Prezada Srª,
Lamentável e, porque não dizer, medíocre a matéria de Matheus Leitão que apresenta a “pesquisa inédita do Datafolha, encomendada pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil” sobre “o perfil indígena brasileiro”, publicada hoje [ontem] na Folha de São Paulo – “um jornal a serviço do Brasil”. A rigor não sei se os predicados se aplicam a matéria, ou a “pesquisa” que ela se propõe a descrever/relatar.
A começar pelo objeto/objetivo da enquete (palavra mais adequada para definir o que o Datafolha faz, pois “pesquisa” com dados agregados gerais sobre povos indígenas é uma outra coisa): o que é “o perfil indígena brasileiro”? A julgar pela matéria sobre a enquete – que não sei se é parâmetro (ou não) para emitir um juízo sobre a mesma (mas vamos em frente) – referido perfil corresponde ao processamento de respostas a um conjunto de
perguntas pretensamente factuais e opinativas sobre o acesso a bens, serviços e políticas públicas. Isso é suficiente para definir “um perfil” – indígena ou não? Ou, perguntando de outro modo, é assim que se define “um perfil” – indígena ou não? O meu perfil, o seu, o nosso?
perguntas pretensamente factuais e opinativas sobre o acesso a bens, serviços e políticas públicas. Isso é suficiente para definir “um perfil” – indígena ou não? Ou, perguntando de outro modo, é assim que se define “um perfil” – indígena ou não? O meu perfil, o seu, o nosso?
O primeiro parágrafo da descrição da metodologia – os “critérios” – seria patético, se não fosse trágico – dadas as consequências potencialmente nefastas da conclusão a que chegou a enquete (chegarei a esta já, já). Diz-se que o sorteio das aldeias teria “lev[ado] em conta a região em que se localizam e o tamanho da população indígena residente”, mas não se explicita como: Quantas e quais regiões? Considerou-se o que na definição destas? São as áreas etnográficas da América do Sul (Melatti), as regiões das Coordenações Regionais da FUNAI, os Distritos Sanitários Especiais Indígenas, os Territórios Etnoeducacionais? Quais os distintos agregados demográficos considerados? Enfim, sem explicitar nada disso, a matéria (Ou seria a enquete? Ou seria a matéria como análise conclusiva dos dados produzidos pela enquete?) afirma que: “os dados são representativos dos índios brasileiros” e “os índios brasileiros estão integrados ao modo de vida urbano”.
Ademais, ao indicar que “somente a população indígena brasileira que fala português” foi entrevistada, revela-se o completo descaso com a política linguística da enquete – aspecto fundamental em qualquer pesquisa com povos indígenas que almeje o predicado de “digna.” Quaisquer categorias nativas porventura existentes, que nos dariam os matizes como cada cultura interpreta a pergunta, processa o seu enunciado e a responde, foram – dada essa opção – solenemente ignoradas. Isso patenteia a abordagem geral etnocêntrica e colonial da enquete.
Sem entrar no mérito da imprecisão do termo “índios brasileiros” (com a teoria política e cultural e os preconceitos sobre os povos indígenas que lhe são subjacentes) e nem esperando – embora devesse esperar – que a FSP dialogasse com a vasta literatura antropológica e sociológica sobre: (i) mudança cultural (em especial a distinção entre “integração” e “assimilação”), parte da qual, inclusive, enfoca etnograficamente a situação de índios citadinos (veja-se, por exemplo, Urbanização e Tribalismo de Roberto Cardoso de Oliveira); e (ii) as redes de relação e os fluxos rural/urbano, aldeia/cidade, Terra Indígena/município; é espantosa a afirmação conclusiva, que, ao contrário do que supõem o autor da matéria e/ou o ideólogo da enquete, deveria ser não o ponto de chegada: “os índios brasileiros estão integrados ao modo de vida urbano” – mas, sim, o ponto de partida para uma reflexão sobre as distintas e variadas condições em que os diversos povos indígenas se situam no Brasil de hoje. Diversidade e multiplicidade essa que a enquete anula em prol de um “perfil indígena” genericamente definido, que desconsidera aquilo que deveria ser o seu ponto de partida: a diversidade de modos de viver e existir que marcam o Brasil de hoje – seja em sua face indígena, seja em qualquer outra.
Não é necessário ter uma formação em Ciências Sociais muito sólida para ler a enquete naquilo que ela não diz, nas suas entrelinhas, nos objetivos e interesses que ela dissimula – na condição de encomenda da CNA ao Grupo Folha. Embora a enquete sinalize que 94% das pessoas entrevistadas exerçam a agricultura, e que a situação territorial figure em segundo lugar entre os principais problemas enfrentados pelos entrevistados – “tecnicamente empatado” [sic] com “as dificuldades de acesso à saúde”, em primeiro lugar; a conclusão telegráfica da enquete (ou seria da matéria, já não sei mais) conspira em favor da manutenção de um dos mais perniciosos preconceitos que pesam sobre os povos indígenas: que estes seriam seres de um passado remoto (e não povos que coabitam e coexistem conosco contemporaneamente, em sua multiplicidade de jeitos de viver) e que a sua “modernização” e/ou “urbanização” seria como que uma patologia a conspirar contra a sua autenticidade (e não uma das várias dimensões das constantes transformações a que seus múltiplos jeitos de viver estão submetidos) – razão pela qual, concluir-se-ia o raciocínio, não deveriam ser objeto de nenhum regime de atenção e/ou proteção especial.
Eis o alvo que mira a enquete-matéria como dispositivo de formação de opinião: as questões territoriais são secundárias para os povos indígenas, já que têm também outras preocupações e aspirações, e se beneficiam de programas governamentais de transferência de renda, razão pela qual a terra deveria ser eliminada da equação dos povos indígenas no futuro do país. Ao contrário, a terra constitui um problema para a expansão do chamado “setor produtivo” agrário nacional, representado pela instituição que encomendou a – isto é, pagou pela – enquete, motivo suficiente para que esses povos não muito outros tenham suas relações com seus territórios desenraizadas em benefício daquela expansão.
A que “Brasil”, de fato, esse jornal está “a serviço”?
Cordialmente,
Henyo T. Barretto Fº
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