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Por racismoambiental, 02/12/2010 16:58
LUIZ FERNANDO VIANNA, do Rio
Como coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Estado do Rio (1999/2000) e secretário nacional de Segurança Pública, o antropólogo Luiz Eduardo Soares não conseguiu implantar a maior parte de suas ideias, mas nunca deixou de expressá-las, contrariando os coros de unanimidade.
Ele, por exemplo, enxerga ‘uma enorme ilusão’ na oposição entre bem (polícias) e mal (tráfico) pregada pelo poder público e difundida pela mídia. ‘Nós estamos mascarando o fato de que o tráfico de drogas só existe no Rio de Janeiro por conta da parceria com a polícia’, afirma em entrevista na qual traça um painel histórico dessa parceria.
Soares apoia operações de repressão ao tráfico de drogas, mas acredita que, se a corrupção policial –que tem nas milícias sua forma mais organizada– não for enfrentada, as conquistas do complexo do Alemão agora celebradas se tornarão frustrações mais adiante.
FOLHA – Quando lançou o livro “Elite da Tropa 2″, o sr. deu declarações apontando que “o tráfico já era”. Agora, com a operação no Complexo do Alemão, chegou a ser ridicularizado, como se os fatos provassem que estava errado. O tráfico já era mesmo?
LUIZ EDUARDO SOARES – Sim, já era como tendência, como forma de organização do comércio de drogas ilícitas. Este comércio vai muito bem no Brasil e em todo o mundo democrático, porque você só interrompe esse fluxo com o Estado totalitário. O Estado democrático é incapaz, quando há demanda e oferta, de impedir os negócios. É um paradoxo: os Estados Unidos venceram a Guerra Fria demonstrando ao mundo que era impossível reprimir o mercado, e agora tentam vender ao mundo o programa de repressão ao mercado de drogas.
O negócio de drogas vai muito bem, obrigado, mas não o tráfico na sua forma que envolve, no Rio de Janeiro, controle territorial, controle de comunidade, organização de grupos armados, pagamento a policiais, conflito com facções, num contexto político crescentemente antagônico e com pressões sobre os governos, pois a consciência pública vai amadurecendo e se tornando mais refratária a conviver com o ilegal nessa magnitude.
Com isso tudo, os gastos são excessivos. Esse é um sistema muito pesado, caro, arriscado. Há outras modalidades adotadas em partes mais desenvolvidas do mundo que são muito mais leves, racionais e econômicas, como aquele comércio que se dá com deslocamento nas ruas e delivery [entregas a domicílio], que vai se organizando de modo pulverizado e no qual o traficante não deve andar armado, porque já carrega a droga ilícita, que o coloca em risco de ser preso. Ele trabalha para não chamar atenção.
Eu reitero: o tráfico tal como existe no Rio de Janeiro é um modelo inteiramente ultrapassado, incompatível com a sociedade brasileira e com a própria economia da droga. E, por isso, tendencialmente, já era. Nós vamos assistir a essa realidade por algum tempo, como ocorre em outras áreas. Há setores da economia que estão em agonia há algum tempo e que devem ser substituídos por outras modalidades.
Justifica, então, uma operação do tamanho e com os custos da que aconteceu para combater um modelo em declínio?
Justifica, claro, porque o fato de estar em declínio não significa que esteja suspensa a sua capacidade de produzir danos à sociedade, como mortes e todo tipo de violência. É um fato de hoje. Não podemos cruzar os braços à espera que esse processo econômico siga seu curso naturalmente.
O que eu digo é que a primeira medida fundamental para ajudar o processo histórico que vai promover o colapso do tráfico tal como organizado no Rio é fazer com que a polícia pare de participar do tráfico. A parceria entre o tráfico e segmentos policiais corruptos –e eu enfatizo que são segmentos, para evitar que alguém compreenda o que eu digo como uma generalização, o que seria uma calúnia contra a instituição ou as dezenas de milhares de pessoas que estão arriscando a sua vida com dignidade e salários péssimos– que vendem armas, alugam Caveirão, ganham percentuais da venda da droga, tem que ser objeto da preocupação prioritária. Se não contarmos com instrumentos institucionais a serviço da legalidade, se não contarmos com polícia, nós não poderemos enfrentar problema algum.
Essa transformação passa, necessariamente, por uma mudança constitucional?
Isso seria o ideal, mas, se nós estamos convivendo com essa situação há décadas –tanto que eu estive no governo do Rio [jan/99 a mar/2000] procurei enfrentar essa questão e não tive sucesso, mas deixei marcada uma certa posição, uma espécie de alerta à sociedade sobre a gravidade da corrupção nas instituições policiais–, não podemos esperar essa modernização para agir. Pois uma transformação desse porte leva uns dez anos, e não é de um governo, mas do Estado.
Assim como é inaceitável que alguns criminosos se imponham sobre comunidades inteiras de forma tirânica, agredindo a soberania do Estado, e isso tem de ser objeto de ação repressiva continuada, nós tampouco podemos tolerar um dia sequer com criminosos uniformizados que viabilizam, turbinam, fortalecem não só o tráfico de drogas, mas outras modalidades, que passam por um repertório amplo. A sua forma extrema é a milícia, mas há outros tipos, e todo tipo de crime grave no Rio de Janeiro envolve segmentos policiais.
E, para enfrentar essa situação, é preciso que se olhe de fora do ambiente policial?
Sem dúvida. Para mim, qual é o comandante natural e com mérito? O [secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano] Beltrame. Eu tenho divergências com ele, como quando ele defendeu a política de confronto, no início do governo [Sérgio Cabral, em 2006], mas sempre fiz questão de dizer que o considerava uma pessoa honesta, honrada, e é a hora de reafirmar isso. O Beltrame tem todas as condições de levar adiante esse enfrentamento, porque tem coragem pessoal para isso. E ele está sob risco o tempo todo.
O que falta ao Beltrame? O reconhecimento, por parte do governo do Estado e da sociedade, de que o ponto número um não é o traficante de chinelo no morro, mas é o próprio Estado na sua forma policial. Nós temos polícias incubadoras de crimes. Não são desvios de conduta, casos individuais. Trata-se de um padrão, reproduzido em grande escala. Não precisamos de caçadores de maus policias, mas de mudança de estrutura organizacional, para que possa haver controle interno efetivo. E isso, evidentemente, vai implicar no afastamento de grupos muito numerosos.
Isso se faz com o governo reconhecendo que seu dever é promover transformações profundas o suficiente para que as polícias sejam polícia, e para que a tal polaridade de que tanto se fala, entre mocinhos e bandidos ou polícia e crime, corresponda minimamente a alguma realidade. É a possibilidade de que tenhamos polícias que mereçam esse nome, que façam com que as leis sejam cumpridas.
Eu acho que os conservadores deveriam ser os primeiros a reconhecer essa necessidade, porque, se se trata de preservar a ordem pública, significa preservar a Constituição e fazê-la ser cumprida. A legalidade é o nosso ponto comum, é o campo em que se pode construir um consenso.
Como interpreta, nesse momento, a sociedade pedindo por mortes, como num desejo de vingança?
Eu costumo apresentar um argumento a uma senhora ou a um senhor de classe média justamente preocupado com a segurança de sua família e que diz desejar “que eles acabem logo com esses traficantes”. Em primeiro lugar, há outros criminosos além dos traficantes, e esses traficantes o são com apoio daqueles que deveriam cumprir a lei. Então, o mal atravessa os dois lados, não existe essa polaridade [entre bem e mal], e esse é o problema do Rio de Janeiro, pois nós precisamos minimamente constituí-la.
E, quando a autoridade dá ao policial na ponta liberdade para matar, dá-lhe também, indiretamente, a liberdade de não fazê-lo. De vender a vida, torná-la uma moeda.
Isso começou a gerar negociações varejistas, em momentos de confronto, prisão. Mais adiante, transformou-se numa modalidade mais organizada da economia do crime. Houve muito, no Rio, aluguel de casas para as quais eram conduzidos suspeitos e nelas se realizavam negociações. Mas era caro, arriscado. Você tinha de prender o suspeito; alugar a casa e mantê-la clandestina; correr o risco de a negociação não dar certo, matar a pessoa e levar o corpo para que ele desaparecesse.
Até que se chegou, entre o final dos anos 80 e início dos 90, a um terceiro estágio de desenvolvimento da economia da corrupção: o acordo, o contrato, o arreglo ou, na corruptela carioca, arrego. Vamos acertar uma participação nos lucros. Isso faz com que a polícia se torne parceira fixa, maximizando ganhos e reduzindo custos e riscos.
Quando dá errado, acaba na chacina de Vigário Geral [em 1993, 21 inocentes foram mortos por policiais que vingavam colegas assassinados pelo tráfico].
Exatamente. Por exemplo, o conflito aqui embaixo, em São Conrado [em 21 de junho passado]. Não se deu em torno de uma operação policial planejada com inteligência, pois nem seria o caso, àquela hora da manhã, naquele lugar, mas foi fruto de uma redefinição do contrato: inflação, mudança de preço, cobrança de sobrepreço. Os sócios se desentenderam. Em geral, os conflitos são desse tipo.
O tráfico está em declínio, os ganhos estão se reduzindo, então precisa negociar uma redução do que se paga à polícia. E a polícia não aceita e às vezes exige aumento. Com isso, os traficantes têm que ir para a pista, como eles dizem, para completar o ganho. Vão assaltar etc., para produzir aqueles recursos cobrados pela polícia.
Qual é o quarto estágio da economia da corrupção: é a milícia. É quando já há uma organização superior: “Nós não precisamos ser apenas sócios, podemos ser os protagonistas. Eles [os traficantes] ganham muito em drogas, que é um bom nicho, mas não precisamos ficar presos a ele, embora possamos fazer isso eventualmente. Vamos buscar lucros participando de forma criminosa de tudo o que puder oferecer algum potencial econômico na vida de uma comunidade que estará sob nosso domínio, sob nosso terror”.
E alguém dirá: “Não voltamos ao velho esquema territorial de controle pelas armas?”. Sim, mas sem os mesmos custos, porque, como são policiais os milicianos, os custos da organização, da preparação, da disciplina, do treinamento, do recrutamento, do acesso às armas já estão cobertos. E nós é que pagamos a maior parte das ações, porque eles usam a polícia na maior parte das invasões.
Muita gente diz que eles, pelo menos, se opõem ao tráfico. Não é verdade. Circunstancialmente, há esse conflito. Normalmente, eles esperam que a polícia enfrente o tráfico e, se isso não acontece e veem que é muito caro buscar fazer isso, eles fazem negócios com os traficantes. Vendem muitas armas para os traficantes. Às vezes roubam de uma facção para vender a outra. Alugam caveirão. Estava em R$ 60 mil por noite na última vez que eu soube. É para uma facção invada outra facção. Eles não têm nenhum pudor em negociar com os traficantes. E são muito mais fortes, numerosos, têm mais capacidade de organização, o rendimento é superior, eles têm visão política.
Outro ponto muito sério, que está ligado à milícia e à polícia degradada, é a segurança privada. É uma das origens das milícias. Os salários dos policias são insuficientes para que eles sobrevivam. No caso do Rio de Janeiro, os salários são os segundos piores do país. E o sujeito tem que complementar a renda. Vai buscar, como todos nós fazemos, na área de sua especialidade, no caso, a segurança.
Ocorre que isso é ilegal. As autoridades sabem disso, tanto ou mais do que nós, mas fingem que não veem. Por quê? Se reprimirem essa prática, projetar-se-á a demanda sobre o governo, a demanda salarial. Eles vão ter de pressionar a principal fonte pagadora. E, atendida a demanda, é possível que o orçamento público da segurança entre em colapso. Como esse orçamento é, na origem, irreal e artificial, as autoridades toleram essa complementação. Veja que situação absurda: o Estado tem um pé na legalidade e um pé na ilegalidade.
Há uma dinâmica, digamos, benigna, que é a dos sujeitos que buscam viver honestamente. Mas as consequências para o policial e para a segurança pública são muito negativas. Os policiais, no Brasil todo, morrem muito mais de folga do que em serviço. E aí morrem sem proteção, sem o seguro correspondente, sem carteira assinada.
E há o convívio com os superiores, que estão envolvidas nesse mundo como empreendedores. Na segunda-feira, o superior olha para o seu subalterno exigindo-lhe obediência. Na terça, são sócios do ilícito, porque o superior agencia o subalterno na sua empresa, que está em nome da sua sogra ou seja lá de quem for. Na quarta, com que cara o superior vai exigir do subalterno a prestação de obediência? Todo o modelo ético, hierárquico rui.
Mas há as dinâmicas malignas, que são promover a insegurança para vender segurança; organizar grupos de extermínio e tornar-se assassino a soldo; ou organizar-se de maneira superior, mais estruturada, na forma das milícias. Elas são, sim, filhas bastardas do orçamento público da segurança, que é irreal.
Se não tratarmos a questão orçamentária em nível nacional, mesmo que não se queira aprovar a PEC 300 [projeto de emenda constitucional que trata da criação de um piso nacional para policiais militares e civis], e com realismo, vamos continuar vivendo a história da carochinha, ainda que com toques de terror. É a história do bem vencendo o mal. Neste momento ela serve para celebração da unidade, e isso é muito gratificante, há muita emoção positiva fluindo. Mas isso leva à frustração no dia seguinte, quando a realidade cai sobre a cabeça e aqueles que estão iludidos com as fábulas do momento descobrem que os problemas prosseguem com a mesma força ou até revigorados.
Apesar de todos os esforços para se chamar a atenção para o problema das polícias, o imaginário coletivo continua aprisionado no arquétipo bem/mal, nesse maniqueísmo muito romântico.
A cobertura da mídia –e nela está seu colega Rodrigo Pimentel (coautor dos dois volumes de “Elite da Tropa”), muito entusiasmado em seus comentários na TV Globo– joga um véu ilusório sobre a realidade?
Eu acho que há uma enorme ilusão. Não quero me arrogar o papel do único que enxerga a realidade, pelo amor de Deus. Mas é assustador para mim que pessoas tão inteligentes e bem intencionadas se iludam com a fábula de que o bem venceu o mal. Esse mal só existiu até esse momento porque foi alimentado por isso que estamos chamamos de bem. O mal, portanto, é indistinguível de setores desse bem. E, se agora esse mal é finalmente afastado, esse bem que é parte do mal parece triunfante, é parte da festa, dessa unidade em júbilo.
Nós estamos vivendo “O Bebê de Rosemary”, porque vamos nos surpreender abraçando nosso inimigo. E sendo apunhalados pelas costas, porque parte dos heróis são os que estão nos condenando à insegurança, levando armas e drogas para as favelas, impondo-se sobre comunidades para todo tipo de crueldade e crime, são os que estão adulterando combustível, participando de toda sorte de crime beneficiando-se das suas armas e carteiras policiais.
O discurso de unidade pode constranger parte da polícia e fazê-la mudar?
Não acho que, nesse caso, sentimentos e valores tenham um peso muito importante. Não estamos falando de eventuais desvios de conduta, pois estes oscilam de acordo com os ventos e, se o espírito coletivo é muito positivo, claro que isso funciona, ao menos provisoriamente, como inibidor de práticas negativas.
E há um elemento muito positivo na unidade, na celebração de que a vida poderia ser diferente, no reconhecimento de que a legalidade é benéfica a todos, de que a autoridade pode ser confiável. Nós estamos aprendendo que é possível viver de outro modo a relação com a autoridade, porque no Rio de Janeiro a relação é sempre de ironia cáustica, decomposição degradante, xingamentos, cinismo. Acho que esse é o momento de inversão desse processo. O problema está no seu caráter ilusório. Nós estamos mascarando o fato de que o tráfico de drogas só existe no Rio de Janeiro por conta da parceria com a polícia.
Por que a polícia é a questão central? Porque a polícia é instituição fundamental para a democracia. Quando reconhecemos a importância dessa questão, é porque atribuímos um valor à polícia muito importante, ao contrário do que aconteceu durante muito tempo no campo das esquerdas. As polícias eram desprestigiadas, vistas como instrumentais para opressão, “seja marginal, seja herói” era uma bandeira que tinha um significado que se compreendia naquele momento, mas perdurou na democracia. Nós, muitas vezes, fomos unilaterais, apenas denunciávamos, não éramos solidários aos cidadãos trabalhadores policiais quando eles sofriam desrespeitos aos seus direitos humanos.
De 2003 a 2009, 7.854 pessoas foram mortas em ações policiais, dado oficial do ISP (Instituto de Segurança Pública). Não há investigação séria, os casos são arquivados, e a única pesquisa que se fez a respeito foi com os dados de 2003, quando ocorreram 1.195 casos. E ali se constatou que 65% diziam respeito a execuções extrajudiciais.
As UPPs são muito bem-vindas, porque é o reconhecimento de que a velha prática da guerra, do confronto não funciona.
Sua avaliação das UPPs é positiva?
Sim. Eu tentei implantar os Mutirões pela Paz quando era secretário, mas me faltava esse apoio do governo. Agora, espero que vá ser levado adiante. Significa acabar com o controle territorial de traficantes ou milicianos, acabar com as incursões bélicas, significa que a polícia vai estar presente 24 horas prestando um serviço público, como em qualquer bairro nobre da cidade. Há um ótimo secretário de Assistência Social, Ricardo Henriques. Temos ótimos motivos para acreditar que esse modelo venha a se impor e se expandir.
Qual é o grande problema que paira? Temos que passar da fase experimental, de casos, agora são 13, para a de política pública. Precisamos de escala e sustentabilidade. Para você ter isso, precisa repassar esses projetos para a polícia na esfera de segurança pública, não a social. Tem que repassar à instituição. Para cada caso, o governo recruta e treina policiais. Isso tem limite. Mas como repassar para uma polícia que está partida e com um segmento tão numeroso degradado? Vai significar que as UPPs estarão correndo risco de sofrer o mesmo processo de degradação.
Até para preservar o que há de melhor na UPP, precisamos encarar o problema policial.
Os corruptos da polícia são efeitos, consequências, a causa é uma estrutura organizacional refratária a gestão racional. Não há conhecimento sobre o que se faz, não há avaliação, não há nenhum planejamento sistemático, é uma estrutura reativa e burocrática.
Mas a Secretaria de Segurança Pública agora tem metas de redução de criminalidade.
Você pode impor uma meta para uma estrutura que funciona de acordo com uma gestão racional e para uma turba anárquica que sai para buscar esse resultado. Esta não trabalha com dados, diagnósticos, não cresce porque não aprende com os erros e se condena a repeti-los. A estrutura de um jornal, de uma empresa qualquer precisa estar na polícia.
As taxas de esclarecimento da nossa Polícia Civil são baixíssimas, mesmo em crimes letais. Não há um procedimento de identificação das razões por que isso está acontecendo. Quando se sabe da taxa, é por conta de uma pesquisa que se faz, externa. Isto precisa estar na mesa do gestor.
Os crimes letais, no mundo desenvolvido, são esclarecidos em 75%, 80% dos fatos. No Rio de Janeiro, em 1,5% dos casos. Essa é última pesquisa publicada no ISP, há quatro anos. Imagine se, no seu jornal, alguém fizesse uma pesquisa para saber se houve lucro ou prejuízo, se o número de leitores está crescendo ou diminuindo.
As tropas do Exército que ficarão no Alemão poderão ser contaminadas pelo tráfico de drogas?
A contaminação é uma preocupação constante e séria do próprio Exército, seja por exemplos internacionais, como o do México, seja pela experiência de roubos de armas, com cumplicidade de gente da instituição. Seja também pela promiscuidade que se possa estabelecer, sabendo-se que alguns que saíram do Exército foram recrutados pelo tráfico. Por conta dessa preocupação, o próprio Exército está falando em rodízio.
Segurança devia ser um tema federal? Por que não é?
Devia ser um tema federal, estadual e municipal. O problema é que o nosso artigo 144 [da Constituição, no qual estão determinadas as polícias existentes], que é um desastre, se omite em relação ao município. Apenas admite que haja como que porteiros ou vigias para prédios públicos. Mas hoje nós temos guardas municipais, como a de São Paulo, armados nas ruas. Esse crescimento respondeu à necessidade da sociedade, mas não encontra abrigo constitucional. Nós estamos numa situação de grave suspensão da legalidade. Essas guardas estão no limbo legal, então podem ser qualquer coisa: promessa de mudança positiva ou ameaça de repetição agravada dos males das polícias tradicionais.
A Secretaria Nacional de Segurança Pública é mais um órgão do ministério, que tem o seu fundo para distribuir, mas as suas responsabilidades não correspondem aos seus meios de atuação. Ela não tem nenhuma autoridade, por causa da estrutura federativa. Não estou sugerindo que as polícias sejam subordinadas ao governo federal, mas nós temos de repactuar a segurança pública, aumentando as responsabilidades da União, trazendo o município para o jogo e redefinindo as condições em que as polícias estaduais estão operando.
Isso exige o redesenho que só pode nascer de um pacto político, de uma grande coalizão, porque é um tema de Estado, não de governo, não pode ser partidarizado, não pode ser jogado em eleição. O diabo é que, infelizmente, a política se intromete e, quando um certo pacto começa a ser renegociado com muita prudência, calma, espírito democrático, seriedade, conhecimento técnico, acaba sendo obstado pela dinâmica política, porque há uma contradição entre o ciclo eleitoral e o tempo de amadurecimento de políticas públicas profundas, estruturantes.
Qual é o ciclo eleitoral no Brasil? Bienal. E todos os atores se envolvem. E as grandes reformas institucionais, num primeiro momento, geram reações, ou seja, pioram o quadro anterior. Os momentos subsequentes são de estabilização e colheita dos frutos. Quem vai pagar o preço das primeiras etapas? São os políticos responsáveis pela implementação das reformas. Mas quem as fará se os frutos ficarão para os sucessores e os prejuízos deverão ser pagos imediatamente. Qual é a solução? Ou um santo, que se sacrifique em nome do país, mas isso não há nem podemos desejar que exista, ou uma coalizão, um pacto, uma aliança em que todos repartem as responsabilidades. E ninguém vai, predatoriamente, como todas as oposições sempre fazem, torcer pelo pior.
Há condições no Brasil para essa coalizão? Eu acho que sim, desde que seja muito bem trabalhado. Temos gente confiável e de alta responsabilidade nos principais partidos. E na sociedade já temos um mínimo de maturidade para suportar isso. Em 2003, nós chegamos perto.
Está demonstrado que não é impossível. O que é impossível? A Constituição. Vamos defender a segurança como direito de todos e dever do Estado. Não toleramos ilegalidades, mesmo que visando fins superiores.
São 70% dos policiais contrários ao atual modelo de polícia, como mostrou a pesquisa que eu coordenei em 2009 com Marcos Rolim e Sílvia Ramos, patrocinado pelo Ministério da Justiça e pelo Pnud [Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento]. A massa policial deseja mudança, mesmo que os arautos corporativos, que se autodelegam representatividade, eventualmente se oponham, então as lideranças políticas maduras deveriam compreender que ela [a mudança] é indispensável. Como fazê-la? É um grande pacto nacional em torno da mudança do artigo 144. Enquanto isso não for possível, nós vamos trabalhar nos limites dados reduzindo os danos.
No caso do Rio de Janeiro, fazendo as transformações policiais de modo que isso não nos mantenha reféns do crime dentro da polícia. É muito importante reforçar a autoridade do secretário Beltrame, que o governo tenha coragem de dizer que o problema policial é grave e está disposto a enfrentá-lo, inclusive dando o nome à milícia: é polícia, o segmento policial envolvido com o crime, a banda podre.
Estamos pedindo ajuda ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica, e agora vamos pedir ajuda a quem? À Justiça, ao Ministério Público, à Defensoria, a várias instituições da sociedade, a mídia tem que colaborar, e as Forças Armadas vão ter o seu papel, a Polícia Federal também. Vamos passar por turbulências, mas esse problema tem que ser enfrentado. Enquanto no plano nacional isso permanece adiado, no plano estadual isso não pode mais ser postergado. Vivamos a unidade, mas sem ingenuidade.
http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/839550-nao-havera-mudanca-no-rio-com-corrupcao-policial-diz-antropologo.shtml
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