sábado, 31 de agosto de 2013

Homenagem póstuma a Victor Asselin

Brasil de Fato


“Homenagear a memória de nosso querido padre Victor Asselin é continuarmos lutando pelo que mais o movia, o amor aos pobres, aos oprimidos, em suas lutas pela libertação”
29/08/2013

Eduardo Hoornaert

No dia 23 de agosto faleceu em Quebec (Canadá) o padre Victor Asselin, nascido em 1938.
Formou-se em advocacia e ordenou-se sacerdote em 1964. Veio ao Maranhão em 1966 e aí atuou por mais de quarenta anos. Sua vida representa, de forma significativa, a figura do sacerdote católico inspirado pelas ideias do Concílio Vaticano II, do pacto das Catacumbas (compromisso com os pobres, celebrado em Roma no final do Concílio por um grupo restrito de bispos) e de Medellín, ideias vividas por bispos como Dom Helder Camara, Dom Moacyr Grecchi e Dom Antônio Fragoso.
Por sugestão do padre Ernanne Pinheiro, Victor faz o curso do Instituto Pastoral Latino-americano (IPLA) em Quito, no Equador, no ano de 1973, ocasião em que entra em contato com um grupo de professores comprometidos com a Teologia da Libertação, como Gustavo Gutiérrez, Enrique Dussel, José Comblin e Segundo Galileia. Numa entrevista, dada em 2010, ele relembra o curso no IPLA: ‘foi um momento decisivo em minha vida’. Como outros cursistas do IPLA, em Quito, Victor Asselin aprende a interpretar a América Latina de forma crítica e principalmente a perceber o ‘sistema de pecado’ que a domina.
De volta ao Maranhão, é convidado pelo bispo Dom Motta a trabalhar com as comunidades de base (CEBs) e se torna o primeiro coordenador dessas comunidades no Maranhão.
Como advogado, percebe com perspicácia as manobras jurídicas do sistema político vigente em relação à população camponesa, especialmente no que se refere a questões relacionadas à posse de terra. Essa sua capacidade em analisar o plano jurídico que domina o Maranhão começa a chamar a atenção de seus colegas. Assim, ele se aproxima de um grupo de uns dez bispos que costumam se reunir após as assembleias da CNBB em torno de Dom Helder Camara, para estudar problemas urgentes existentes no país. O momento forte desse grupo situa-se entre 1973 a 1975 e é nesse último ano que uma das questões que despertam a atenção dos bispos é a situação das terras na Amazônia, onde há muitas terras devolutas (que pertencem à União) que são tradicionalmente cultivadas por agricultores familiares que produzem feijão, arroz, mandioca e milho. Essas terras começam a despertar a cobiça de empresários e políticos, o que gera um clima crescente de violência em muitos pontos da região. Assim surge, no seio desse agrupamento episcopal, a ideia da criação de uma Comissão Pastoral da Terra (CPT), que é apresentada a Dom Moacyr Grecchi, responsável pela linha missionária dentro da CNBB. O bispo aceita o desafio e, em junho de 1975, nasce a CPT, em Goiânia, tendo Dom Moacyr como presidente e Victor Asselin como secretário. Em poucos meses, a CPT, originalmente pensada em função da Amazônia, ganha um caráter nacional, prova de que o problema da posse de terras existe em todo o território nacional. Victor se torna coordenador da CPT no Maranhão e, em 1980, quando termina seu mandato naquele Estado e é sucedido por padre Xavier de Maupou (que mais tarde se torna bispo), os colegas lhe pedem um relatório sobre os trabalhos realizados.
Victor resolve, então, reunir a farta documentação que possui sobre a grilagem no Maranhão e principalmente na região de Carajás num livro intitulado ‘Grilagem, corrupção e violência em terras de Carajás’, publicado em 1982 pela editora Vozes. Nesse livro, ele sustenta a tese de que os casos de violência no campo que aparecem nos jornais e na TV como acontecimentos isolados na realidade são decorrentes de uma política planejada e de um sistema de exploração do povo camponês. Com a autoridade que seus estudos em direito lhe conferem, Victor afirma que os responsáveis pelo Estado do Maranhão conseguem conferir um cunho legal à grilagem por meio de ações da Justiça Federal. Efetivamente, inquéritos administrativos e dados da Polícia Federal provam que milhares de hectares de terras devolutas são transferidos para mãos privadas (empresários e políticos) mediante resoluções jurídicas. O livro explode como uma bomba no mundo político maranhense, ainda na época da ditadura militar. Diariamente, publicam-se artigos contra e a favor dos posicionamentos do autor, que é ameaçado de morte, recebe telefonemas anônimos e é taxado de ‘subversivo’. Ele é chamado ao Rio de Janeiro para se explicar diante de uma alta patente do exército que lhe faz a seguinte pergunta: ‘donde você tirou as informações contidas em seu livro?’. Ao que ele responde: ‘de documentos cartoriais e de informes oficiais emitidos pela Polícia Federal, acessíveis ao público’. O militar, que não tem o que responder, deixa Victor voltar ao Maranhão. Acontece que seu principal opositor no Maranhão é um católico praticante, participante dos Cursilhos da Cristandade, nomeado procurador da Delegacia de Terras criada pelo governador José Sarney. Na realidade, esse procurador acoberta a grilagem. Mas Victor não se deixa intimidar e continua normalmente com suas atividades. Na qualidade de advogado, ele trabalha na regularização jurídica de muitos bairros na cidade de São Luís, em plena expansão; e, como sacerdote, trabalha com a Juventude Operária Católica (JOC) e com as comunidades de base.
Na entrevista de 2010, que mencionei acima, Victor constata que, trinta anos após a publicação de seu livro, a grilagem no Maranhão continua, assim como as fraudes cartoriais. Ele comenta com tristeza: ‘parece que esquecemos a luta pela terra’. E, num outro tópico da entrevista: ‘a igreja perdeu a mística que alimentava as pessoas’. Ele lamenta que ‘só se divulga a violência que tem cunho de sensacionalismo’. A violência diária passa despercebida. ‘A gente parece ter adquirido certa insensibilidade para com os conflitos’. Além disso, ‘não há projeto governamental preferencial para a agricultura familiar’ e ‘a gente sente que a morosidade da justiça é planejada’. Em vez de melhorar, a situação no campo está piorando: ‘impressiona atualmente o número de fazendas onde se encontra a prática da escravidão’.
Por ocasião de uma viagem à terra natal, em 2011, para visitar família e amigos, Victor faz um check-up rotineiro de saúde e os médicos descobrem em seu corpo um câncer já generalizado. Com a mesma tranquilidade com que enfrentou as ameaças de morte no Maranhão, Victor comunica a notícia a familiares e amigos e, nos meses seguintes, manda sucessivos e-mails que tratam da progressão da doença e aproximação da morte. Ele ainda me escreve para encomendar um exemplar do livro ‘O Espírito Santo e a Tradição de Jesus’, de José Comblin (Nanhduti, São Paulo, 2012) e depois comenta que gostou muito da leitura.
Os jornais do Maranhão noticiam sua morte em poucas palavras, ‘sem comentários’, o que indica que sua memória continua a incomodar as classes dominantes no Maranhão e que o tema abordado no livro ‘Grilagem, corrupção e violência em terras do Maranhão’, relançado em 2009 pela editora Ética de São Paulo (com a presença de Manuel da Conceição, outro símbolo da luta pela terra no Maranhão), continua mais atual do que nunca. No dia 23 de agosto pp., dia do falecimento de Victor, a viúva do governador Jackson Lago (deposto pela família Sarney) e presidente do Instituto Lago, emite uma nota em que declara: ‘homenagear a memória de nosso querido padre Victor Asselin é continuarmos lutando pelo que mais o movia, o amor aos pobres, aos oprimidos, em suas lutas pela libertação’.

Eduardo Hoornaert é padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo.

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