Um dos maiores desafios da luta contra a tortura é a superação de seu substrato cultural. Num país onde o genocídio de índios foi legitimado como tomada de posse, e a escravidão autorizada pela fé, a dificuldade para romper com a banalização da violência é grande.
Vivemos sem dúvida num ambiente de institucionalização da violência, malgrado o que dispõe o ordenamento jurídico. Esse é um substrato cultural muito perigoso.
Em primeiro lugar, porque ele naturaliza a verticalização da sociedade, com a exclusão e a criminalização dos mais pobres.
Posso dar exemplos:
1) o problema da saúde pública, somente passou a preocupar a opinião dominante quando houve a bancarrota dos planos de saúde, que atinge principalmente as classes médias. Antes disso, ninguém ligava para o que acontecia nas filas dos socorrões, onde os pobres se empilhavam.
2) o problema da segurança pública veio à tona com grande força depois que assassinaram o jornalista Décio Sá. Mas pessoas pobres sempre morreram aos montes, todos os dias, sem grandes clamores para o tema.
Em segundo lugar, a ideologia da violência legitima a afronta à lei, muitas vezes com o respaldo das próprias autoridades, temerosas de enfrentar a opinião pública dominante. Não adianta termos leis avançadas que apregoam o respeito à dignidade do ser humano, se as autoridades públicas não estão encorajadas para defendê-las e executá-las. Esse o caso específico da tortura - uma modalidade execrável de violência.
A sociedade tem responsabilidade na afirmação desse modelo de institcionalidade violenta. Ele busca sua própria legitimidade na família, na escola, nas igrejas e na mídia.
A violência é uma forma de linguagem. O diálogo é outra. O silêncio é outra, e (este último) nem sempre significa neutralidade.
Se os pais ensinam os filhos a resolverem seus pequenos problemas de infância por intermédio da violência, teremos adultos pouco afetos ao diálogo. Se os pais espancam, na verdade, também ali estão ensinando que espancar é correto. Não precisa verbalizar isso claramente para os infantes. Eles vão apreender a mensagem no simbolismo que ela contém.
Se a escola não consegue ensinar o valor da disciplina - até mesmo porque a base dela vem da família - não será um instrumento de combate à violência. Aprender e estudar implica renunciar ao desforço físico para a resolução de problemas. Isto porque o conhecimento é racionalização do uso de ferramentas para convivência coletiva. Daí se explica o porquê de carteiras quebradas, banheiros imundos e paredes pichadas, principalmente nas escolas públicas. Democratizar o ensino depende do grau de democracia que existe na própria sociedade. O desmonte da escola pública - que atende aos mais pobres - é um indício de violência social, sem dúvida.
Em muitas Igrejas também impera o resquício da violência estrutural: machismo, manipulação da fé, estelionato, alienação do mundo, satanização de religiões africanas. Ninguém desconhece que tudo isso também é violência psicológica. Nem os preceptores espirituais escapam da linguagem violenta, exorcizando demônios imaginários.
Na mídia, pululam programas de gosto duvidoso. As programações de TV copiam fórmulas que exploram a sensação de insegurança na população, uma audiência refém da tela, como mariposas. O mau gosto é tão grande que se popularizou rapidamente um instrumento que simboliza a tortura. Seja um cassetete, seja um pedaço de madeira qualquer, o símbolo é o mesmo, nas mãos do jornalista. Esse modelo de mídia tipifica a incitação ao crime.
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