sábado, 3 de janeiro de 2015

Segurança Pública do novo Governo e a simbologia da MP 185


Essa medida provisória, logo no primeiro dia de Governo, é estranha. É como se o novo Governo quisesse fazer um aceno, um gesto simbólico referencial para a atuação das polícias. No duro contexto da realidade das condições de trabalho dos operadores do sistema de segurança pública mais parece uma tentativa de desvio do debate essencial.

O que preocupa é que a norma pode ser um retrocesso, em termos de controle da letalidade e da arbitrariedade policiais. Nem entraria agora no debate da constitucionalidade, visto que as atribuições da PGE são fixadas por lei complementar.

O parâmetro mais próximo desse tipo de medida normativa está no art. 22, da Lei nº Lei 9028/90, que diz:

Art. 22. A Advocacia-Geral da União e os seus órgãos vinculados, nas respectivas áreas de                 atuação, ficam autorizados a representar judicialmente os titulares e os membros dos Poderes da         República, das Instituições Federais referidas no Título IV, Capítulo IV, da Constituição, bem           como os titulares dos Ministérios e demais órgãos da Presidência da República, de autarquias e           fundações públicas federais, e de cargos de natureza especial, de direção e assessoramento superiores e daqueles efetivos, inclusive promovendo ação penal privada ou representando perante o Ministério Público, quando vítimas de crime, quanto a atos praticados no exercício de suas atribuições constitucionais, legais ou regulamentares, no interesse público, especialmente da União, suas respectivas autarquias e fundações, ou das Instituições mencionadas, podendo, ainda, quanto aos mesmos atos, impetrarhabeas corpus e mandado de segurança em defesa dos agentes públicos de que trata este artigo.

Acredito que o fundamento da MP vem dessa norma federal. O problema é que existe uma enorme distância entre as atribuições da Advocacia Geral da União e o funcionamento das polícias estaduais. Aqui o sistema é bruto, como diz o ditado popular, e essa a MP é simplista.

A medida parece desconsiderar a existência da Defensoria Pública no Estado, que tem por missão assistir pessoas necessitadas, servidores públicos ou não. Amplia o raio de atuação da PGE, sem considerar que a instituição padece dos mesmos problemas da Defensoria, em termos de déficit de número de procuradores. Talvez o objetivo seja escapar da autonomia que a Defensoria Pública dispõe para possíveis análises discricionárias dos critérios para o atendimento de tais casos. Mas essa maior independência da Defensoria em relação ao governo seria melhor do que o próprio Governo, por intermédio de seu órgão de representação judicial, assumindo defesas polêmicas aos olhos da sociedade.

Com a MP 185, existe o risco concreto de a Procuradoria Geral do Estado passar a sofrer pressões de toda ordem do corporativismo policial violador de direitos humanos para forçar uma interpretação benéfica do conceito de "ação decorrente do cumprimento de dever constitucional, legal ou regulamentar", para legitimar práticas violentas e arbitrárias.

Sob o manto da tutela da PGE, o índice de tortura e de letalidade policial poderá aumentar, impulsionada pelo discurso do combate à criminalidade. A mídia conservadora e  a governista se encarregará de disseminar as justificativas ideológicas para o extermínio e prática da repressão violenta contra pessoas sob custódia e uma nova onda conservadora, legitimando a linha dura do sistema de segurança pode estar a caminho. Como diria o Senador Roberto Rocha, política se faz com gestos.

Diante do atual quadro de crescimento das facções criminosas, já se imagina qual a opção do novo governo, em matéria de segurança pública. Nada parecido com a operação tigre, mas uma vertente próxima, mascarada por um verniz de legalidade pode estar chocando o ovo da serpente. Esse é um fantasma histórico que persegue oposição e governo no Estado.

Se o governo atual quiser apoiar as polícias, efetivamente, existem outras formas, inclusive dentro do conjunto de promessas da campanha. Certamente que a MP 185 não toca nos principais problemas das polícias do Estado, desaparelhadas e abandonadas à própria sorte. A norma parece mais estar sintonizada com o paradigma da intervenção bélica e da guerra espetacularizada contra o crime, uma receita que já provou não dar certo em lugar nenhum do mundo.

O problema não é apenas pensar na assistência judiciária de policiais que ganham pouco. Seria necessário abrir o debate acerca do perfil dos crimes onde a polícia maranhense é mais acionada judicialmente. E também é preciso pensar também no contexto da letalidade policial brasileira.

As polícias Civil e Militar no Brasil mataram, em média, mais de quatro vezes mais civis que a dos Estados Unidos, em 2012, e mais de duas vezes que as polícias da Venezuela. No Reino Unido foram registradas 15 mortes em confronto com as polícias, 126 vezes menos que no Brasil. Na Venezuela, onde a taxa anual de homicídios é de 45,1, foram 704 mortos pelas polícias, menos da metade dos mortos pelas polícias brasileiras.

De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2012, ao menos 1.890 brasileiros morreram em confronto com as polícias do país, o que dá uma média de cinco mortos ao dia. O Anuário de 2014, dispõe que  Nos últimos 5 anos a soma é de 1.770 policiais vitimados. No mesmo período, as polícias brasileiras mataram o equivalente ao que as polícias dos EUA em 30 anos. Além disso, a polícia também morre. Foram 490 policiais mortos violentamente no ano de 2013. Os dados reclamam uma reflexão nos procedimentos de intervenção e no lugar das polícias dentro do sistema de justiça criminal.

Portanto, conter a letalidade policial no Brasil é um desafio da segurança pública, que não pode prescindir da regulamentação da conduta policial. Segurança Pública também é cuidar para que as polícias não matem e não sejam mortas. Algumas sinalizações despretensiosas são suficientes para impactar o sistema.

Para se ter uma ideia, em São Paulo, o índice de letalidade policial esteve diretamente relacionado ao socorro em ocorrências com lesão grave ou morte. Os dados apontavam que o socorro policial estava acompanhado da morte. Com a proibição de prestar socorro, a polícia matou menos 41% naquele Estado.

Por outro lado, atendendo a uma recomendação da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Polícia Civil de São Paulo não mais registrou ocorrências de homicídios cometidos por policiais como "resistência seguida de morte". Os casos em que pessoas são mortas após supostos conflitos com a força pública de segurança passaram a ser registrados como “morte decorrente de intervenção policial”, sujeita à devida investigação de suas causas.

São medidas importantes para o controle das polícias: ouvidoria, divulgação de índices de letalidade e de estatísticas criminais, programa de acompanhamento psicológico de policiais envolvidos em ocorrência com morte, comissão para redução da letalidade, policiamento comunitário, controle da discricionariedade policial por meio de procedimentos operacionais padrões etc. Aqui essas questões foram empurradas para trás, como coisas secundárias. O governador preferiu a simbologia de outros apelos emocionais, pelo visto.

O controle da polícia precisa se converter em em política de Estado. O cidadão só confiará na polícia se houver transparência e profissionalismo. E sem confiança, não há participação social nas ações voltadas para a segurança pública. Polícia violenta é fator de insegurança e de ineficiência no controle do crime. A MP do novo governo poderá ser utilizada para reafirmar um modelo de segurança pública, antes de pretensamente socorrer policiais em dificuldades financeiras.

Se o governo Flávio Dino vai bancar a representação judicial de policiais também deve ter o controle da letalidade policial e dos indicadores das práticas arbitrárias e violentas praticadas pelos agentes do sistema de segurança pública. Tais sinalizações deveriam no mínimo ser sincrônicas. Os dados sobre o uso da força devem ser indicadores estratégicos de um sistema de metas que repense a arquitetura do aparelho de segurança, sob pena de incentivar as práticas violentas extralegais, que são muito comuns no Maranhão.

A regulação do uso da força policial deve caminhar junto com os novos padrões organizacionais de atuação policial que resultem em maior eficiência e menos mortes. Para tanto, é preciso pensar no funcionamento sistêmico das políticas públicas, investir em formação, aparelhar delegacias e policiais para o bom desempenho de suas funções.

Antes que os defensores da tortura e da pena de morte se levantem, precisamos dizer: não se nega a legalidade do uso da força pela polícia, em situações autorizadas pelo ordenamento jurídico. No entanto, continuamos a ponderar a realidade que os números informam, indicadora de abusos, os quais contam com a tolerância de amplos setores da sociedade e a conivência de algumas instituições.

É preciso não confundir governo pretensamente popular com  populismo penal. O populismo penal é alimentado pelos substratos ideológicos do conservadorismo saudosista da ditadura militar. E esse governo precisa abrir o diálogo para outros significados da política de segurança pública, sob pena de se transformar em fotocópia do passado antes de assumir o presente como realidade inafastável.

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