metodológica ganham um novo sentido: de uma crença vinculada a uma atividade profissional. Os juristas de ofício, apoiados na idéia de um conhecimento apolitizado, acreditam que o advogado é um manipulador das leis, descompromissados politicamente, um técnico neutro das normas. As observações que terminamos de efetuar sobre a prática jurídica, apresentada como um lugar fora do poder, serve para fazer uma observação crítica sobre os postulados metódicos da teoria Kelseniana, já que seus efeitos ideológicos e políticos não provêm, isoladamente, dos valores que Kelsen propõe para a construção de uma ciência do direito em sentido estrito, senão pelos efeitos de seu discurso como guia e representação da práxis jurídica. É o discurso kelseniano, tornado senso comum, que influi para que o jurista de ofício não seja visto como um operador das relações sociais; mas sim, como um operador técnico dos textos legais".
Através de uma genial metáfora, Warat caracteriza o senso comum teórico como a voz "off" do direito, isto é, como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, a partir das quais se dispensa o aprofundamento das condições e das relações que tais crenças mitificam.
Apesar de escrito há quase trinta anos, a seminal crítica de Luis Alberto Warat é (ainda) extremamente atual. O que se vê, em especial através dos bancos universitários de graduação, é a legitimação de um conjunto de crenças (supostamente científicas) que impossibilitam o debate crítico acerca das condições e relações mitificadas pelo discurso jurídico.
Até seus últimos dias, Warat deflagrou as falácias do direito e discutiu novas possibilidades para a resolução de conflitos, como a mediação transformativa pautada na comunicação, sensibilidade e emancipação humana.
Abaixo, reproduzo um trecho de um texto intitulado "As Falácias Jurídicas", publicado na Revista Seqüência da Universidade Federal de Santa Catarina, v. 6, n. 10, em 1985. Nele, verifica-se um dos principais elementos do pensamento waratiano: a crítica ao discurso legalista e técnico que se julga politicamente neutro.
"O discurso é fundamentalmente persuasivo. Advogar é persuadir, é argumentar a favor de uma das partes. A decisão judicial é uma peça persuasiva, que persegue a aprovação da instância superior, da doutrina, da política e da comunidade e a satisfação das exigências valorativas do direito, de suas pautas axiológicas, que só relativamente podem ser alcançadas. A relatividade dos direitos é o que determina e impõe o caráter persuasivo do discurso jurídico.
As normas jurídicas percebem o comportamento humano com relação à sociedade, porém sua eficiência não depende só da coação, que pode exercer o Estado para impor seu cumprimento, mas também da aceitação comunitária, ainda que somente setorial. A atividade legislativa é eminentemente política.
As prescrições, que contêm as normas jurídicas, não são equívocas. As palavras da lei são inalteráveis, porém não as significações comunicam, Estas variam de acordo com as trocas que se operam na valorização ambiental predominante, entre as distintas correntes existentes. Isto determina o caráter relativo da valorização ambiental, que requer permanentemente o auxílio da persuasão para manter-se, para penetrar assim mesmo no sistema jurídico, alterando as significações legais.
O caráter persuasivo do discurso jurídico determina, inevitavelmente, a presença das falácias em seu conteúdo, isto é, de toda classe de recursos argumentativos, que tendem a impor uma conclusão, não derivada logicamente, mas que logra sua aceitação por associação psicológica e emotiva, e ademais por coincidência valorativa, que se desperta e que faz decidir a escolha de uma alternativa significativa, desejada e sugerida pelo emissor.
O discurso jurídico contém toda classe de argumentos, toda classe de falácias — ainda que em sua acepção mais ampla — que compreendem qualquer opinião equivocada ou qualquer crença falsa. Em troca o discurso demonstrativo não tolera nenhuma classe de falácias, nenhuma classe de argumentos e só aceita afirmações categóricas.
O caráter prescritivo das normas jurídicas impede o uso do discurso demonstrativo. As normas jurídicas não descrevem uma realidade concreta e sensível, atual e existente. Prescrevem uma realidade possível, encarada como exigível e devida, que pode porém dar-se ou não na realidade, ainda que seja factível e inspirada na realidade circundante e existente, e condicionada axiologicamente. Um acúmulo de fatores, relativos einterrelacionados, de índole díspar, fáticos, conceituais e axiológicos, concorrem simultaneamente para a concretização das prescrições contidas nas normas jurídicas, que são meras conceitualizações de uma realidade possível, exigível e devida, que se enfrenta constantemente com uma realidade existencial e vivencial. Esta confrontação não é pacífica, mas geralmente muito conflitiva. Para apaziguá-la se necessita recorrer à persuasão, à argumentação, às falácias, que são técnicas argumentativas.
No discurso prescritivo ou persuasivo, não se pode perguntar pela verdade ou falsidade. Esta pergunta constitui uma exigência lógica no discurso demonstrativo, categórico e descritivo. No discurso prescritivo ou persuasivo, a única pergunta que cabe, é saber se a conclusão sugerida é aceita ou reprovada. Isto coincide com o objetivo das falácias.
O uso das diversas classes de falácias, no discurso jurídico, varia segundo seu conteúdo e nível em que aparece. As falácias formais podem aparecer em qualquer discurso, portanto também no discurso jurídico. Elas são cometidas muitas vezes por ignorância, erro, ou por simples inadvertência, o que não excluía possibilidade de que se apele às mesmas deliberadamente, com fins persuasivos, produzindo significações alternativas, através da transgressão das regras de derivação. Tal situação pode produzir-se em qualquer discurso jurídico. O uso das falácias formais pode dar-se nas apresentações dos letrados, nas sentenças judiciais e nas disposições legais. O uso das falácias não formais, ou materiais, no campo jurídico, também é muito amplo. Se usam técnicas argumentativas, recursos jurisprudenciais, argumentos de grande persuasão. A incorreção lógica do raciocínio é neutralizada pela carga emotiva que comunicam, e a sugestão de conclusões tentadoras e promissoras. Se amplia nos discursos políticos com os quais se apresentam os projetos das leis. Servem também de fundamento para as mesmas.
A nível da prática forense, é óbvio que os advogados fazem um grande uso das falácias não formais em defesa dos interesses de sua pátria. Neste caso é ao julgador que toca a tarefa de desentranhar as falácias encontradas. Isto não significa que os juízes sejam imunes à sua influência, ou que, deliberadamente ou não, as empreguem.
O juiz também tem que argumentar e persuadir. Tem que valorar situações fáticas, aplicar as disposições legais e satisfazer exigências axiológicas de sua própria personalidade e de grupos comunitários de sua esfera de ação. Para encontrar uma coincidência com a valoração ambiental, que o condiciona, e as normas legais aplicáveis, o juiz necessariamente tem que argumentar. Portanto não pode evitar o emprego das falácias não formais.
Em minha opinião, no direito, há além disso o uso das falácias em sua acepção mais ampla, que compreende qualquer opinião equivocada ou crença falsa, que se usa como argumento ou como ponto de partida para uma concepção jurídica. As falácias lógicas, formais e não formais, têm uma aceitação mais restrita — são raciocínios incorretos, que se usam como argumentos, são persuasivas. As falácias que denomino “jurídicas” também têm um caráter persuasivo, argumentativo, porém não se dão necessariamente em um raciocínio, nem se constituem necessariamente por violação das leis de derivação. As falácias jurídicas podem dar-se em um enunciado equivocado, em uma falsa crença, porém o que tem força persuasiva, a nível jurídico, são pontos de partida para as conceitualizações jurídicas, são condições retóricas de sentido, isto é, princípios metodológicos para a organização e sistematização das significações persuasivas. Usando outro vocabulário, poderíamos chamar os pressupostos metodológicos retóricos ou as falácias em sentido amplo, concepções valorativas sobre o mundo, postulados metafísicos, concepções ideológicas sobre a produção do conhecimento.
Pode-se dizer que em geral, através das falácias jurídicas, se projeta fundamentar uma decisão ou um ponto de vista, provocando um efeito de adequação entre as afirmações conclusivas e os pressupostos metodológicos ou condições retóricas de sentido.
Se não se logra esse efeito de adequação, as afirmações conclusivas sugeridas não são legitimadas como significativas. São sem sentido jurídico. As falácias jurídicas podem distinguir-se das materiais, porquanto aquelas servem como pressuposto determinante das alterações significativas das palavras da lei, enquanto que estas se aplicam aos desacordos valorativos dos feitos. A “argumentum ad legem” — apelação à legalidade — é a principal dentre as falácias jurídicas. É ela um argumento, como ponto de partida para ser uma conceitualização, um rótulo para um tipo de argumentação, que debaixo da aparência de observar o princípio da legalidade, na realidade o transgride. O fator determinante de tal efeito, que por outra parte, é mais bem aceito que reprovado, surge da prevalência da valorização ambiental sobre a legal, isto é, a que emana do sistema jurídico ou da lei aplicável ao caso".
Postado por Rafael Zanatta às 21:05
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